A EXECUÇÃO {MAURO LOPES LEAL}



A execução havia sido marcada para às 8 da manhã, a ocorrer no mesmo lugar de sempre: a sala da verdade. Não, esse não é o seu nome verdadeiro. Nós, guardas, a apelidamos dessa forma. É nela que os criminosos mais repulsivos e detestáveis choram, esperneiam como criança, imploram ensandecidos, fenecem. Pedem que lhes dêem uma segunda chance, que não vão mais matar, torturar, dizem que se regeneraram, que reconheceram que foram homens maus e que tudo o que precisavam era de uma nova oportunidade para provar sua inocência. Esse era sempre o mesmo discurso. Mudou apenas uma vez, no ano de 19.., na cidade de B.
            Não é um caso que gosto de relembrar, mas foi um acontecimento que marcou a todos e principalmente a mim, que tive uma participação mais ativa do que os demais.  Não sou um bom contador de história, sou apenas um guarda de penitenciaria que exerce a mesma função há mais de vinte anos. Agora estou com os cabelos parcialmente grisalhos, a visão não está como antes, mas na época do ocorrido, há dezesseis anos, eu era um rapaz vigoroso, de porte atlético, o que de certa forma salvou minha vida na ocasião. Por necessidade de preservação de identidade, omitirei alguns nomes, modificarei outros, pois havia pessoas, gente de elevada posição social envolvida e eu tenho filhos, esposa, família.
            Falei que seria uma execução logo no início da minha narrativa, mas preciso corrigir-me: na verdade era um assassinato e que deveria se cometido por nós, guardas. Mas estou avançando muito depressa. Desculpem-me, como disse antes, sou apenas um simples guarda, treinado para cumprir com as minhas obrigações.
            Creio que devo falar primeiramente do homem a ser “executado”. Seu nome era Alex S. D., mais conhecido como o Carniceiro de B., título que lhe era absolutamente justificável: gostava de assassinar mulheres. Os modos como procedia eram os mais desumanos possíveis. Retirava a pele de determinadas partes da vítima, ainda vivas, e fazia peças, como se fossem roupas. Luvas, chapéus, máscaras... o sujeito era realmente bizarro.
            O número de vítimas chegou a vinte e seis. Donas de casa, estudantes, profissionais, não havia um padrão, poderia ser qualquer uma. Escolhia-as mais na parte da noite, quando voltavam da escola, da igreja ou do trabalho. A abordagem era sempre a mesma: que rua é esta? Como faço para chegar na estação seis? Agarrava-as e conduzia-as ao seu velho fusca vermelho. Seguia para alguma velha casa abandonada, previamente preparada para o seu ritual de tortura e morte.
            Foi descoberto e preso após uma das vítimas conseguir escapar. Condenado, fixou-se sua pena em vinte e três anos, pois somente dois corpos foram encontrados na casa de Alex. Os advogados de defesa justificaram, ou tentaram, os crimes com atestados psiquiátricos. Bradaram que Alex era mais uma vítima do que algoz. Não sei, não posso me pronunciar sobre nada disso, pois desconheço os mistérios da mente humana. Tudo o que sei é que muitos assassinos confessos, quando em liberdade, praticam as maiores barbaridades possíveis, mas na condição de cativos, perpetram pinturas de paisagens, organizam coro e até aprendem a dançar tango. Não sei. Apenas acho que, em sociedade, tornam a matar novamente sem qualquer piedade.
            O caso de Alex seria o de mais um simples assassino com problemas psiquiátricos se ele não tivesse matado uma mulher em especial: a esposa do desembargador R., bastante conhecido na região. Devo observar que, independente de ser esposa ou não deste ou daquele indivíduo, para mim todas foram vítimas similares: mulheres que perderam a vida nas mãos de um louco. Mas em nossa sociedade superficial e desigual, cujos valores exaltam a posição social e o acúmulo de riqueza, assassinar uma mulher como aquela é algo que merece uma dupla condenação, algo por debaixo dos panos, secreto, muito secreto.
            Não são novas as matérias sobre detentos que aparecem mortos, enforcados em suas celas. Trata-se o caso, geralmente, como suicídio, mas sabemos que em muitos desses casos a coisa não foi bem assim. Com Alex não seria diferente.
            Em uma certa manhã, dois advogados representando o desembargador chegaram ao presídio, queriam falar com o diretor. Não os vi, mas me contaram. Nos presídios tudo é compartilhado, nada fica em segredo. Entretanto, nada sai de lá. As informações ficam confinadas aos muros da prisão. Se hoje estou escrevendo tal memória é mais por necessidade, desejo de compartilhar algo que carrego e que nunca soube assimilar de forma adequada.
            A conversa entre os três homens durou pouco, talvez menos de meia hora. De imediato não estranhamos nada de diferente, muitos advogados frequentam a prisão para assuntos particulares com os seus inúmeros clientes. Somente no dia seguinte soubemos de forma mais clara quem eram de fato aqueles dois senhores e o que queriam. O diretor da prisão chamou-me para uma conversa em sua sala. Quando cheguei, já havia mais dois guardas. Um era meu amigo, S., o outro conhecia de vista.
            Depois de uma introdução truncada, nervosa e com rodeios, o diretor disse que certos detentos de nossa unidade cometeram crimes que são considerados moralmente mortificantes, portanto, deveriam receber uma punição adicional, por assim dizer. Nós, os guardas, não falávamos nada, mas sabíamos para onde a conversa seguiria. Eu, que até então nunca havia me envolvido em tais situações, tive, obrigatoriamente, que fazer parte. Sim, a minha hora tinha que chegar também. Não se podia recusar uma coisa daquelas, apenas jurar ao mandatário que tudo seria praticado de forma rápida e sigilosa, sem possibilidades de suspeitas maiores.
            “Na quarta-feira próxima, às 8 em ponto, quero que vocês conduzam o prisioneiro Alex S. D. à sala da verdade.” Eu fiquei nervoso. Era a minha primeira execução. Meu colega já havia participado de três. O outro apenas uma.  
            Naquela noite não consegui dormir com tranquilidade costumeira. Tive pesadelos nos quais era perseguido por um homem, vestido de branco. Trazia nas mãos uma grande adaga. Eu tentava fugir, mas minhas pernas não se moviam. Eu despertava, ofegante. E quando voltava a dormir, o pesadelo também retornava, o mesmo.
              No dia seguinte, meu amigo, S., perguntou quanto nos seria oferecido. “Vão nos dar dinheiro por isso?” perguntei ingenuamente. Não fazia a menor ideia de que algum valor pecuniário era dado aos guardas que faziam parte de tal procedimento. “Claro, seu tolo. Acha que fazemos isso de graça? É preciso algum para que fiquemos calmos, tranqüilos e satisfeitos. Acho que vai ser uns quatrocentos. Querem muito o cara apagado, entende? Ah, a vingança!” Naquele dia descobri um lado sádico do meu amigo, sádico e mercenário. Mas com o tempo, com outras execuções, vi que aquilo era normal e que muitos guardas desejavam ardentemente serem escolhidos para participarem desta ou daquela execução, tudo por causa do dinheiro. “Tomara que chegue logo quarta!”
            Na terça-feira eu não me sentia nada bem. Um enjôo, uma falta de apetite me abatiam. Sabia que tais sintomas eram por causa da execução, mas não podia fazer nada. Pensei em fingir uma doença qualquer, um mal súbito, mas não acreditariam, diriam que acovardei-me, seria menosprezado pelos demais guardas, que viam aquelas mortes apenas como formas extras de renda. Ainda nesse dia, fui encarregado de vigiar o corredor no qual o prisioneiro Alex encontrava-se. Senti um leve tremor no corpo. Eu o veria antes da execução, algo que eu queria ter evitado mais do que qualquer coisa.
            Às 18 horas fui render o outro guarda, que me repassou as armas. A tarefa básica de um guarda, um bom guarda, era fazer todo o trajeto do corredor por completo. Eu me considerava um excelente guarda, mas naquele início de noite resolvi ficar parado, apenas movimentando-me de um lado para o outro não mais que quatro ou cinco passos, para a esquerda e para a direita. Mas para meu azar, um superior passou pelo lugar e estranhou minha postura. “Está bem? Sente-se bem?” perguntou-me o oficial. Respondi que sim, que tudo estava normal. Fiz continência e segui o trajeto costumeiro. A sela de Alex era a de número 230. A terceira da direita para a esquerda no corredor. Tive que passar em frente. Ele estava acordado, lendo um livro. Por uma força irresistível, olhei para ele e para meu tormento, encontrei o seu olhar em mim.
            Prossegui em meu percurso, jurando a mim mesmo de que não mais olharia para aquele homem, magro, de cabelo cortado à moda militar. Mas na quarta vez em que passei pela sua cela, ela me chamou. Um frio percorreu minha espinha dorsal. “Ei, guarda F., venha aqui, ouça-me. Não se faça de surdo. Estou sussurrando mas sei que pode me ouvir.” Por um motivo que até hoje desconheço, parei minha ronda em frente à grade da cela 230. “O que você quer, prisioneiro D.?”, perguntei, tentando dar à minha voz um tom imperativo e furioso, mas falhei drasticamente. Eu gaguejava. Alex riu e perguntou: “Será amanhã mesmo?” Outra vez fiquei estático. “Será amanhã o quê, prisioneiro S.?”, “Ah, não se faça de bobo, você sabe, a minha execução!” Fingi que não ouvi e reiniciei minha ronda. Mas sempre que passava pela cela 230, Alex que chamava, falava frase soltas. “Não se preocupe, guarda F., não tenha receio. Saiba que amanhã eu não morrerei.” Repetiu isto uma três vezes ainda durante minha ronda.
