O ÚLTIMO NATAL





 

Guilherme seguiu o endereço dado pela namorada pelo aplicativo de celular. Não conhecia muito o local, andara pouco por lá. Bairro cheio de mansões luxuosas, refúgio da nata política e empresarial da cidade. 

Larissa, na realidade, não era sua namorada. Não ainda, pelo menos. Haviam se conhecido na internet há algumas semanas, trocaram fotos, interesses em comum. Ele sempre pedindo para marcarem algo e ela sempre dizendo não, que a família era tradicional e muito rígida quanto a isso. Até que chegou o natal. E, já não aguentando a distância, ela propôs que ele fosse passar a ceia de natal em sua casa, seria o momento ideal para os seus pais o conhecerem e aprovarem, ou não, o namoro.

Guilherme aceitou na hora. 

Dia 24 de dezembro, por volta das 21h00, ele iria.

***

O veículo Uber parou em frente a uma luxuosa residência, dois andares em estilo neoclássico. Guilherme conferiu o aplicativo. Era o mesmo endereço. Conhecia aquela casa, e isso o assustou um pouco. Era a casa do prefeito.

“Larissa nunca mencionou isso”, pensou enquanto apertava a campainha. Um segurança brutamontes veio atender a porta. Olhou de cima de seus mais de 2 metros para Guilherme, a mão no coldre da pistola:

― Pois não, o que deseja? 

― Boa noite, sou o Guilherme, convidado da Larissa.

O segurança meteu a cara para fora do portão e olhou para os lados.

― Veio sozinho?

Guilherme pensou o quanto deveria ser difícil a vida de uma autoridade como o prefeito, e os riscos que ele e sua família deveriam correr o tempo todo. Talvez por isso Larissa tenha relutado tanto em conhece-lo pessoalmente.

― Vim sim ― respondeu.

― Beleza, pode entrar. Fique à vontade ― o segurança sorriu de forma sarcástica, e Guilherme entendeu ter sido por educação.

Do portão à casa, cerca de uns vinte metros, passou por um jardim bem grande, cheio de rosas que exalavam um cheiro que, de tão forte, chegava a ser enjoativo.

Larissa o esperava no hall de entrada, diante de duas imensas portas duplas.

― Oi... ― ele a beijou no rosto. ― Porque você não disse que era parente do prefeito? 

Larissa riu baixinho:

― Filha, na verdade. Não queria estragar a surpresa... 

― Entendi...

― Mas fique tranquilo ― Larissa abriu um sorriso imenso. ― Minha família vai gostar de conhecer você. 

Havia um brilho muito intenso no olhar dela, e Guilherme já a imaginava entrando na igreja vestida de noiva. “A mulher da minha vida”, pensou. 

― Pode entrar.

Logo na entrada a família estava reunida em uma imensa e bem decorada antessala. Uma árvore de natal, igualmente imensa, num canto brilhava em luzes e enfeites de natal.  Conversavam baixinho entre si e pararam abruptamente quando Guilherme entrou. Viraram-se para ele e exibiram um sorriso radiante.

― Chegou o nosso convidado especial! ― disse, entusiasmada, a mulher mais velha presente, provavelmente a matriarca da família. Um sorriso de uma dentadura escurecida e os cabelos brancos, quase prateados, presos num coque no alto da cabeça. ― Entre, meu rapaz, seja bem-vindo!

― Boa noite! ― ele retribuiu tímido.

― Guilherme, essa é a minha avó Nazaré ― Larissa apresentou. ―  Aquele é o meu pai, Antônio, que você já deve conhecer, minha Mãe, Márcia, e meus irmãos mais velhos, Rodrigo e Samara.

Guilherme os cumprimentou, um a um, e ficou extremamente nervoso ao apertar a mão do prefeito da cidade. O prefeito, porém, o tranquilizou e o convidou a sentar-se com eles enquanto a ceia estava sendo preparada. 

