O CLARINETISTA {GIROTTO BRITO}



“Envolve-te o crepúsculo gelado
Que vai soturno amortalhando as vidas
Ante o repouso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.”
Trecho do poema “Velho”, de Cruz e Sousa.

É fato que a arte pode nos dar momentos de prazer extremos, cujo corpo se desliga do meio em uma espécie de hipnose consentida que nos leva a um orgasmo espiritual rápido e viciante. Esse sempre foi o poder da arte aos sentidos humanos e foi assim que sempre enxerguei os verdadeiros artistas: como produtores de sentimentos e sensações, agradáveis ou não. A arte, no entanto, pode ser bem mais que isso. Há quem diga que a música, por exemplo, nos seus delírios extremos, pode abrir os portões do céu e do inferno, assim como a literatura, a pintura e qualquer outra arte em seu apogeu. Digo isto, porque foi através da música que vivenciei na mocidade algo que por anos fiz questão de esquecer. Algo que ainda hoje relembro com certo temor e calafrio.
Foi numa das tantas aventuras de minha vida que fui morar na cidade de Bragança, no início da temporada chuvosa de 1936. Havia recebido uma carta de um amigo que há tempos não mantinha contato. Nela ele dizia estar morando numa bela e próspera cidade nas entranhas da Amazônia, onde as oportunidades eram muitas e, junto ao seu endereço, fez-me o convite para ir morar com ele. Desempregado e atolado em dívidas, achei conveniente aceitar o convite de Antônio.
Desembarquei no porto de Belém durante a madrugada e logo que amanheceu peguei o trem para Bragança. A capital era uma cidade imensa e encantadora, rodeada de água por todos os lados, com seus casarões coloniais, trilhos, bondes, zeppelins e uma paisagem das mais exóticas que já vira até ali, sem falar do trem que cortava a selva como uma tesoura a uma seda, ziguezagueando num espetáculo surreal. Não era bem aquilo que eu havia imaginado quando ainda estava em Santos.
Quatro vagões cheios de gente dos mais variados lugares. Algumas fileiras mais à frente havia um grupo de espanhóis tagarelando nervosamente, como se estivessem arrependidos do destino que estavam tomando. Logo atrás, um grupo de pessoas que carregavam grandes peneiros de farinha, todos amorenados e com aparência indígena. Dois senhores bem vestidos sentavam-se ao meu lado, do outro lado do corredor, e falavam de como poderiam ampliar o escoamento de alimentos com a construção de mais um ramal para a ferrovia. Pela janela, grandes árvores passavam continuamente, num cenário selvagem e atípico para mim. O barulho era intenso: o apito e o ronco da locomotiva, pessoas gritando ao conversar; Era ensurdecedor, mas ao mesmo tempo agradável para quem está experimentando pela primeira vez. Lembro bem quando abri a janela para observar melhor a paisagem e as centelhas da Maria Fumaça trazidas no ar entraram e marcaram minha vestimenta com pequenos sinais de queimadura. Foram cerca de dez horas de viagem até o destino. Na época, uma cidade em desenvolvimento por causa dos investimentos em produção agrícola, mas ainda um lugar esquecido do país.
Quando desci na estação, ainda antes do anoitecer, fiquei encantado com a cidade. Um clima tropical excepcionalmente agradável, bem ventilado e com uma estranha umidade no ar que fazia mesmo o sol das duas parecer ameno. A arquitetura da maioria das residências era portuguesa, algumas nitidamente espanholas, todas, no entanto, muito bonitas e excêntricas ao que eu estava acostumado a apreciar.
Diz-se que nos rostos belos é que se escondem as almas horrendas. Nos corpos angelicais é que moram os demônios. Mas não parecia ser o caso daquele lugar.
O endereço da carta me levou a uma pequena casa a cinco quarteirões da estação, uma construção antiga, de paredes cinzentas, úmidas e mofadas. Não sei definir que tipo de arquitetura era aquela, não era portuguesa, nem espanhola, mas clássica, de grandes portas e janelas com detalhes bem desenhados em suas molduras, embora bastante desgastadas pelo tempo. Do lado da porta a numeração conferia com o endereço que Antônio me enviou: Rua General Gurjão, 1099.
Bati várias vezes na porta e não fui atendido. Não havia ninguém em casa. Sentei do outro lado da rua, na sombra de uma grande castanheira e esperei. Deve estar no trabalho — pensei. Não demorou muito o sol já se punha e um velho apontou na esquina, caminhando rápido e aparentemente assustado com alguma coisa. Parou na frente da casa e começou a revirar os bolsos, então sacou um molho de chaves e abriu a grande porta que ringiu num som absurdamente agudo. Abordei-o antes que ele pudesse fechar a porta. O velho levou um susto ao me ver. Olhou para mim como quem tentava lembrar-se de algo, mas logo desviou o olhar.