            Depois de algumas horas fui rendido pelo outro guarda. Corri para o meu dormitório e tentei dormir, mas sem sucesso. Como ele poderia saber da própria execução? Teria alguém dito a ele? Alguma coisa vazou entre os prisioneiros? Isso era impossível. Apenas os guardas e o mandatário sabiam da execução. Esta, quando ocorria, só vinha ao conhecimento dos demais guardas no dia seguinte, quando o corpo era achado na cela. Como ele poderia saber?
            Às cinco da manhã pulei da cama. Estava nervoso. A noite sem sono não significou nada para mim, pois estava elétrico, nervoso. Vesti-me com o esmero habitual. Olhei-me no espelho do banheiro: “Hoje você irá matar o seu primeiro homem!” Era uma ideia bastante delicada, um tanto desprezível, mas uma realidade inquestionável. Salvo alguma situação absurda que pudesse acontecer, nada iria defender aquele homem da morte naquele dia. No refeitório, como combinado, encontrei meu amigo e o outro guarda. Seguimos em direção ao banheiro, pois a sala da verdade ficava atrás. Lá, encontramos não apenas o diretor da penitenciária, mas também o próprio desembargador. Apertou-nos a mão e pediu um bom trabalho. “Se houver, hã, dor adicional, vocês receberão um, hã, um abono, meu senhores”, falou com voz grave. A notícia não poderia ter sido melhor para os meus colegas. “Vamos fazer aquele sujeito sangrar como um porco!”, disse S. assim que saímos para buscar o prisioneiro.
            Encontramos Alex ajoelhado, rezando. Quando nos viu, sorriu. “Vocês são homens extraordinários”, disse com voz pausada. Ao algemá-lo, percebi sangue nas pontas dos seus dedos. “Hoje é um grande dia, senhores. Hoje é a data da libertação!”. “Cale-se, seu maluco!”, bradou meu colega enquanto fechava a cela e o empurrava para frente. “Siga”. Eu, que já estava nervoso, ficava cada vez mais. Pensei que não suportaria aquela situação por mais tempo. Matar era uma coisa. Torturar e matar era outra. Teria estômago para isso? Certamente seria exigido de mim alguns golpes, ou seja, eu teria também que sujar ainda mais as minhas mãos.
            Durante o trajeto encontramos com dois guardas. Olharam-no inicialmente com surpresa, mas depois adivinharam o que ia acontecer, e sorriram. “Divirtam-se!”, disse um deles. “Esse é o princípio”, respondeu meu amigo.
            Na sala da verdade, encontramos o outro guarda em pé e os dois outros homens sentados em duas cadeiras, providenciadas pelo primeiro quando saímos. Mal entramos no local e o desembargador avançou sobre o prisioneiro, esmurrando-o na boca. “Seu idiota! Sua sandice desmesurada me custou milhares de reais, sabia? Sem falar na possibilidade de uma candidatura que seria apoiada pelo meu sogro!” Desferiu mais três golpes, todos no estômago de Alex, que gemeu e depois sorriu. “Desculpe se atrapalhei seus sonhos de grandeza, doutor!”.
            Então era isso. Não era vingança. Nada daquilo era motivado pelo amor de um marido diante da perda da esposa. A questão era apenas financeira, como o é sempre. “Comecem”, ordenou o diretor, em tom seco. Meu amigo, mais afoito, iniciou a tortura com tapas e prossegui com murros. Eu tirei a parte de cima do meu uniforme, coisa que foi seguida pelo outro guarda. Este, armando-se com um canivete, cortou a costa do prisioneiro em três partes diferentes. Um grosso sangue começou a escorrer. “Muito bem, senhores!” dizia o desembargador, que parecia cada vez mais satisfeito com o avanço e a crueldade crescente da tortura. Os gritos de Alex agradavam-no de modo surpreendente. Gritos estes que não saiam jamais da sala, estrategicamente situada em um desnível em relação ao presídio, o que impedia qualquer som de sair dali e alcançar outros cômodos. Por isso ela havia sido escolhida para tais situações.
            “Bata na cabeça, a cabeça!”, pedia o desembargador. E como um maestro da morte, indicava o local a ser flagelado. “Agora na orelha, corte um pouco da orelha. Isso mesmo, assim!” Após meia hora de agressões, Alex desmaiou. O desembargador mostrou-se desapontado. “Está morto? Já?” O diretor explicou que não, que havia apenas desmaiado. Ele mesmo apanhou um balde com água gelada e despejou sobre a cabeça de Alex, que despertou abruptamente. “Ah, oi, amigos, estou de volta. Como estão todos?” perguntou, com a boca inchada e sangrando, faltando alguns dentes da frente.
            “Agora é sua vez, F. preciso me recuperar”, disse meu amigo, apanhando uma toalha para enxugar o rosto. Antes disso, estendeu-me uma barra de ferro. “Quebre as pernas deles”, pediu o desembargador. Hesitante, apanhei o instrumento e me posicionei, trêmulo, diante de Alex, que percebeu minha angústia. “Ora, vamos, guarda F., hoje é só mais um dia de trabalho. Não se preocupe, companheiro, ficarei bem. Hoje mesmo estarei livre”. Para tentar diminuir minha angústia, tentei lembrar das mulheres mortas, da forma como elas foram atacadas e mutiladas. Pensei em cada uma delas enquanto erguia a barra de ferro e desferia dezenas de golpes nas pernas de Alex, que gemia e chorava.
            O desembargador ergueu-se com ar resoluto. “Agora chega, tenho uma reunião daqui a meia hora. Vou tentar amenizar o prejuízo que esse louco me provocou. Podem matá-lo”. Todos olharam para mim. Eu, que estava perto de Alex e portava a barra de ferro, deveria executar o prisioneiro. “Eu...”. tentei balbuciar algo. “Vamos, guarda, não tenho o dia inteiro”, rosnou o desembargador. O diretor olhou-me de forma severa. Atrás deles os dois guardas acenavam para que eu desse o último golpe.
            Respirei fundo e ergui a barra. Antes, sussurrei: “Perdoe-me, Alex”. O prisioneiro sorriu precariamente. “Eu não acredito em perdão, guarda F”. E desferi o golpe derradeiro. Sua cabeça abriu em duas partes. Fui cumprimentado pela precisão e força do golpe. O desembargador, satisfeito, puxou um maço de cédulas do bolso. “Quinhentos a mais para cada um pelo excelente serviço!” Todos, com exceção de mim, estavam exultantes.
            Depois que os dois homens saíram, limpamos, como pudemos o corpo. Foi nesse momento que percebi que no peito do morto haviam algumas inscrições, feitas com algum objeto cortante. Deduzi que o sangue na ponta dos seus dedos eram decorrentes de tais ferimentos. A cabeça foi costurada precariamente. Carregamos o cadáver para a cela 230 e, com uma corda, o enforcamos. Claro que qualquer um poderia perceber que Alex não havia se enforcado, mas um legista do presídio, previamente esclarecido sobre a questão, iria atestar suicídio por enforcamento. O corpo seria liberado em alguns dias e pronto. Geralmente os piores assassinos não possuíam família, o que facilitava bastante a incontestabilidade de nossa história. Deixamos Alex na cela e saímos. Alguma sentinela, assim que percebesse a situação daria o alerta e tudo ocorreria como planejado.
            Contudo, ao fim de meia hora, nada de excepcional ocorreu. Tudo estava tranqüilo. Eu, a quem foi concedido um dia de folga pelos meus serviços prestados, estranhava que nada de anormal houvesse ocorrido até então no presídio. Foi então que soaram o alarme. Fuga de prisioneiro. Tornei a vestir-me, dessa vez de modo grosseiro. Uma fuga de detentos era algo de extrema gravidade. Todos poderiam estar em perigo se um dos prisioneiros pudesse abrir a demais salas.
            Corri para o setor das celas. Um grupo de guardas examinava a cela 230. Imaginei que fosse aquilo, mas geralmente nesses casos não era acionado o alarme de fuga. “O que está acontecendo?” perguntei a um dos sentinelas. “O prisioneiro Alex fugiu, guarda F.!” Abrindo caminho entre os guardas, constatei, não sem extremo temor, que Alex havia desaparecido. “O corpo. Onde estará o corpo?” perguntei-me mentalmente.
            As buscas prosseguiram durante todo o dia. Nada foi encontrado. Decepção para todos. S., que encontrou comigo em um dos corredores, perguntou-me em sussurro sobre o corpo. “F., sumiste com o cadáver?” Ignorei-o e segui em direção à cela 230. Examinei cada milímetro e nada. De incomum apenas a bíblia que Alex lia todos os dias. Contudo, não era um bíblia comum. As letras eram desconhecidas e em muitas páginas, manchadas de sangue, reconheci os símbolos que foram feitos no corpo de Alex. Guardei o livro e saí da cela, completamente febril, um tanto delirante.
            Levaram-me ao ambulatório. Fui medicado. Recomendaram-me repouso e melhor alimentação. “Em resumo, vá para casa, guarda F.”, disse o médico com ar paternal. No ônibus, tentei relaxar. Queria evitar pensar nos acontecimentos do dia. Neguei a morte de Alex como minha culpa e dei-me confortavelmente a desculpa de que alguém havia sumido com o corpo, coisa rara no presídio, mas não impossível. Entretanto, para minha mais aterrorizante surpresa, em uma das paradas do ônibus vi Alex S. D. atravessando a rua. “Não pode ser, é impossível!”, gritei. Meu brado chamou a atenção de todos no coletivo, inclusive de Alex, que me viu e acenou para mim, lançando-me um olhar abissal. Ainda falou algo que não consegui compreender, pois o ônibus prosseguiu viagem como se nada tivesse acontecido.  