Guilherme contou sua história, como conhecera Larissa. Sentiu que era muito querido por todos, quase parte da família já. Tinha certeza que o pedido formal de namoro não seria dificuldade. Não estranhou nada os sorrisos escancarados de todos, os dentes alinhados, os pretos da vovó. Sentiu-se totalmente à vontade...

― Você costuma comemorar o natal, Guilherme? ― o pai indagou.

― Sim, minha família toda é católica, então o natal é sagrado.

O pai levantou as sobrancelhas.

― Aqui também é tradição. Fazemos nosso ritual todos os anos... Como forma de agradecer a prosperidade do ano e pedir mais para o ano seguinte... É assim desde sempre. Tudo o que temos é fruto disso ― o pai apontou para o interior da mansão, os móveis caros, as obras de artes nas imensas paredes, onde uma foto sua como prefeito estava emoldurada. ― E neste ano você terá a honra de celebrar conosco!

Guilherme corou.

― Em casa comemoramos apenas nascimento de Cristo...

― Sim, também... ― o sorriso do pai se abriu mais ainda. ― Você bebe alguma coisa, Guilherme? ―  perguntou. 

Guilherme bebia sim. Mas, achando que fosse uma pegadinha do futuro sogro, apenas balançou a cabeça em uma quase negação:

― Senhor Antônio, bebo muito pouco, só em ocasiões especiais...

― Pois então! ― o pai animou-se. ― Vou te trazer um licor especial, tradição na família. Servido apenas em ocasiões como esta!

Guilherme assentiu. Imaginou que, por ser um licor especial, deveria ser um tipo de bebida muito cara e refinada, e que experimentá-la, assim de cara, era sinal de que era realmente especial para a família de Larissa.

O pai saiu. A sala ficou em silêncio, e todos, voltados para Guilherme, mantinham o mesmo sorriso no rosto. Aquilo, de certa forma, já estava começando a assustá-lo.

― Tá tudo bem?

Guilherme virou-se abruptamente para o lado. Era Larissa.

― Tá sim.

Larissa desculpou-se por tê-lo assustado. 

― Não, ta tudo bem, coisa da minha cabeça.

― Pronto!

Guilherme virou-se. O pai estava na sua frente com uma bandeja nas mãos, sobre ela uma garrafa de cristal com um líquido estranho, vermelho quase preto, e com um forte cheiro adocicado. Dentro do líquido alguns objetos pareciam submersos, mas Guilherme não conseguiu identificar.

O pai pegou uma pequena taça. Encheu-a até a metade e deu para Guilherme.

― Prove, você vai gostar.

Guilherme primeiro tentou distinguir o cheiro. Não conseguiu. Bebeu um gole. O gosto era forte, mas bom.

― Beba mais. ―  O pai incentivou.

Guilherme virou o resto da bebida.

― E então, querido? ― A avó indagou, o sorriso tão escancarado que parecia salivar. 

― Muito bom. De que é feita?

― Ah, isso é segredo ― o pai interveio. ― Está na nossa família há gerações... 

Guilherme piscou...

... o pai do meu avó que...

Guilherme piscou novamente e levou uma eternidade para fechar e abrir os olhos...

... navio quando chegou...

Olhou para o teto. As luzes ofuscavam vindo de todas direções...

... mas depois... soube que o... 

Os sons estavam sumindo num redemoinho... luzes... flashes... gritos... sangue...

― ... do ritual.

***

Guilherme pulou da poltrona. Respirava apressadamente.

― Tá tudo bem, querido. ― Uma voz feminina o confortou. Virou-se, era Samara, a irmã mais velha de Larissa. Larissa estava sentada mais adiante, e estava diferente.

― O que aconteceu? ― ele quis saber.

― Acho que a bebida foi muito forte pra você ― a irmã respondeu e todos riram.

Olhou-os, um a um, cada rosto com um sorriso quase grotesco.

― Não se preocupe, meu filho ― a avó falou. Estava com os cabelos trançados numa única trança prateada. ― Levanta, vamos para a mesa. A ceia já vai ser servida.

Guilherme estranhou...

― Que horas são? ― Perguntou.

― Dez para meia noite, Carlos ― o pai respondeu, apontando o relógio na parede. 