— Não, aqui não mora nenhum Antônio.
— Mas o senhor conhece algum Antônio Miguel Souza Castro que more aqui nesta rua? Ele me deu esse endereço.
— Não, meu caro. Eu sempre morei nesse endereço. Desculpe-me, mas tenho que entrar. — respondeu o senhor de aparência nervosa e tomado de um furor sombrio que não pude entender.
Sem mais conversa ele bateu a porta e me deixou na rua sem saber o que fazer e para onde ir. Olhei ao redor, a rua mal iluminada se perdia na penumbra dos becos. Por alguma estranha razão as ruas estavam desertas, como se ali as pessoas temessem a escuridão. Não conhecia ninguém, nem mesmo a cidade, não sabia onde poderia encontrar uma pousada e não havia ninguém nas ruas a quem eu pudesse perguntar. Peguei minha mala e ia me dirigindo novamente à estação ferroviária para pernoitar por lá quando uma voz feminina e áspera chamou por mim.
— Ei, moço! Você não é daqui, é? Está procurando um lugar pra ficar?
— Sim, sim, senhora. Sabe onde posso encontrar uma pousada ou algo do tipo?
— Alugo quartos e tenho um aqui que você pode ficar, se quiser. Pelo menos até encontrar seu amigo.
Velha maldita, estava ouvindo minha conversa — pensei.
 — Agradeço, minha senhora. Eu estava mesmo procurando um lugar para pernoitar.
— Venha, então. Acompanhe-me.
O quarto em questão ficava ao lado da casa do velho, colado parede com parede. Era um quarto pequeno e úmido, com cheiro de mofo, uma cama, um armário e uma pequena escrivaninha. O banheiro ficava do lado de fora e era comum a todos os hóspedes, embora parecesse não haver outros hóspedes.
Tomei um banho e voltei para o quarto. Não demorou a senhora bateu na porta trazendo uma refeição e um copo d’água.
— Pode me chamar de Judite, senhor. Como devo chama-lo?
— Jonas, pode me chamar de Jonas.
— Jonas de quê?
— Jonas Xavier.
— Pois bem, trouxe seu jantar. Não se preocupe que não irei cobrar por ele. Já comeu Maniçoba alguma vez na as vida?
— Não, nunca.
— Então irá comer hoje. Deixarei aqui na escrivaninha. Tenha uma boa noite.
Dizendo isso, a senhora Judite, que aparentava cerca de quarenta anos, saiu do quarto e encostou a porta.
A tal Maniçoba era uma comida verde-escura, de cheiro forte e aparência nada amistosa. Relutei por algum tempo a experimentar, mas a fome era tamanha que tive que abandonar qualquer preconceito ou frescura. Terminei de comer, deitei na cama sob o mosquiteiro empoeirado e adormeci.
Ainda hoje não sei dizer se eu estava acordado ou se fora apenas um sonho obscuro e perturbador. Lembro apenas que acordei na madrugada com o som de um clarinete a tocar uma estranha de sedutora música. Algo como uma sonata, melancólica, de certa forma deprimente e em alguns momentos doentia. Fiquei ali, inerte, de ouvidos atentos na música que adentrava a escuridão daquele quarto úmido. Levantei lentamente e fui me aproximando da parede, o som foi ficando mais forte, até que minha orelha encostou-se à parede fria. Vinha de lá, exatamente da casa ao lado, da casa do velho.
Aquela estranha música me atormentava e minha inquietação se tornou ainda maior quando lembrei que Antônio também era clarinetista. Seria muita coincidência. Cada nota, cada refrão, cada pausa me dava calafrios. E como se já não fosse o bastante, de repente, num pequeno trecho, reconheço um velho adagio que Antônio sempre tocava em seus ensaios. Aquilo foi como uma estaca em meus ossos. Era ele! Só podia ser ele!
Vesti a calça com pressa, coloquei meus óculos e abri a porta para ir à casa ao lado. Num susto ainda maior, quase caí de costas ao ver ali, em meio à penumbra do luar da madrugada, Judite em pé à minha porta.
— Isso não são horas para andar por essas ruas, senhor Jonas.
Demorei alguns segundos para recuperar as forças, minhas mãos estavam geladas e trêmulas.
— Sei disso, senhora. Mas ouvi uma música que pareceu muito com o que meu amigo Antônio tocava e acredito que ele esteja na casa ao lado.
— Isso não é possível, senhor. Aqui ao lado mora o velho Tião e eu não escutei música alguma.
— Como assim? Estava tocando até agora a pouco!