            

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MULHER, VINHO E UMA VOLTA NO INFERNO {Por Felipe Cosmo}




A noite ia alta, a lua esmaecia no céu carregado. Estávamos sós no apartamento dela. Ela me olhava como se perscrutasse minha alma untada em desejo. Meu corpo todo tremia com a vontade mal contida de beijar-lhe os lábios rubros umedecidos pelo vinho rose que ela bebericava vagarosamente.
Respirei fundo enquanto contemplava aqueles olhos tão verdes como esmeraldas. Eu ruborizava ante a tentativa vã de não olhar tão fixamente para seu decote que denunciava um par de seios alvos deliciosos.
Por fim, cedi à timidez e voltei-me para olhar a cidade que se descortinava em frente à varanda. Minha taça agora quase vazia lutava para se manter em minha mão trêmula e banhada em suor.
— Qual o problema? — perguntou ela com sua voz tão suave como a harpa de Davi.
— Nada não. — respondi eu, mudando a taça de mão. — É que achei esta vista maravilhosa.
— Você prefere a vista a mim?
— De jeito nenhum.
Ela então me puxou de volta à sala e de lá fui arrastado até o quarto dela. Seu perfume era puro feromônio e me deixava ébrio de desejo.
O quarto era amplo e decorado com muitos espelhos. Mas a verdade é que não dei muita atenção aos detalhes. O vinho tinha deixado minha visão um pouco turva e eu sentia taquicardia devido à languidez de seus beijos e carícias.
Ela me jogou na cama de supetão, era uma cama tão macia como só a alcova das ninfas deve ser. Com apenas alguns movimentos de seus dedos ela desfez-se do vestido e então a beleza de seu corpo nu fez meus olhos ofuscarem. A pele tão branca e macia contrastava com seu púbis cheio e escuro.
Aquilo não podia estar acontecendo. Acho que era um sonho. Algumas horas atrás eu não era ninguém e ninguém me conhecia. E agora eu me via diante de Deus. Tirei minha roupa como pude e ela então veio pra cima de mim e selamos nossos corpos com os fluidos da libido. Transamos loucamente como dois depravados. Fogos de artifício jorravam de nossos corpos, estrelas inteiras nasciam e morriam em nosso sexo.
Até que eu mesmo morri. Juro por deus que morri. Cheguei a ver meu corpo estirado na cama, inerte e frio. Então vi um clarão tão forte que me cegou. Era ela novamente, sempre tão brilhante e cheia de luz. Ela disse:
— Agora vou levá-lo a uma jornada que você jamais sonhou nem nos seus maiores devaneios.
Ela deu meia volta e se afastou. Eu nem cheguei a pensar em nada quando meu corpo foi atraído em sua direção, como se houvesse um campo eletromagnético em volta daquela mulher. Eu nem mesmo sentia meus pés se moverem. Levitávamos os dois. Não existia gravidade nem matéria. Nossos corpos eram energia pura atravessando o éter.
Até que chegamos a um templo que tinha um pórtico imenso onde havia colunas dóricas iguais ao Partenon. Por fora tudo parecia muito amplo, mas por dentro havia apenas um corredor estreito por onde seguimos. Era escuro, mas eu conseguia entrever catacumbas com estranhos mosaicos e arabescos. Não havia sons de qualquer tipo. Foi a primeira vez que me dei conta do quanto é opressivo o silêncio absoluto.
Finalmente chegamos a um salão enorme e de repente tudo ficou iluminado como o dia, mesmo não havendo qualquer fonte de luz aparente. No meio do salão uma estranha figura dançava velozmente. Ela se contorcia e revirava num ritmo febril. Seu corpo era magro e tinha a pele bem escura e longos cabelos crespos. Possuía forma e curvas femininas. Os seios eram firmes e os quadris largos, porém, à medida que me aproximava, percebi que seu rosto e seu sexo eram masculinos. Era uma espécie de divindade mitológica africana. O silêncio opressivo de outrora dera lugar a sons sincopados de tambor, como uma música tribal.
Quando a divindade africana nos viu, eu percebi que seus olhos eram vermelhos como fogo. Ela parou imediatamente de dançar e veio em nossa direção, quando ela falou os tambores silenciaram. Tinha uma voz gutural e falou nos seguintes termos:
— O que faz aqui e por que trouxeste um ser impuro à minha morada?
— Não é mais sua morada — respondeu minha companheira. E sacando um pequeno punhal de aço reluzente, atravessou o peito da hermafrodita. Não pude ver o que se passou depois, visto que no instante seguinte estávamos no corredor por onde entráramos minutos antes.
Subimos uma escada com estreitos degraus. Não sei quanto tempo se passou, mas subimos muito, era uma escada imensa. No entanto, por algum motivo não fiquei cansado, nem mesmo ofegante. Então chegamos a uma masmorra escura e sombria onde existia apenas uma cela, suas grades eram de ouro maciço e lá dentro havia um imenso macaco acorrentado pelos tornozelos com correntes de ferro. Quando nos viu, o macaco ficou agitado e se mexia de um lado para o outro até onde as correntes permitiam.
Minha companheira abriu a cela com uma chave também feita de ouro (esses objetos pareciam simplesmente se materializar em suas mãos). Com a mesma chave ela libertou o macaco das correntes que o oprimiam. Ele pulou em seus braços e ela o tirou da cela carregando-o em seu colo como um bebê. Antes de sairmos da masmorra eu a peguei pelo braço e finalmente perguntei:
— Por que estamos fazendo tudo isso? Onde estamos? E o que significam todas essas coisa?
Ela olhou-me com aqueles olhos de esmeralda e respondeu com uma voz tão maviosa quanto os sons de um saltério:
— Entendo que sua mente esteja turva como a noite. Suas perguntas serão respondidas no seu devido tempo, mas agora precisamos sair daqui.
Descemos a escada e saímos do templo. De repente nos vimos levitando acima de um mar revolto com tempestades e trovões ameaçadores no céu noturno. Nada se via no horizonte, apenas água e nuvens carregadas.
Então um túnel de luz surgiu à nossa frente e seguimos por ele. Num piscar de olhos a paisagem mudou. Não sei dizer onde estávamos, mas parecia ser um deserto em chamas. Labaredas lambiam nossos pés, mas não sentíamos dor. Uma fumaça negra no céu tornava tudo escuro e cobria os raios de sol. Podíamos apenas vislumbrar a claridade por trás do breu.
À nossa volta, pessoas destroçadas gemiam num lamento de dor lancinante. Tudo ao redor era tormento. Percebi que estávamos acima de uma pilha de corpos carbonizados. Em alguns lugares era possível ver membros dilacerados e corpos putrefatos banhados em sangue. Eu sentia um forte odor de carniça. No céu coberto de fumaça voavam animais imensos e mitológicos que sibilavam ininterruptamente.
Subitamente, cortando o céu em chamas e montados em cavalos alados, surgiram seres luminosos que pareciam arcanjos. Eram sete ao todo e todos eles empunhavam lanças de luz dourada. Um deles se aproximou de minha companheira e atravessou-lhe o corpo com sua lança. O macaco que momentos antes havia se desvencilhado de seus braços transformou-se num dragão de vinte pés de altura, em sua cabeça um diadema reluzia e saía fogo de suas narinas e boca. Os arcanjos sobrevoavam ao redor dele e tentavam espetá-lo com suas lanças.

Depois disso não vi mais nada. Um torpor apoderou-se de minha mente e minha visão ficou embaçada até que apaguei. Acordei com a luz do sol socando meu rosto. Tentei levantar, mas minha cabeça doía. Minhas roupas estavam puídas e eu segurava uma garrafa de Duelo na mão. Atrás de mim ouvi risadas histéricas de mulheres. Virei-me para olhar e vi três rameiras que gargalhavam à entrada do cabaré.