― Eu sou Guilherme, senhor Antônio.

O pai sorriu. O pai também estava diferente. Todos estavam diferentes, aliás, Guilherme percebeu. O que permanecia estático, sinistro, eram os sorrisos macabros. 

Levantou-se. Olhou rápido para um espelho na parede do outro lado e viu dois olhos azuis num rosto que não era seu. A respiração acelerou. Num ímpeto saiu correndo da sala em direção à saída. Ao abrir a porta dupla deparou-se que a mão fechada do segurança vindo em direção ao seu rosto.

***

Escuridão.

Risos. Cheiro forte de álcool entrou pelas narinas. Guilherme acordou de sobressalto, uma forte dor de cabeça e o olho direito parcialmente coberto e latejando. A forte luz do teto o cegou.

Estava deitado. Os pés, juntos, amarrados. Os braços abertos em formato de cruz, também amarrados pelos pulsos. Na boca um pedaço de pano o amordaçava.

E estava nu.

Um vento gelado o arrepiou. Tentou se soltar, logo constatou ser impossível. Gemeu em busca de ajuda, mas só recebeu em troca risos dos seres que o rodeavam, a forte luz do teto o impedia de identifica-los de imediato. Aos poucos a vista foi se acostumando à claridade. Pai, mãe, avó, irmã e irmão mais velhos de Larissa o observavam, inclusive Larissa. Todos tinham o mesmo sorriso macabro estampado, lambiam os beiços, pareciam salivar. 

― É natal, Carlos! ― O pai falou. Guilherme respirava apressadamente. Medo e confusão estavam estampados em seu rosto. ― Essa é a nossa ceia.  E você, convidado da Samara ― Guilherme olhou para a irmã mais velha de Larissa sem entender ―, será o prato principal...

Foi quando sentiu algo rasgar sua coxa direita causando uma dor lancinante. Os olhos esbugalharam em lágrimas e ele urrou. Levantou a cabeça e viu a avó cortando um generoso pedaço da carne da sua coxa, de cima à baixo. Tentou, em vão, se debater. O pai e o irmão o seguraram. Olhou para o pai buscando encontrar a figura simpática do prefeito que havia sido reeleito na última eleição com votação expressiva por ser um homem de bem e um bom cristão. Estava ali a figura, por fora. Dentro, mostrado através do sorriso macabro, estava uma coisa que Guilherme não conseguia compreender... E desmaiou.

***

            Acordou tempos depois. A ferida imensa na coxa latejava e queimava como se mil agulhas espetassem seguidamente. Olhou ao redor. Todos estavam sentados, foi quando percebeu que estava na enorme mesa de mogno da sala de jantar. À cabeceira, onde a cabeça de Guilherme estava, sentava o pai. Nos pés, a avó. Nos outros quatros assentos, a mãe e os filhos. Larissa o olhava afetuosa, os olhos brilhando. A avó se levantou. E retirou algo que estava assando no forno e entregou numa travessa para o pai. O pai olhou. Depois olhou para Guilherme. Riu. Era o pedaço de carne da sua coxa.

            Guilherme se debateu e gemeu. 

            O pai levou o dedo indicador aos lábios pedindo silêncio. Levantou-se e colocou a travessa com a carne assada da coxa de Guilherme num sinistro altar na parede um pouco mais adiante, onde velas negras queimavam e figuras esculpidas em mármore negro e que em nada lembravam santos católicos ou de qualquer outra religião recebiam oferenda.

