O
arcebispo da cidade de B., como de costume, abençoou a multidão de fieis,
assinalando o fim da cerimônia. Recebeu, como de praxe, parabenizações pelas
belas palavras de ânimo com as quais costumava adornar a sua homilia. Após
alguns apertos de mão e uma dezena de fotos, retirou-se para descansar na
imensa casa que ficava aos fundos da igreja. Estava exausto e havia dado
orientações de que não queria mais ser importunado. Sua secretária, uma
velhinha de uns sessenta anos, inclinou a cabeça.
O
religioso, já no seu quarto, trocou de roupa, tomou um demorado banho. Enquanto
se enxugava, refletia sobre a possibilidade de ainda jantar outra vez, mas o
pernil não estava do seu agrado, o que rendeu momentos de aborrecimento para si
horas antes. Odiava alimentar-se mal, pois seu humor tornava-se instável nesses
momentos e, por vezes, até mesmo grosseiro para com as demais pessoas, algo que
não era do seu agrado, mas culpava seu organismo por semelhante comportamento.
Olhou no relógio, era quase meia noite. Achou melhor não comer nada, pois
poderia ter pesadelos durante a noite, outra coisa que o aborrecia
constantemente. Apreciava noites de sono calmas e revigorantes, principalmente
as de chuva.
Ajoelhou-se,
como de costume, diante de um ícone e começou a rezar. Enquanto repetia
maquinalmente as orações, lembrou-se de que havia esquecido de mandar comprarem
cigarros. Tinha dois na sua carteira, o que era quase desastroso, pois
costumava acordar de madrugada para fumar, coisa que fazia duas ou três vezes
durante a noite. “Ave-maria, cheia de graça...”. Escutou atrás de si uma forte
respiração. Assustou-se e o ar faltou-lhe aos pulmões momentaneamente. Engoliu
seco. Voltou-se abruptamente. A um canto do quarto, sentado em uma das três poltronas
de couro, um idoso, vestido elegantemente, fitava-o com avidez. “Boa noite,
senhor arcebispo”. Sua voz era grave, mas pausada, como se não tivesse pressa
alguma em se expressar. Saudou o religioso com um gesto positivo de cabeça.
O
religioso, com o olhar fixo no estranho que ocupava seu quarto, ergueu-se de
forma impressionante, em um movimento brusco que não condizia com o seu
avantajado porte físico e ventre protuberante. “O que queres? Dinheiro?
Jóias?”. Sua voz, apesar de firme, traia-o com um leve tremor. O outro cruzou
as pernas e exibiu um elegante par de sapatos pretos. Retirou do bolso um
charuto, cheirou-o com parcimônia. “O que eu quero? Pergunta curiosa. Eu quero
aquilo que é meu”. Apanhou ao lado da
poltrona uma magnífica pasta, abriu-a e retirou de dentro um papel bastante
envelhecido. Agitou-o no ar.
“Isso
é... é impossível! Algo deve estar errado. A data... há algum equívoco,
certamente”. O estranho ancião sorriu. Passou, na vasta cabeleira grisalha, a
cumprida mão, cujos dedos estavam adornados com anéis de ouro e prata. Acendeu
seu charuto e deu duas baforadas, em seguida percorreu o quarto com o olhar.
Fitou o teto, o chão de mármore, os quadros, a rica mobília. Chamou sua atenção
o crucifixo de ouro acima da cabeceira da cama do arcebispo. Pigarreou, como se
preparando para dizer alguma coisa, mas continuou em silêncio, olhando em
torno, como que procurando algo que não saberia dizer com precisão. Em seus
gestos havia nobreza e altivez autênticas, e nada em si parecia desnecessário,
como se tudo em sua pessoa fosse imprescindível.
“A
questão é o tempo, senhor arcebispo. O tempo é eterno inimigo do homem, não eu.
Reflita comigo: ao serem concebidos, os homens iniciam uma interminável disputa
contra o tempo, que por sua vez é inflexível, pois avança, poderoso,
indiferente às colunas majestosas do Partenon ou aos traços sublimes e
melancólicos da Pietá. É essa impiedosa postura do tempo, por assim dizer, que
angustia o homem, este, por seu turno, torna-se, sem perceber, escravo desse
tempo. Na luxuriante vida ou no remexer das latas de lixo, o homem vive, ou
sobrevive, sob o estigma da finitude da existência. Sabendo que sua efetividade
no mundo é breve, um sopro, ele quer desfrutar, ao máximo das potencialidades,
tudo aquilo que é bom, belo ou prazeroso, não importa o que seja preciso fazer
para alcançar semelhantes... doçuras. Há os que corrompem, os que matam, os que
furtam, mas, pessoalmente, eis aqui um segredo meu que confesso com certo
pudor, mas também ironia, prefiro aqueles que, em nome de um entidade superior,
nutrem-se da fé alheia para a satisfação de desejos, digamos, particulares. Não
estou aqui para julgar ninguém, o senhor bem sabe, na verdade incentivo esse
desejo insaciável do homem em desfrutar daquilo que lhe é natural, o que me
torna, em muitos casos, uma figura injustiçada. Sim, eis o termo exato, uma vez
que, o senhor há de concordar comigo, nada sou além de um simples mensageiro.