                                                           ***


Felipe Cosmo Graduando do curso de Cinema e Audiovisual. Nasceu em Belém do Pará, em 1988. Viciado em Literatura e Cinema. Escreveu e dirigiu três curtas-metragens, entre eles “Trágico Inverossímil” e “Garota da Beira do Rio”, além de escrever poesia e contos

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PASSEIO NOTURNO





É com muito receio com que venho tomar de um lápis e algumas folhas de papel em branco para tentar descrever uma grande tragédia que aconteceu comigo há muito tempo... Não sei se terei condições físicas e emocionais para isso. Meus dedos já não seguram com firmeza o lápis e a idade avançada faz com que minhas mãos tremam constantemente, ainda mais quando volto a pensar nesse assunto. Digo pensar, por que nunca falei dele pra ninguém, sempre tive medo. Agora mesmo não sei se estou agindo certo ao fazer isso. Toda vez que penso no que aconteceu passo noites em claro assustado com pesadelos, ainda hoje depois de tanto tempo. Sempre tenho a estranha sensação de estar sendo vigiado, e de vez em quando pareço ver aqueles mesmo olhos a me observarem da escuridão imensa da noite na hora de dormir. Talvez seja só uma impressão infantil, ou uma peça pregada pelo inconsciente. O certo é que não sou louco, a insanidade certamente ainda não bateu à minha porta, não sei até quando...
Lembro-me perfeitamente daquela noite. Era uma noite escura e sem estrelas, aquela. Uma enorme lua cheia ofuscava-se por traz de densas nuvens negras, e estava tão frio que uma fina camada de neblina subia do rio, indo espalhar-se rente ao cais.
Poucas pessoas haviam se aventurado a sair de casa naquela noite de quinta-feira. Eu, talvez por intervenção do destino ou por mera falta de sorte, fui um desses infelizes aventureiros. Não que fosse dado a passeios noturnos, pouco saia desacompanhado de casa. Limitava-me a ler romances policiais durante as noites frias, como aquela, e em retratar naturezas mortas em telas, muitas das quais ainda hoje decoram as paredes de minha sala de estar, sem falar nas tantas que atravessaram o oceano e foram parar nas mãos de amantes da boa e genuína obra de arte. Às vezes, durante o verão, quando um belo sol despertava o dia, convidava uns amigos e íamos pescar num rio de águas tranquilas, próximo à entrada de nossa pequena cidade. Raríssimas vezes fazíamos isso nos dias de inverno. Eram sempre dias monótonos e tristes; as coisas viviam encharcadas e a prevenção contra um resfriado impedia-me de fazer certas coisas fora de casa num dia ruim, e até hoje não consigo entender por qual motivo deixei esposa e filhos em casa e saí, sozinho, naquela noite, a vagar sem rumo pelas ruas da cidade.
Quando percebi já havia chegado na praça, do outro lado da cidade, em frente a uma igreja centenária manchada por infiltrações na fachada. Não sei como, mas sentia como se algo estivesse prestes a acontecer.
Andei até o trapiche e pedi uma cerveja. Encostei-me à amurada do cais, de costas para o rio e de frente para a praça, os braços cruzados, a cerveja na mão. Fiquei ali, esperando sem saber exatamente o que por mais de uma hora. Já passava das onze horas e a praça esvaziava-se muito rápido de seus poucos visitantes. Um menino corria atrás de um gato branco listrado de cinza e com uma mancha preta ao redor do olho esquerdo. O gato parou e ficou me olhando por um longo tempo, fitando-me com os olhos semicerrados, depois foi embora. Três homens bebericavam cerveja num barzinho próximo enquanto conversavam animadamente, e um casal de namorados se abraçava num banco à minha frente sob a luz amarelada de um poste. Fiquei a observar o casal por trás das grossas lentes dos meus óculos. A moça, uma morena de cabelos longos e encaracolados, olhos negros sob finas sobrancelhas perfeitamente modeladas ao seu singular e delicado rosto, os lábios levemente avermelhados. O rapaz tinha uma boa aparência, modos distintos e vestia-se da forma mais elegante já vista, demonstrava ser uma pessoa a quem dinheiro não faltava. Olhou-me com um ar de desconfiança quando a moça fez um sinal com a cabeça de que eu estava observando-os. Percebi e mudei a direção do olhar. Coloquei as mãos nos bolsos laterais da minha calça e saí caminhando vagarosamente do meu posto. Já havia bebido seis cervejas. No meio do caminho olhei novamente para trás, mas o banco estava vazio e não havia nem sinal do casal.
Contornei o lado esquerdo da praça e parei sob uma árvore, sentando em um banco de concreto. O vento frio que vinha do rio congelava-me as entranhas, e não seria surpresa se em pouco tempo desabasse um tremendo aguaceiro daquele negro céu.
            Esse foi, sem sombra de dúvida, o único pressagio, dentro os tantos que me vieram inconciliáveis à mente, que induziu-me a repensar aquele passeio nada proveitoso, levantar daquele banco e tomar o caminho de volta para casa. Levantei-me, mais ainda assim hesitante se deveria ou não prosseguir. Queria outra cerveja... Comprei e tomei o caminho de casa.
            O ponteiro do meu relógio de pulso marcava quinze para a meia noite. O horário e o clima melancólico da cidade já quase de toda adormecida e mal iluminada enchiam-me de receio, e me fizeram apressar ainda mais os passos. Não que eu tivesse medo, medo mesmo talvez não fosse. Neste mundo pouquíssimas coisas faziam-me experimentar esse sentimento tão infantil, e o sobrenatural e aterrorizante que, como ouvia falar, chegava com a noite, não era uma delas. Na verdade nunca fui demasiado crente em fenômenos sobrenaturais do tipo que existiam para aterrorizar as pessoas. Quando criança, meu avô sempre contava as mais horripilantes histórias de visagens, feiticeiras e lobisomens; eu ouvia tudo, muito atento, e quando ia dormir ficava imaginando todas aquelas figuras espreitando da escuridão noturna para dentro do único lugar da nossa casa que adormecia com as luzes acesas, o meu quarto. Às vezes não conseguia pregar o olho. Cada som no exterior, mínimo que fosse, fazia meu coração disparar e o meu rosto suar desesperadamente. O tempo passou, e o que eu ouvia assustado passei a ouvir sério; não mais acreditava nessas bobagens, mas procurava julgá-las, sempre apontado as “falhas” das histórias, mentiras descaradas, absurdas mesmo. Não sei porquê, mas naquele instante em que voltava para casa comecei a relembrar de muitas dessas histórias: fantasmas, feiticeiras, lobisomens, sempre associados com as madrugadas e cemitérios sombrios; e como que para completar a minha total infelicidade e responder aos meus pensamentos, via surgir, na esquina seguinte, o cemitério da cidade.           
Fitei-o atônito. Nem havia notado a rua em que estava andando, pareceu-me que havia sido levado por ali por alguma coisa incomum e não pelo mero acaso, e a simples ideia de passar pela frente dele àquela hora veio-me como um choque, refreando-me por instantes.
Queria voltar (e até hoje me pergunto por que não voltei) e contornar pela outra rua, no entanto o orgulho de ser tido como uma pessoa de coragem convenceu-me a seguir em frente, mesmo a contragosto. Então engoli em seco e segui.
O portão de ferro com as grades corroídas estava parcialmente aberto, e na medida em que o vento forçava-o, as dobradiças rangiam num som estridente e irritante, terminando numa forte batida contra o muro, e isso continuamente, pois ventava bastante e parecia que já ia chover.
Por sobre o muro irregular apareciam o topo de cruzes enegrecidas e de lápides com estatuetas de anjos com as asas e as mãos voltadas para cima, como em posição de subida. Estiquei o pescoço para olhar por cima do muro, e naquele lugar sinistro e sombrio nada se movia, nem som algum se ouvia, tudo estava mergulhado num silencio perturbador que só foi interrompido pelo voou de uma coruja para uma árvore no outro lado da rua com um rato no bico.
O caminho central que começava a partir do portão era estreito e muito comprido, meus olhos seguiram por ele, indo parar numa pequena capela caiada de branco e coberta por ervas. Tinha ouvido histórias sinistras daquele lugar, inclusive a de que, trancada nas profundezas daquele lugar, ficava o caixão de um homem que havia sido muito mal em vida e que a terra se recusava a decompor suas entranhas. O homem secara, e segundo contava o meu avô, algumas pessoas juravam que o corpo mudava de posição...
Sempre achei essa história ridícula. Mas quando me virei de volta à rua ouvi um estalo vindo de lá, parecido como de uma fechadura. Voltei-me novamente para a capela, com o coração já um pouco disparado; mas por ali tudo continuava inerte como antes.
