Egídio
era filho único. Nasceu no Piauí em 1960 e em 1981 mudou-se para
São Paulo como tantos nordestinos, em busca de uma vida melhor.
Trabalhador.
Foi ser pedreiro e em 1982 voltou à escola. Depois foi trabalhar
numa fábrica. Começou como faxineiro, depois ferramenteiro.
Em
1984 terminou o primeiro grau e pôde alugar uma casa melhor, perto
do trabalho. Tinha dois quartos e uma sala bem espaçosa. Um quintal
bom e uma árvore bonita. Aos poucos foi mobiliando a residência.
Tv, aparelho de som, sofá, mesa, geladeira e fogão para as receitas
que trouxera do Nordeste. Tinha até uma bicicleta. Adorava passear
no domingo. Só faltava uma mulher. Logo, logo arranjaria uma.
A
vida prosseguiu. Acordava por volta das 5h30m, ia trabalhar,
descansava um pouco em casa, depois umas aulinhas (estava fazendo
supletivo do segundo grau), um pouco de tv e dormir para o outro dia.
E foi
num sábado que fez amizade com o vizinho da esquerda. Viu um garoto
e um homem empurrando uma Brasília e foi ajudar. O homem que
empurrava era o vizinho de duas casas ao lado. O garoto que empurrava
era o filho e o do carro era o dono da casa. No domingo já foi jogar
futebol com os novos amigos. Depois foram a um botequim e entornaram
umas cervejas.
Dias
depois Egídio ganhou um presente. A cadela do vizinho Mauro deu
filhotes e o piauiense ganhou um cachorrinho. Um vira-latinha.
Assim
Egídio levava a vida.
De
noite começava a se preocupar. A rotina parecia ganhar formas nas
paredes de sua casa. A arquitetura de seu lar estava ficando pesada.
Olhava para os ângulos no teto, analisando cada sujeirinha. Nem as
voltinhas de bicicleta aos domingos adquiria novos caminhos. Num
daqueles domingos parou a bicicleta no mercado perto de casa e entrou
em busca de algo prático para preparar no almoço. Egídio tinha a
impressão de que aquelas prateleiras cheias estavam vazias. Nenhuma
novidade em produtos. Catou uma lata aqui, um pote ali, pôs na
cesta. Continuou olhando nas gôndolas até que seus olhos foram
parar numa bunda. Algo bom parar comer, só não poderia comprar.
Levantou
os olhos, foi passando pelas curvas bonitas e quando chegou nos
cabelos a moça voltou-se para Egídio e achou o homem também. Ela
tentou transmitir algo pelo olhar e Egídio respondia com cara de
"gostei-de-tu" mas os dois continuaram suas compras. Egídio
sentiu algo enchendo de sangue dentro de seu calção e já não
sabia mais o que comprar, foi para casa com aquela morena em suas
cabeças.
Quem
sabe ela morasse ali? Passou a freqüentar mais aquelas bandas. Só
comprava naquele mercado.
Mas
só a reencontrou. Duas semanas depois, num açougue. Ficou na fila
olhando, tarado, para aquele corpo incrível com cara de
"ai-se-te-pego". Mais uma vez ela pareceu interessada por
Egídio, muito mais do que antes.
E num
sábado ele fez uma grande descoberta: ela trabalhava numa loja ali
na avenida. Ele sabia que ela estava sentindo a mesma coisa e foi
direto a ela. Entrou na loja. Já sabia o que comprar, envelopes.
— Oi.
Eu queria uns envelopes.
— Quantos?
Os
olhos dela estavam fixos nos de Egídio.
— Me
vê aí uns... dez.
Ela
virou para pegar e deixou à apreciação de Egídio aquelas nádegas.
O homem não pôde conter um forte suspiro.
— Que
mais?
— Deixe
eu ver...
Passeou
pela loja.
— Selos!
— deu uma risadinha —
Como é que eu vou mandar cartas sem selos?
— Quantos?
Agora
ela o pegara. Mas servia para prosseguir um papo.
— É...
Quantos selos será que precisa para mandar uma carta para o Piauí?
— Acho
que bastante. Você é de lá?
A
paquera estava consumada. Depois que a loja fechou ele voltou e foram
tomar algo numa padaria ali perto. Conheceram-se e alegrados pelas
cervejas a casa de Egídio os recebeu para uma boa trepada. Egídio
era o novo namorado da moça chamada Cláudia, de Imperatriz do
Maranhão, e Cláudia era sua primeira namorada em São Paulo.
Agora
sim ele estava feliz.