Se o homem não fosse um ser de veleidades exacerbadas e infindas, certamente eu
não estaria aqui, minha existência seria nula”. O ancião parou para dar mais
uma baforada em seu charuto, para em seguida repousá-lo com bastante calma em
um cinzeiro próximo.
“Contudo,
apesar de meu apreço ao homem, estou aqui na condição de executor, não, esse é
um termo robusto demais. Digamos que sou um atravessador, uma espécie de
barqueiro, um tipo singular de Caronte, bem mais alinhado”. Com gestos vivos, o
ancião arrumou a gola da sobrecasaca. “Mas veja, o relógio na parede marca meia
noite em ponto. Hoje, portanto, é 05 de janeiro de 1998. Logo, conforme este
papel, deixe-me confirmar de novo, sim exato, conforme este documento, o senhor
arcebispo deve acompanhar-me...”.
Diante
daquelas palavras, o eclesiástico foi tomado por uma postura combativa.
Armou-se com algum dos objetos religiosos que adornavam o seu quarto e
apontou-o para o outro. “Espírito imundo” bradou com fúria “ordeno-te que
retornes às abissais entranhas das quais surgistes!” Destemido, avançou. Em seu
olhar havia uma espécie de esperança desesperada. Sabia que muita coisa estava
sendo decidida ali, na sua alcova e que provavelmente a sua própria vida estava
em jogo. Muitas coisas passavam pela sua mente, lembranças terríveis, mas não
havia tempo para arrependimentos. Uma luta estava sendo travada e ele não podia
esmorecer. Bradou outra vez as palavras anteriores, com mais ênfase e firmeza.
Ouviu-se
uma forte e inumana gargalhada que ecoou por toda a casa. Os cães da vizinhança
começaram a latir. No andar de baixo, ouviram-se rumores, talvez a velha
secretária tenha acordado.
“Não
me tome por um dos seus seguidores, homenzinho”. O ancião ergueu-se lentamente
e só então percebeu-se o quanto ele era alto e corpulento. Com passos precisos,
caminhou em direção ao arcebispo. Seu rosto ia desfigurando-se aos poucos, ao
ponto de, após alguns instantes, tornar-se completamente horrendo. “O seu
tempo, senhor arcebispo, extinguiu-se. Como eu sei disso? Eu sou o tempo!”. Uma
grande sombra nasceu das costas do monstruoso ser e avançou sobre o religioso,
adentrando-lhe pelas narinas, ouvidos, boca. O pobre homem debatia-se, sentindo
um frio intenso invadir violentamente seu corpo. Um vazio extremo preenchia sua
alma. Tentou ainda pronunciar alguma coisa, mas era impossível. Já não era mais
senhor de si e tudo o que podia fazer era testemunhar a sua absoluta corrupção
física e espiritual enquanto que, diante dos seus olhos, homens desesperançosos,
mulheres desesperadas, crianças maltrapilhas, esqueléticas, enfermas, dançavam
em um movimentar freneticamente convulsivo. Quem eram? O arcebispo sabia quem
eram cada uma delas, reconheceu-as e, se não fosse a intensa dor que sentia,
teria chorado.
A velha secretária bateu à porta do
quarto. “Senhor arcebispo?”. Forçou-a. Chamou mais duas vezes e obteve como resposta
um grito humano, intenso inicialmente, depois como que sumindo para regiões
remotas. Procurando com dificuldades a chave certa em um molho grosso, a pobre
mulher abriu, trêmula, a porta, para encontrar o quarto vazio e com um forte
cheiro que lembrava cigarros, mas mais forte.
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* Mauro Lopes Leal
Natural de Belém do
Pará, é graduado em Filosofia e Letras, especializando-se em Estudos
Linguísticos e Análise literária pela UEPA, bem como o mestrado em Letras pela UFPA.
Seus estudos acadêmicos abordam especificamente os autores russos, trabalhando
a relação entre filosofia e literatura.