Continuei a andar pisando bem devagar, com os ouvidos atentos a qualquer estalo parecido, porém como resposta só ouvia o cricrilar dos grilos nas moitas de capim ao redor da rua e o coaxar distantes de sapos. Um pouco mais à frente findava a quadra do cemitério; respirei fundo, aliviado, como se tivesse acabado de sair ileso de uma difícil prova que me fora severamente imposta.  Mais à diante olhei para o cemitério pela última vez, já sem qualquer receio aparente, acreditando ter provado que todas as histórias que me contavam quando menino não passavam de meras invenções fantasiosas e sem qualquer fundamento real. No entanto, vi-me às voltas com todas essas questões naquele momento. Aquela noite poderia ser escura como fosse, mas tive a forte impressão de ter visto uma sombra em pé, parada junto ao portão e olhando fixamente para mim. Assim que semicerrei os olhos para tentar ver melhor, a sombra já não estava mais lá.
Fiquei profundamente confuso e as garras frias do medo pareciam querer se apoderar das minhas pernas, mas novamente fiquei pensando e tentando me persuadir de que aquilo nada mais fora do que fruto de minha sutil imaginação. Avancei o caminho a passos largos, com os olhos fixados no chão de piçarra à minha frente, até chegar à avenida principal. Esta estaria igualmente deserta como as demais, se não fosse por um bombonzeiro que cruzou comigo voltando do trabalho e sumiu por uma rua estreita.
A avenida estava bem iluminada. Voltei a andar devagar pela calçada, tentando aproveitar cada pedaço iluminado, na esperança de esquecer a atmosfera lúgubre de que acabara de sair e a visão que, mesmo não tendo certeza de sua veracidade, tivera minutos antes. Começou a chover, uma chuva fina e constante. Converti à direita na primeira esquina que surgiu, agora acelerando os passo para não chegar em casa encharcado e o vento frio da chuva – eu acho – fez-me arrepiar dos pés à cabeça e o coração aumentar os batimentos. Cruzei os braços tentando esquentar as mãos sob as axilas e olhando ligeiramente de um lado para outro da rua.
As coisas pareciam estar mudando comigo de forma muito estranha, e pela primeira vez desde há muito, como vim a lembrar, comecei a sentir medo da imensidão da noite e dos seus habitantes. Não entendia como um simples vento frio, tão comum quando começava a chover, havia-me feito experimentar outra sensação, uma sensação de mais puro medo, de terror mesmo.
Imaginei ser algum tipo de sinal, e estava certo, como depois fui descobrir. O que veio depois dele, porém, mudaria para sempre a minha vida e me faria tratá-la como algo quase insignificante.
Então aconteceu.
Escutei da primeira vez, mas não dei atenção, pensando ser apenas o meu inconsciente tentando me amedrontar. Da segunda vez, porém, ouvi nitidamente o som, assim mesmo quis fazer-me de surdo e convencer-me de nada ter ouvido, apenas apressei ainda mais os passos já vacilantes. Porém... da terceira vez, aquele uivo que começou agudo e foi morrendo num rosnar agonizante talhou-me a alma por inteiro, e eu, mesmo contra a vontade, parei de andar virei-me, vagarosamente, para ver de onde vinha aquele som aterrorizante.
Como já disse antes, volto a repetir: nunca acreditei em fenômenos sobrenaturais, mas a coisa para a qual acabara de olhar deixou-me com os olhos arregalados e a boca tremendo sem conseguir gesticular palavra, e fez-me em segundos rever todos os meus conceitos acerca de tão incrédulo assunto. Eu estava a uma quadra de distância do cemitério, e desse ponto podia ver o muro irregular dos fundos dele, descendo verticalmente seguindo a inclinação da rua. A estranha figura estava lá, próxima a encruzilhada junto ao cemitério.
O ar condensado formava uma fina e quase invisível camada de névoa ao seu redor, e em contraste com ela surgia, assim como pude no momento distinguir, a figura sinistra de um grande cão preto, com as enormes e compridas orelhas parecendo dois chifres pontiagudos apontando para cima. Chamar de assustador uma figura que me fez dar um salto para trás e me imobilizar de medo já é o suficiente para que se tenha uma noção de como ficara o meu estado de espírito naquele momento. Porém não fora apenas o sinistro cachorro que horrorizou-me a alma, mas sim a forma como ele vinha andando: sobre as duas patas traseiras, em pé, como um homem enorme. Deveria ter, no mínimo, uns dois metros e meio de altura devido a largura de seus passos. Para meu terror, a figura parou de andar e, olhando-me fixamente, começou a rosnar, depois inclinou a boca para cima e saltou mais um daqueles terríveis uivos, voltando-se em seguida para mim.
Senti as pernas se aquecerem rapidamente, quando percebi havia mijado nas calças. Virei-me e me pus a correr o mais rápido que consegui. Enquanto isso a chuva começava a aumentar rapidamente.
Quando já estava um pouco afastado, dei uma rápida olhada para trás. Para minha desgraça a criatura vinha correndo furiosamente, com as quatro patas no chão, em minha direção. O terror instalado em mim aumentou sobremaneira, muito além do que eu pensava suportar. Meu corpo já não atendendo os comandos da minha mente febril começou a ficar cada vez mais pesado e a minha respiração tornou-se quase impossível. Na loucura do momento pensei em gritar e tentar pedir socorro, e talvez se o tivesse feito teria acordado toda a vizinhança com o meu desespero, no entanto meus lábios adormeceram de forma tão assustadora que comecei a pensar que estava caminhando de encontro com a morte, e aquela criatura, que parecia ser a própria morte em pessoa, seria a sua condutora. Naquele instante compreendi que um fim desastroso me aguardava e eu não tinha como evitar. Morreria de qualquer forma. Com esse pensamento olhei para frente. A rua parecia ficar cada vez mais distante, como se eu estivesse sendo puxado lentamente para trás. Até que as luzes foram se apagando, uma a uma, até o final da rua, e uma escuridão sufocante tomou conta da minha vista. Minhas pernas enfraqueceram e eu caí, semimorto, no chão enlameado.
Fiquei prostrado ali, imóvel, com o coração já não batendo tão forte e sentindo um frio mortífero percorrer cada músculo do meu corpo inerte. Não conseguia falar nem ver nada, mas conseguia ouvir bem tudo o que acontecia ao meu redor. Imaginei que estava na minha cama, dormindo, e tendo um horrível pesadelo. Ouvia os grilos ali próximos, deveriam estar em baixo da janela do meu quarto; mas não conseguia compreender que estava dormindo, não conseguia mover um dedo sequer. Foi quando ouvi uma pisada forte e constante, e percebi que a criatura dos meus pesadelos não havia me abandonado no mundo do inconsciente e agora aproximava-se lentamente de mim. E eu ali, sem poder pedir ajuda, sem poder me defender...
Ouvia a água estalar enquanto a criatura andava e percebi quando parou, bem próximo de onde eu estava. Senti o ar quente e um forte cheiro de ovo podre que saia de suas narinas enquanto farejava-me dos pés à cabeça. Não chegou a tocar-me, mas pelo forte som que fazia ao respirar pesadamente imagino que ficara a poucos centímetros de mim.
Depois disso desfaleci e não faço a mínima ideia do que pode ter acontecido depois. Quando voltei a mim, estava caído ao lado de uma poça d’água, a chuva já havia parado. Levantei-me vagarosamente olhando de um lado para outro, mas sem encontrar nada de comprometedor. Estava confuso e quase não acreditava no que tinha acontecido.
           A cidade continuava deserta e silenciosa como antes, e parecia que realmente nada de estranho havia acontecido. A lua estava alta no céu e as estrelas brilhavam fortemente, como se não houvesse chovido. Mas a terra molhada mostrava-me que havia chovido sim, mas que parara há um bom tempo. Dei alguns passos sacudindo a lama da minha roupa e percebi que havia uma garrafa de cerveja vazia no local onde eu estava caído. Distraído com isso tropecei num buraco e cai de volta ao chão. Comecei a rir de mim mesmo e do meu descuido. Mas o meu riso transformou-se num gemido melancólico que morreu na minha garganta quando vi, ao tirar o pé do buraco, que para minha desgraça havia tropeçado dentro de uma enorme pegada, incrustada na piçarra endurecida. Parecia ser a pegada de algum cachorro e seria se não fosse por uma estranha peculiaridade, pois em nenhum lugar do mundo haveria um cachorro que deixasse uma pegada daquele tamanho... Uma pegada que era monstruosamente maior do que a minha mão aberta.