Mas
chegou o outono e ele se sentiu um pouco doente. Uma gripe. Foi ao
médico, tomou uma injeção e no dia seguinte estava melhor.
O
bem-estar foi passageiro. À noite, voltou a febre. Pediu ajuda a uns
comprimidos e dormiu. De manhã mais febre. Foi direto ao hospital.
Mais uma injeção forte e repousou. Na hora do jantar sua namorada
foi visitá-lo, soube de seu estado e passou a noite com ele.
Foi o
pior dia. Teve delírios, sonhava acordado. Achava que sua cama
estava flutuando no ar. E o ar, pesadíssimo. Era como se estivesse
dentro d´água.
Chegou
a manhã. Cláudia lhe preparou o café, que não conseguiu tomar
direito, e foi trabalhar, prometendo voltar na hora do almoço.
Nem
quis saber de médico. Toda vez que ia, piorava. Achou melhor ficar
em casa. Os vizinhos souberam de seu estado e começou a chover
receitas de remédios. Mas Egídio estava saturado de receitas,
afinal ele tinha nascido no Nordeste, região onde tudo é na base da
cultura popular. Chamou um garoto na rua e pagou-o para comprar-lhe
uma dúzia de limões. A base das receitas contra gripe.
Em
dois dias as injeções e os limões o reergueram. Mas estranhamente
o ar de sua casa continuava pesado.
Numa
noite a rua não tinha energia. Silêncio e velas. Na hora de dormir,
colocou uma vela num prato grande no quarto, tomando o cuidado para
não ficar nada por perto que pudesse provocar um incêndio. Deitou
na cama e ficou olhando a chama tremulante e hipnótica. A dança
daquele foguinho prendeu a sua atenção por algum tempo e depois ele
desviou o olhar para as sombras estranhas que a vela causava no
quarto. Lembrou-se das notes de sua casa em Parnaíba, iluminadas por
lamparinas e o medo das coisas que nunca via mas não deixava de
temer.
Antes
mesmo de pegar no sono a luz voltou. Levantou e apagou a vela.
Surpreendeu-se com uma leve sensação de alívio dentro do peito.
Sentiu medo do escuro.
Mas
tratou de controlar-se. Só crianças têm medo do escuro...
Na
noite seguinte, acordou assustado com um estranho barulho. Acendeu a
luz e seguiu o barulho. A porta da cozinha que dava aos fundos do
quintal estava sendo arranhada. Lembrou... era seu cãozinho. Abriu a
porta e viu o animalzinho acordado e irrequieto, querendo alguma
coisa. Jogou um prato de comida para o cachorro e encheu o outro pote
com leite. Claro que ele foi direto ao leite. Egídio não esperou
para ver se o cãozinho comeria a comida e fechou a porta.
Deitou
na cama. Perdera completamente o sono. Ficou parado, com os olhos
fechados, como se estivesse vendo o sono chegar e tomá-lo.
Abriu
os olhos e passou pelo quarto. Voltou a fechar. Sentiu que estava
ficando pesado de sono. Botou o corpo para o outro lado. Sentiu a
orelha gelar e cobriu um pouco mais sua cabeça.
Abriu
os olhos. Ficou deitado de costas. Olhava o teto. Colocou as mãos
debaixo da cabeça. Tossiu. Virou para a esquerda, cobriu-se
novamente e fechou os olhos.
Levantou
da cama e acendeu a luz. Pôs os chinelo, apagou a luz e foi à sala.
Ligou a TV e achou um filme.
Pela
terceira vez, sentado no sofá defronte à TV, olhou atrás, para a
escuridão. Havia algo com o escuro de sua casa ou com ele. Achou que
era com ele. Depois suas dúvidas voltaram-se para o escuro.
Amanheceu,
foi trabalhar e pensou.
— Ainda
devo ter um pouco de febre.
Talvez
por isso ficava imaginando coisas à noite.
Durante
uma semana ficou preocupado com o escuro. Dormia com a luz do
corredor acesa.
— Devo
estar ficando louco.
Havia
algo no escuro, ele tinha certeza. Era só apagar a luz e sentia
aquela sombra se materializar. Era como o fundo de um olho.
Foi à
igreja. Católico.
Por
uns tempos ficou místico. Acendia velas, rezava, adquiria
amuletos...
Mas
nada lhe tirava a idéia de que a escuridão de sua casa estava viva.
Nem Cláudia, sua namorada, que era constantemente convidada a dormir
com ele, convencia-o de que era uma cisma.
O
escuro o vigiava. O escuro o espreitava. E uma hora iria pegá-lo.
— Sim!
Uma hora ele vai me pegar!