            O pai voltou ao seu lugar. Todos se levantaram. Deram as mãos. Os sorrisos se desfizeram. No lugar, semblantes mórbidos, grotescos, quase inumanos. Começaram a fazer algum tipo de oração em uma língua que Guilherme nunca tinha ouvido. Oravam numa cadência ritmada, cada um pronunciava uma palavra e o outro, ao lado, pronunciava a próxima, de forma que era como se a oração estivesse circulando em sentindo anti-horário. Guilherme olhava para cada um aturdido, tentando acompanhar cada frase pronunciada de cada boca. Sentiu o estômago revirar, a cabeça começar a girar. Os olhos daquelas pessoas, ou o seja lá o que fossem, começaram a ficar brancos e a oração entrou num ritmo mais frenético. A cabeça de Guilherme girava automaticamente, tudo ao redor girava. Guilherme sentia-se flutuar num turbilhão, e enquanto flutuava conseguiu distinguir uma criatura alta e escura entrar pela porta, como um imenso boi disforme: dois olhos imensos, acesos como brasas, fumaça saindo da boca como se soltasse um ar extremamente quente das entranhas infernais, e um par de chifres retorcidos de carneiros. Os olhos de Guilherme se arregalaram mais ainda. A criatura foi até o altar, pegou a carne e a engoliu. Guilherme começou a se debater a tentar gritar o mais alto que conseguia. E então despencou com um baque surdo na mesa. 

Abriu os olhos. Continuava amarrado. A criatura não estava mais lá. Os outros continuavam em pé, tinham parado a oração. Olhavam para Guilherme sedentos, as bocarras, quase inumanas, se abrindo num sorriso grotesco. 

― Feliz natal, Calos! ― o pai disse. E antes que Guilherme se desse conta do que estaria para ocorrer, sentiu a primeira mordida. Olhou, a avó arrancava um pedaço generoso da panturrilha esquerda. Logo várias outras partes começaram a ser arrancadas a dentadas e devoradas avidamente. Guilherme se debatia e urrava, sentia uma dor tão intensa que beirava a loucura. Olhou para o lado, a mãe arrancara um dos dedos da mão direita e Guilherme conseguia ouvir ela triturando as falanges nos dentes. Se debateu. Urrou. Milhões de agulhas por todos os lados. Pareciam hienas. Em algumas partes já haviam chegado ao osso, pois os dentes batiam em algo sólido... Guilherme foi parando de reagir aos poucos, era como se o corpo estivesse anestesiado pela dor. Via o seu corpo sendo despedaçado, mas não podia fazer nada... Aquilo era muito surreal para ser verdade... Não é real, tentou se convencer enquanto ainda tinha consciência. E antes perde-la, a irmã de Larissa, nua, montou em cima dele e colocou o seu pênis, que por algum motivo diabólico estava ereto, em sua vagina... Ela se contorcia como uma serpente, passava o sangue de Guilherme em seus seios, no corpo, em êxtase. As mãos dela vieram em direção ao seu rosto. Ele ainda sentiu quando os seus dedos entraram nas suas órbitas oculares e arrancaram seus olhos... Guilherme sentiu-se morto. Devorado. Mas de alguma forma, ainda conseguia ver, de longe e se afastando, a irmã cavalgando no seu cadáver sobre a mesa... Depois foi Larissa. Sentiu-se caindo... E tudo ficou vermelho, como sangue, e então escureceu, escureceu... E tudo se apagou.

***

            Guilherme acordou num sobressalto.

            ― O que foi, Guilherme? ― era Larissa.

        ― Nada... ― Guilherme olhava em volta respirando apressadamente. Todos estavam ali, como antes, os mesmos sorrisos. ― Acho que acabei cochilando...

― Acho que a bebida foi muito forte pra você... ― Larissa disse e todos riram.

Guilherme sentiu o coração acelerar. Tinha alguma coisa estranha.

― Vem, vamos para a mesa ― era a avó. ― A ceia já vai ser servida.

Guilherme se levantou e tentou correr. Sentiu uma forte pancada na parte de trás da nuca e caiu por cima da bandeja com a bebida... A garrafa espatifou-se no chão, o licor avermelhado como sangue escurecido espalhou-se por todos os lados... E antes que Guilherme desmaiasse conseguiu distinguir os objetos que estavam dentro da garrafa. Parados numa poça da bebida aos pés de uma poltrona, dois olhos azuis o observavam. 

 

Elias Abner.

Castanhal, 24.12.2020.






Imagem tirada originalmente de “ https://realidadesimulada.com/santa-claus-a-verdadeira-historia-por-tras-do-papai-noel/

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