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O MANÍACO DO CEREJA {GIROTTO BRITO}

Poster do filme "Maniac", de Elijah Wood.

Naquela noite de domingo a cidade virou um alvoroço só. Na rádio, televisão, internet e mensagens de celular, corria a notícia da captura do homem que aterrorizava o bairro do Cereja há quase onze meses. A polícia relutava em divulgar o nome e a população ansiosamente aguardava para saber quem era o sujeito capaz de tais atrocidades. Em frente à delegacia, uma multidão revoltada se aglomerava e ameaçava invadir as dependências e fazer justiça com as próprias mãos, enquanto um pequeno grupo de policiais tentava acalmar os ânimos até que reforços da cidade vizinha chegassem.
Foram sete vítimas: mulheres jovens que andavam sozinhas à noite. Todas brutalmente violentadas e estranguladas. Os corpos foram encontrados às margens de um córrego, numa área de preservação próxima ao centro da cidade e, por isso, todos imaginavam que os ataques aconteciam num beco ali próximo conhecido por “beco do mete-medo”. Curiosamente, o nome do beco se dava por causa de um antigo morador apelidado por “Mete-medo”, não pelos recentes ataques do maníaco.

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Eu sabia que essa hora chegaria. Agora estão todos querendo minha cabeça, mas digo que valeu a pena. Digo para mim mesmo... Ah, como eu me diverti! Como foram todas tão delicadas. Aqueles lábios trêmulos, gemidos, posições forçadas e o cheiro... como são cheirosas quando estão na flor da idade. Não me arrependo de nada. E por que haveria de me arrepender? Todas elas gemeram gostoso antes de morrerem. Sentiram o gozo divino ainda em vida. Que me matem esses canalhas. Eles não entendem, mesmo. Não sabem o que é prazer de verdade. Eu sei! Ah, como sei. Mesmo aqui, atrás das grades, sou homem livre, enquanto eles, lá fora, continuam presos em seus uniformes, noticiários, pudores e regras morais. Bando de hipócritas nojentos! Culpam-me por um pouco de prazer, mas quantos eles já mataram também por prazer? Sonegadores de impostos, corruptos, aliciadores..., um bando de porcos imundos cujos olhos só são capazes de enxergar a sujeita alheia. Ahhh, não me sai da cabeça o cheiro daquela morena... mesmo morta ainda exalava um perfume de flores. Flores frias, mortas, mas divinamente belas.

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— Delegado, os homens estão passando sufoco lá fora. Se o batalhão de Capanema demorar a chegar esse povo vai entrar na marra.
— Já liguei para o Sargento Moreira, eles já estão quase aqui. Vamos enrolar esse pessoal mais um pouco. E o meliante?
— Está lá, deitado no chão da cela com um sorriso imenso na cara, como se nada estivesse acontecendo. Só pode ser louco, delegado. Só pode ser louco.
— Não, não creio. Loucos não tratam corpos com tamanho zelo como esse homem fez. Estuprava, estrangulava, depois maquiava a vítima e enfeitava com flores para que estivesse bonita a quem a encontrasse. Isso não é loucura, talvez psicopatia.
— Sei não, sargento. Pra mim é doido de pedra. Ah, finalmente estão chegando!

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Já era quase meia noite quando uma equipe do esquadrão de choque chegou à delegacia. Sob ordens do Sargento Moreira, o batalhão não puxou conversa com ninguém. Sem qualquer diplomacia, os soldados foram dispersando a multidão com balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio. Foram quinze minutos de pânico, choradeira e correria até que a rua ficasse quase vazia. Quando tudo se aquietou, reuniram-se delegado, sargento, representante do judiciário e três jornalistas para decidirem se mantinham o estuprador na penitenciária da cidade ou enviavam para Belém, e como sua identidade seria revelada.
A discussão foi acalorada. Os jornalistas sedentos pela identificação do indivíduo, o delegado querendo enviá-lo para Belém a fim de se livrar do problema e o sargento argumentando que as penitenciárias de Belém e Americano encontravam-se muitíssimo abarrotadas. Quando achavam que já tinham decidido por manter o criminoso na cidade entra na sala um casal de representantes do Departamento de Direitos Humanos e recomeça a discussão em torno do destino do preso que, sossegadamente, escutava a conversa de uma cela logo ao lado da sala de reuniões.

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Prefiro sinceramente que me deixem aqui nesta cidade. Já estou acostumado com esse cheiro de maresia que está impregnado até na mais solitária das celas. E aqui estarei perto de minhas amadas. Quem sabe a maresia não traga de surpresa o cheiro de uma delas? Sei que saberia reconhecer cada uma por seus estonteantes odores. Sim, eu sei. São inigualáveis. E tal como os bons jardineiros identificam as flores com olhos fechados, assim também eu as identificaria. Mas estão mortas, e a morte leva consigo almas e odores, substituindo-os por uma podridão sem fim. Queria eu ter o dom de Jean-Baptiste Grenouille e poder guardar o perfume de minhas paixões em fracos, para senti-los enquanto eu ainda estivesse vivo.

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— Vocês só podem estar de brincadeira. Querem que eu consiga uma cela individual para esse sujeito?
— Sim, delegado. Como determina a lei. Segundo fomos informados, o acusado possui dois cursos de nível superior e um mestrado em biologia, isso é o suficiente para assegurar seu direito à cela especial.
— Eu conheço muito bem a lei, senhora sei lá o seu nome. Mas, em primeiro lugar, ele não é um “acusado”. O Indivíduo foi pego em flagrante, sobre o cadáver, e confessou abertamente não só esse como outros seis assassinatos. Em segundo lugar, o nível de frieza e crueldade adotado por ele é tamanho que faz qualquer outro preso da penitenciária desta cidade parecer uma criança inocente. E em terceiro lugar, nós não temos cela especial! Se quiser uma, terão que remanejar outros quinze presos para outra cela já cheia, causando superlotação.
— Estamos esperando pela identificação do sujeito — interrompeu um dos jornalistas —. A população quer saber quem é esse assassino estudado.
— Esperem! Só vamos divulgar a identidade dele quando estiver em segurança.
— Companheiros, eu como sargento tenho uma proposta a fazer.
— Então diga, sargento. O que tens a sugerir? — disse o representante do judiciário.
— Bem, deixamo-lo aqui mesmo na delegacia, pois temos uma cela onde ele pode ficar só, mas mandamos divulgar na imprensa que o mesmo foi encaminhado para a penitenciária de Americano. O amigo do judiciário agiliza o processo de julgamento dele para que não permaneça mais de duas semanas por aqui e, enquanto isso, mantemos alguns homens de plantão para garantir sua segurança, caso a informação vaze e haja alguma tentativa de vingança.
— Hummm. Todos estão de acordo? — perguntou o delegado.

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Já era madrugada e nas casas, nas ruas, nas praças e nos bares, grupos de pessoas esperavam, com seus aparelhos de rádio ou TV ligados, a notícia tão aguardada sobre quem era o misterioso “Maníaco do Cereja”, como foi chamado quando ainda estava solto. Embora fosse uma cidade com pouco mais de sessenta mil habitantes, mantinha aquele ar de cidade do interior onde muita gente se conhece, conhecem as famílias uns dos outros e seus graus de parentesco. Assim, todos imaginavam que, quando divulgado, o assassino fosse alguém conhecido. E era.

PELO HORÁRIO DE BRASÍLIA SÃO UMA E VINTE E TRÊS DA MADRUGADA E TRAZEMOS COM EXCLUSIVIDADE NOTÍCIAS SOBRE O MANÍACO DO CEREJA. A DELEGACIA DE POLÍCIA CIVIL DE BRAGANÇA ACABA DE DIVULGAR A IDENTIFICAÇÃO DO HOMEM QUE ESTUPROU E MATOU SETE MULHERES NOS ÚLTIMOS ONZE MESES. PROFESSOR UNIVERSITÁRIO ATUANTE NA CIDADE HÁ 11 ANOS, SOLTEIRO, TRINTA E SETE ANOS, NASCIDO NA CIDADE DE TEÓFILO OTONI, MINAS GERAIS, TARCÍSIO XAVIER DE MOREIRA MATOS FOI TRANSFERIDO HÁ ALGUNS MINUTOS PARA A PENITENCIÁRIA DE AMERICANO. EM BREVE VOLTAREMOS COM MAIS INFORMAÇÕES.

A ansiedade que estava corroendo a população deu lugar a uma quase completa confusão. De repente, com exceção dos alunos e funcionários da universidade que conheciam o professor Moreira, todos começaram a se perguntar quem era o sujeito e como poderiam não conhecer alguém que morava na cidade há onze anos.
Moreira sempre foi muito caseiro, dedicado ao trabalho e aos estudos, e saía de casa geralmente para trabalhar ou comprar alguma coisa. Não tinha amigos e conversava com os colegas de trabalho e alunos apenas o essencial. Era um homem recluso e isso era tudo o que sabiam sobre ele.

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Acham que podem pôr medo em mim. Pôr medo em quem conhece as raízes do medo como a palma da mão. Eles não sabem o que é ter medo, não fazem absolutamente nenhuma ideia do que é o medo em sua essência. Nunca viram os vasos sanguíneos dos olhos se dilatarem frente ao horror, nem mesmo sentiram aquele gélido suor misturado ao calafrio ao sentir a ponta da lâmina da faca deslizar pelo dorso trêmulo. São uns maricas! Se eu esfregasse meu membro em suas caras se borrariam todos. Mas elas foram Deusas. Fizeram-me sentir medo como ninguém jamais foi capaz de fazer.

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— Acho que por essa noite tudo já foi resolvido, Delegado. Já dei ordens para quatro soldados ficarem de guarda até nove na manhã, quando outros quatro vêm para o revezamento.
— Ok, sargento. Com a notícia de que o Moreira foi encaminhado para Americano acho difícil que haja algum tipo de retaliação. Mas é sempre bom prevenir. Obrigado pelo apoio.
— Por nada.