Sábado
destes recebeu a visita de seu amigo Amaro. Conversaram, riram,
chegou o jantar. E Egídio dava um jeito de segurar o amigo. Mas
depois ele se foi. Tristeza. Era encarar o escuro novamente.
O
escuro chegou com a noite de um filme de terror. O vento às vezes
uivava, as folhas das árvores caindo.
E o
cachorrinho ficou agitado com a chegada do temporal. Latia e
arranhava a porta do fundo. Egídio abriu, ele entrou correndo e
ficou pulando. Depois ganhou uma caixa de sapato.
— Tomara
que você cresça logo, Chiquito.
Rezou,
deitou... e dormiu.
5h30m.
O relógio tocou. Trrrrrrrrrrrimmmmmmmm...
— Eu
dormi! Obrigado, meu Deus, eu dormi! Quem tem sono, dorme!
Sentou-se
na cama e alcançou um chinelo. Mas quando se levantou... algo
estranho tinha acontecido: onde estava seu cãozinho? Sumira também
a caixa. O susto deu lugar à dúvida. Talvez o brincalhão tivesse
aprontado alguma.
Abriu
a porta e viu a caixa. E viu também cocô. "Porcaria!". Na
direção do banheiro viu pelos no chão. A porta estava fechada.
Colocou
a mão na maçaneta e se preparou para o que iria ver. Respirou fundo
e girou-a: Clec.
Foi
empurrando devagarzinho... E um cheiro horrível foi chegando em seu
nariz.
— Que
nojeira... que nojeira...
A
porta totalmente aberta: Egídio se afastava com o olhar fixo no chão
e a boca aberta. Vomitou.
No
chão do banheiro o cachorrinho estava completamente estraçalhado,
parecia ter sido mastigado e cuspido. Só sobrara inteiro (ou quase)
o rabo e a cabeça, sem os olhos.
No
cérebro de Egídio só um pensamento: o escuro tinha feito sua
primeira vítima.
Ele
faltou ao trabalho e limpou o banheiro. Jogou água no piso e foi
arrumar suas coisas. Dormiu num hotel. No outro dia foi falar com o
dono da casa e arrumou outra. Chamou um caminhão e enquanto
esperava, desmontava seus móveis. Chegou sua namorada Cláudia.
— Eu
não consigo entender porque você quer sair daqui.
— Já
falei, essa casa vai acabar me matando. Tem alguma coisa, sei lá.
A
casa de dia era muito diferente. O Sol entrando. Que pena que o Sol
não entrava à noite.
A
porta da sala foi fechando sozinha.
— É
o vento.
Foi
até o fim.
— Que
vento?
As
batidas dos corações aumentaram. Egídio foi até a porta e não
conseguiu abri-la.
— Vamos
sair daqui.
Correram
para o fundo. A outra porta também estava fechada.
Tudo
fechado. Janelas fechadas. Cláudia agarrou-se a Egídio e começou a
chorar.
— Calma,
pelo menos está entrando o Sol.
Não
durou muito tempo. Como se a noite tivesse caído de repente às duas
horas da tarde, tudo ficou na mais plena escuridão. As luzes não
funcionavam.
Um
grito de mulher. Vidros estilhaçados.
Egídio
conseguiu pular fora da casa por uma janela lateral. Estava sem a
perna esquerda. Foi pulando feito o saci, com o sangue vazando como
uma cachoeira e saiu à rua diante dos olhares horrorizados do povo,
caindo na calçada e implorando por socorro.
Cláudia
tinha morrido como o cachorrinho de Egídio. Os legistas disseram que
ela morrera como se tivesse sido atacada por uns cinco tubarões,
algo assim. E a perna de Egídio arrancada também por uma espécie
de mordida.
O
fato chegou aos jornais e à TV. Meses depois a casa foi demolida.
Egídio
voltou ao local seis meses depois e ficou parado diante do terreno já
cheio de capim, apoiado nas muletas.
Quando
ia saindo, uma enorme garra formada por entulho e detritos
apodrecidos irrompeu do matagal, agarrou Egídio e o puxou para
baixo.
Conseguiu
ler a pichação que havia num muro frente a sua antiga casa: "A
certeza do anoitecer nos desencoraja a caminhar durante o dia".
(1989)
*
Rynaldo
Papoy
nasceu em 30/12/1970 em São Paulo. Publicou um livro de poemas em
1993, “Suicídio Espiritual” e uma peça de teatro em 2003, “O
Deserto”. Começou a escrever aos 13 anos e já escreveu contos,
romances, peças de teatro, roteiros de filmes e histórias em
quadrinhos. Também faz música e vídeos independentes.
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