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 Antes do alvorecer, uma chuva fina começou a cair sobre a cidade. Dos becos escuros e esquinas mal iluminadas começaram a sair pessoas armadas com fações, paus e foices. Dezenas, talvez uma centena. O soldado da guarita foi o primeiro perceber a aproximação da multidão e correu para dentro da delegacia trancando a porta e avisando os demais soldados de plantão. O delegado já não estava mais lá.
Do lado de fora um barulho assustador aumentava a cada minuto. Grades eram arrancadas, vidraças apedrejadas e, como um enxame, arrombaram a porta e iam destruindo tudo pelos corredores da delegacia. No hall que dá acesso às celas, encontraram a barreira com seis policiais armados gritando para que recuassem.

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Então, vieram cobrar a dívida. Imaginei que a estratégia do sargento não ia dar certo. Provavelmente fora algum dos jornalistas, o mais silencioso. Um deles era parente de um dos meus amores e não ia guardar segredo. Trouxe os seus para vingarem a sua. Talvez a loira, ou a morena dos cabelos lisos e pernas roliças. Quem sabe a mulata, a primeira. Não importa, o máximo que podem fazer é me mandarem para junto delas.
Como eu disse, todos esses que me julgam, que saíram de suas casas na madrugada para aplicarem a mim um sentença, são tão culpados como eu. Sim, matarão os policiais para chegarem aqui e entrarão por essas grades e me mutilarão até a morte. E vos digo em pensamento: vingarão suas mulheres pelos crimes que eu cometi, mas quem vingará a mim pelo crime que estão para cometer?

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PELO HORÁRIO DE BRASÍLIA SÃO OITO HORAS E QUINZE DA MANHÃ E TRAZEMOS COM EXCLUSIVIDADE NOTÍCIAS SOBRE O CASO DO “MANÍACO DO CEREJA”. A ASSESSORIA DE IMPRENSA DA POLÍCIA CIVIL ACABA DE INFORMAR QUE, DURANTE A MADRUGADA, CERCA DE CEM PESSOAS PORTANDO ARMAS BRANCAS E BARRAS DE MADEIRA INVADIRAM A DELEGACIA, POIS TIVERAM ACESSO À INFORMAÇÃO DE QUE O MANÍACO TARCÍSIO XAVIER DE MOREIRA MATOS AINDA SE ENCONTRAVA LÁ. O PRÉDIO FOI COMPLETAMENTE DEPREDADO E HOUVE CONFLITO COM OS SOLDADOS DE PLANTÃO, RESULTANDO EM QUINZE MORTES: TRÊS POLICIAIS, ONZE CIVIS E O MANÍACO DO CEREJA, CUJO CORPO FOI COMPLETAMENTE MUTILADO E ESPALHADO PELAS RUAS DA CIDADE COMO UM SUPOSTO ATO DE AVISO À POSSÍVEIS OUTROS CRIMINOSOS. EM BREVE VOLTAREMOS COM MAIS INFORMAÇÕES, FIQUEM AGORA COM O PROGRAMA “BOM DIA BRAGANÇA”.

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HISTÓRIA DE PENSÃO {RAPHAEL SOARES}


Gravura de Gustave Doré

Não tenho muitas lembranças de Altamira, quando estive lá por alguns meses no ano de 2009 prestando um serviço para a Norte Energia. Desembarquei na cidade no final do ano, em uma das mais cansativas e duras viagens terrestres que já fiz na vida, saindo de Marabá. Um frisson se instalara em decorrência da possível construção da usina, e uns diziam que Altamira se tornaria a Nova Belém, expectativa essa que, para o azar dos moradores e de todos os que foram viver na cidade em busca de um futuro de riquezas, nunca se concretizou. Foi para mim, de fato, decepcionante perceber que a maior cidade do mundo (ou o que eu achava ser na época, já que acabara de cair duas posições nesse ranking) era tão simples, e de certo modo tão descuidada. Ouvi dizer, um dia desses, que melhorara pouco em comparação com o grande aumento populacional que teve nesses últimos anos.
Instalei-me imediatamente em uma pensão simples, em que funcionava um bar e restaurante na parte de baixo na frente, com os quartos nos fundos e no segundo andar. Apesar do bar, o ambiente era relativamente tranquilo, sem muito barulho; de resto, ficaria apenas uma semana, de fato, na cidade, pois logo em seguida partiria pelo rio Xingu. Durante essa semana uma coisa me chamou muita atenção, que foi a onipresença de uma pessoa, minha principal lembrança de toda essa aventura, nessa pensão: um senhor, aparentando seus 80 anos, que estava lá logo quando o estabelecimento abria para beber um pouco e saia só quando fechava. Não falava com ninguém, ninguém se aproximava, nem criava qualquer confusão durante a semana inteira.
Após terminar o que havia ido fazer, retornei a Altamira e ainda o vi. Perguntei ao dono da pensão, um senhor aparentando seus 50 anos, quem era aquele homem que estava lá presente sempre. A resposta foi curta e simples: um homem triste e trágico, que faz o mesmo sempre desde que abri a pensão, se quiser saber a história dele vá e pergunte para ele. Foi o que fiz.
Por um tempo relutei se contaria essa história em primeira ou terceira pessoa, não sendo eu um literato nem capaz de memorizar plenamente todo o grosso da narrativa. Optei em escrever em primeira pessoa, pelo caráter sentimental e trágico dessa história, porém já alertando aos leitores que nem está embelezada pelo estilo nem é a transcrição fiel do que ouvi do homem, o que me seria completamente impossível hoje, exceto se o tivesse em minha frente para ditar-me as palavras. Também por questões éticas vou manter seu nome em sigilo, chamando-o apenas pela letra J.
Quando me aproximei dele, não fui recebido com rispidez como sua aparência e a resposta do dono da pensão me fizeram supor. Ele foi tranquilo e educado.
 – De onde vens, rapaz? – perguntou.
 – De Marabá. – respondi.
– Hum. O que vieste fazer aqui? Estudar na universidade, tentar ganhar dinheiro?
– Vim prestar um serviço, para a usina que vão construir.
E essa foi praticamente toda a nossa conversa. Ele soltou um “hum, que bom” e voltou a beber como se eu nunca tivesse falado com ele. Tentei perguntar o porquê de ele estar sempre lá, todos os dias, o dia inteiro. Por um tempo achei que ele não iria me responder, e quando eu estava próximo de ir embora o velho terminou o copo e perguntou se não queria ouvir sua história. Acenei com a cabeça e o homem narrou-me a história que segue:


A HISTÓRIA DO VELHO MAIS OU MENOS COMO ME FOI NARRADA
Meu nome é J. e nasci em fevereiro de 1949 em São Luís. Embora seja natural do Maranhão, vim para o Pará muito pequeno, de modo que nada lembro de nada que se refira a minha cidade natal. Meu pai também não gostava de falar do passado; o pouco que soube é que fora um homem de algumas posses em São Luís: uma boa casa e um comércio, mas por problemas com a família vendeu tudo e partiu para Belém com os quatro filhos e a irmã mais nova. Meus irmãos eram três, o mais velho seguido de duas mulheres, e eu era o filho mais novo.
Passamos poucos anos em Belém, dois ou três, quando, em 1955 meu pai novamente vendeu tudo o que conquistara e comprou algumas terras aqui em Altamira, porém extremamente longe do centro urbano. Lembro muito vagamente desse primeiro momento da infância, em que vivíamos despreocupados, correndo pelos campos enquanto meu pai vivia a trabalhar, arar e cuidar dos poucos animais que possuía. E trabalhava muito, e sabia melhor do que ninguém produzir riquezas a partir do seu esforço e sua inteligência rústica. Rapidamente víamos, em meio às brincadeiras e correrias, subitamente nosso mundo se expandir, a fazenda ficar cada vez maior, cada vez com mais animais e mais pessoas trabalhando ao nosso redor e nossa vida ficando cada vez mais confortável.
Ninguém da minha família nunca foi muito interessada em política. Não é como hoje, que todos falam de tudo, mas nem se importam com as implicações da política em suas próprias vidas e muito menos têm a empatia de se importar com as implicações práticas na vida do outro. Para nós era isso o que importava, e por isso a ausência de qualquer preocupação com os rumos políticos do Brasil. Antigamente, e principalmente no esquecimento em que sempre vivemos, nada que acontecia para o sul nos importava, simplesmente porque nada nos afetava. Os políticos nos ignoravam, e nós ignorávamos os políticos, e tentávamos viver sem nem nos dar conta de que eles existiam e de que nos deviam auxílio. Tudo isso mudou em 1964, quando meu pai soube da eleição (na medida em que a instauração de um presidente após um golpe contra outro pode ser chamada de eleição) de Castelo Branco.
Acredito que Castelo Branco foi o primeiro nome político que eu e meus irmãos ouvimos em casa desde sempre. Nosso pai ao saber que o militar era o novo presidente ficou eufórico de felicidade. Lembro muito bem de seu rosto quando comentava que “finalmente as coisas mudariam”, e que “o Brasil estava livre da ameaça comunista”. Não sabia de onde vinha tanto ânimo por causa de uma notícia como essa, não imaginava como um único homem tão distante poderia mudar a vida de todos no outro lado do mundo (do mundo-Brasil), e nem tinha a mínima ideia do que seria uma “ameaça comunista”, de modo que imediatamente dei pouca importância para o acontecimento e para o nome. Meu pai, no entanto, estava seguro de que as coisas mudariam.
E mudaram.
No ano seguinte meu pai conseguiu um grande montante de dinheiro, e aplicou imediatamente em suas terras, crescendo como nunca: ampliou a fazenda em uma proporção, para mim, na época, gigantesca e nos vimos subitamente cercados de inúmeros empregados.
Meu pai não era um homem ruim. Tratávamos bem todos os que trabalhavam em nossas terras. Todos moravam nos terrenos do pai, em instalações descentes. Não eram humilhados, eram bem alimentados e meu pai permitia que as crianças vivessem por lá. As crianças estudavam o básico também, com professores vindos de fora, como nós, pois vivíamos longe de qualquer possibilidade de uma escola regular. Muitas crianças e jovens decidiam trabalhar com o pai logo que tivessem condições para o trabalho, para ajudar seus próprios pais e deixar o meu ainda mais próspero. Na época isso era tudo o que conseguia apreender daquela realidade que começava a ver surgir diante dos meus olhos, e não me dava conta de que, apesar do tratamento humano que todos dávamos aos empregados havia um grande abismo que nos separava desses outros seres humanos. Havia uma discrepância agressiva no nosso nível para o deles, nas nossas posses para a deles, e nos nossos deveres para com os deles. Os empregados iam para a fazenda escapar da pobreza e da fome, e talvez prosperar, porém iam ao trabalho e, apesar de não passarem fome, receberem um abrigo (que não era próprio, mas nosso), serem vestidos e bem tratados, eram indiretamente reféns de tudo aquilo. O que recebiam não dava para pagar seu alimento, suas roupas, as ferramentas de trabalho e a moradia que lhes eram emprestadas, de modo que viviam em dívida branca com meu pai. Eram livres para partir, mas aonde iriam? Para a fome, a miséria, o relento? O regime de meu pai é hoje chamado de trabalho escravo, mas na época era simplesmente o trabalho. Num mundo completamente feudal como o do interior de Altamira da década de 60 não havia espaço para a noção de dignidade do trabalho ou escravidão, apenas a do trabalho. E com tudo isso, e com as poucas opções de escolha desses pobres homens, meu pai era uma das melhores, pois havia nele um pingo de dignidade que faltava a muitos dos seus (os que não eram os pobres). Meu pai não era um homem ruim.
Em meio a esse crescimento, meu pai pensou e planejou o futuro dos filhos. Seu primogênito, meu irmão, aprenderia com ele a cuidar da fazenda, e eu iria para o sul estudar, pois ele queria também um filho advogado. Com o tempo arrumaria maridos para as minhas irmãs, pois elas não deveriam nem cuidar da fazenda, nem estudar com outros rapazes, de modo que lhes restava a administração de um lar. Minha tia já não morava mais conosco desde que chegamos a Altamira, pois casara em Belém com um chefe de embarcação.
Estudei durante vários anos com ótimos professores, vindos de Belém, e alguns de meus amigos da fazenda, os filhos dos trabalhadores, me faziam companhia nos estudos, embora via-os gradativamente entrando no trabalho rural, enquanto meu destino seria estudar em São Paulo, para onde fui em 1973.
A vida na cidade grande foi uma grande revolução na minha vida e na minha cabeça. Tudo que havia visto, vivido e pensado até então tornava-se insustentável naquele mundo, que era de uma complexidade aterradora em “crise” e “milagres”. A presença dos militares era marcante na cidade, mas era ainda maior dentro das universidades, que talvez eram maior ameaça.
Nos meus primeiros meses na universidade sofri uma grande conversão. Se para meu pai e para nossa vida na fazenda o presidente da República (seria república?) era um anjo da guarda intercedendo por nós, lá virara o anticristo. A “ameaça comunista” tornara-se simplesmente esperança. Não vale a pena explicar detalhadamente os motivos da minha conversão, basta apenas dizer que foi o reflexo da minha experiência naquele lugar. Para nós, era a única alternativa para termos um mundo justo (diferente do mundo da fazenda, da cidade na época e mesmo o mundo de hoje), e nós e todos os outros teríamos de pagar o preço que fosse pela justiça.
Porém as coisas não eram simples. Não éramos organizados, ao contrário de nosso inimigo. Uns dentre nós preferiam a guerrilha para combater os militares e a propriedade privada, outros a construção de um exército efetivo para revirar o país em um caos construtivo, e outros (entre os quais me incluía) a conscientização do povo, que veria como nosso ideal era o único reto e justo, e faria o governo cair, embora a maior parte de nós apenas discutia entre si sem qualquer tipo de ação efetiva. Por outro lado, o exército era um exército coeso e possuía instruções muito claras e efetivas contra qualquer um de nossos planos. Muitos morreram, desapareceram, foram presos, deportados e nossa eficiência era reduzida a pequenos focos sem forças. Por outro lado, o presidente Médici, apesar de brutal, era muito popular entre as pessoas que mais precisavam de nós, e que nos odiavam ou nos viam com desconfiança. Éramos mártires, desejando apenas o melhor para os outros seres à custa de nossa própria segurança, e éramos perseguidos e desprezados. Apenas queríamos o melhor para todos, e hoje em dia penso que muitos governos totalitários e brutais pensavam exatamente como nós; talvez mesmo os militares.
Ficávamos cada vez mais fracos. Até o fim do ano os militares acabaram com praticamente todas as guerrilhas urbanas e rurais, abalando profundamente o movimento como um todo. Para nós era uma era de terror e medo, e para boa parte da população que compartilhava nossos temores éramos a causa.
A instabilidade e medo agravaram-se em mim em um nível impossível de suportar quando alguns dos meus amigos de universidade foram capturados no início de 1974. Sabíamos o que lhes aconteceria, e sabíamos todos que os militares capturariam todos nós. Não tive escolha. Com medo, fugi.
Fiquei um mês inteiro no Rio de Janeiro (durante o período em que Ernesto Geisel assumira a presidência), e de lá parti para Belém. Durante toda a viagem fui acompanhado pelo medo. Todos os dias sonhava que os militares me alcançavam, capturando-me gritando ódio. “Porco comunista! Vamos lhe ensinar uma lição que nunca mais vais esquecer!”. Sonhava com as torturas longas, o terror psicológico. E o pior de tudo, sonhava em sobreviver a tudo isso, e acordava, e sonhava novamente.
Chegando em Belém fui para a casa da minha tia, mas não imaginava o que me aguardava. Ao me ver minha tia atirou-se em mim chorando, e congelou em seguida. 
– O que aconteceu, minha tia? – perguntei.
– Ah, meu filho, não sabes o que eles fizeram?
– Quem? Os militares?
– Não, os bandidos.
– Que bandidos?
– Ah, meu filho. Teu pai e teus irmãos estão mortos. Mataram eles.
Para mim isso fora um tremendo choque. Meu pai sempre foi um homem forte, saudável. Para mim ele viveria para sempre. Também não era um homem despreparado. Para sobreviver no ambiente onde fizera dinheiro sempre investia muito em segurança própria para si e para os filhos. Não era possível sobreviver em Altamira, onde conflitos agrários e assassinatos por tais razões eram (e ainda são) comuns, e meu pai sabia muito bem tudo o que precisava para sobreviver: armas e homens para operá-las.
Apenas depois do choque pude conversar melhor com minha tia sobre o ocorrido. Mataram todos. Minhas irmãs mortas, meu irmão. Meu pai, empregados. A plantação queimada, animais mortos.
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Os dois últimos parágrafos foram os mais difíceis. O narrador, nesse ponto já chorava, mal articulava os sons. Após a narrativa que me apresentou disse que eu já poderia ir embora, que a história já havia acabado e que não tinha mais nada a falar. Nesse dia J. saiu mais cedo da pensão.
Peço desculpa aos leitores pelas minhas eventuais infidelidades para com um narrador que, para mim, foi impressionante. Algumas alterações são obvias, pelo apelo visual (as hesitações e repetições removidas, por exemplo, bem como a escrita dos anos integralmente ao invés do “sessenta e quatro” dito pelo narrador), mas outras menos óbvias. Espero que quem me leia possa aproveitar dessa narrativa, como uma experiência vivida e uma reflexão emotiva sobre a mesma. A veracidade do que foi registrado não pode ser comprovada, pois baseia-se na pura autoridade de J., que é apenas mais um homem bêbado, amargurado e sem importância no mundo, mas o leitor não pode me culpar de desonestidade: tentei sempre, quando não fui traído pela memória, registrar tudo aquilo que me foi dito, se não no estilo, o que me é impossível depois de tanto tempo, ao menos no conteúdo narrativo.

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