— Não houve música nenhuma. Seu Tião é pescador, só sabe pescar, nunca tocou nenhum tipo de instrumento.
— A senhora deve estar enganada, eu...
— Sem mais, senhor. Cuido desta pensão e não permito que os hóspedes fiquem perambulando nas ruas pela madrugada. Se quiser continuar aqui trate de voltar para o seu quarto! — respondeu a mulher já com um tom alterado.
Não tive opção senão voltar para o quarto e me deitar. Naquela noite não ouvi mais nenhuma música.
No dia seguinte, procurei por toda a vizinhança qualquer sinal da existência de Antônio naquela cidade, mas ninguém jamais ouviu qualquer coisa sobre ele. Simplesmente não havia um clarinetista sequer por aquelas bandas. Fui também à Escola Monsenhor Mâncio Ribeiro, que diziam ser a melhor escola da cidade, onde, em carta, Antônio me prometeu o emprego, mas lá também ninguém o conhecia. Voltei para a pensão já no entardecer, quando o sol formava um bonito espetáculo no horizonte além do rio. Sentei no banquinho em baixo da castanheira e fiquei esperando o velho Tião aparecer.
Era impressionante como os habitantes da cidade temiam a noite. Durante o dia as pessoas se amontoavam nas calçadas transitando de um lugar para outro, aos montes, e conversavam nas esquinas, gritavam oferecendo produtos, carregavam os vagões do trem com frutas, verduras e quinquilharias. Mas quando a noite ia chegando todos misteriosamente se escondiam em suas casas. A rua estava novamente deserta e o último, além de mim, que vi caminhar pela calçada foi o velho Tião, que saiu de um beco com pressa, como quem deseja chegar logo em casa, ou como quem está sendo perseguido por alguém. De um salto apressei-me para alcançá-lo.
— Senhor! Senhor! Preciso falar.
O homem pareceu me ignorar a princípio, mas quando viu minha persistência virou-se e me encarou com olhar severo.
— Não tenho nada para falar com você!
— Desculpe-me, senhor, a intromissão. Como disse ontem, estou à procura de um amigo e, durante a madrugada, acabei ouvindo uma música que me pareceu ter sido tocada pelo próprio, aí da sua casa. Por isso peço encarecidamente que, se o conhece, diga-me onde posso encontrá-lo.
O velho olhou para os lados observando se não havia alguém além de nós e começou a revirar os bolsos à procura da chave.
— O senhor não vai me dizer nada?!
Quando disse isso, subitamente o velho agarrou-me o braço com uma força impensável para alguém daquela idade.
— Saia dessa cidade! Está me ouvindo? Esqueça aquela maldita carta e saia dessa cidade!
Com um empurrão ele me soltou e entrou em sua casa. Fiquei sem ação, ali, calado, observando a imensa porta de madeira fechada à minha frente. Como ele poderia saber da carta? Com certeza ele conheceu Antônio, não havia outra explicação.
Voltei para o quarto da pensão. Judite já me esperava com um olhar reprovativo e uma bandeja com o jantar e um copo d’água.
— Espero que tenha gostado da Maniçoba. Hoje trouxe Sopa de Turú para você experimentar. Tenha uma boa noite e lembre-se: nada de ficar saindo na madrugada, não é seguro. — disse e saiu encostando a porta atrás de si.
A sopa não era ruim, e o Turú, apesar da aparência nojenta e viscosa, típica de todo anelídeo, tinha um sabor peculiar e bom.
Naquela noite eu não quis dormir. Decidi esperar até que a música começasse — se é que iria começar. Talvez fosse loucura minha, ou um pesadelo — não sei bem —, apenas sentei, abri um livro e comecei a ler alguns poemas. O tempo já não contava mais. Perdi-me em versos, parágrafos, devaneios e ansiedade. A música não surgia, nenhuma melodia atravessava aquelas paredes centenárias. Ora ou outra as pálpebras se fechavam e num instante se abriam, o corpo estava cansado. Olhei para o relógio, lembro bem, estava parado. Não sei se por falta de corda ou se o próprio tempo havia se rendido ao cansaço. Lá fora um silêncio opressor, torturador, que fazia daquele cômodo um quarto-sepulcro, uma lápide para uma morte noturna e breve.
Despertei num susto. Havia cochilado. Lá estava ela, a inquietante melodia. Ainda baixinho, mas nítida aos meus ouvidos apurados. Levantei e encostei novamente o ouvido na parede. A mesma música, as mesmas notas, as mesmas pausas. Era Antônio! Só podia ser ele.
Não arrisquei sair pela porta da frente, Judite poderia estar lá como na noite anterior. Abri a janela dos fundos e saltei e, antes que eu pudesse me dar conta do que havia feito, já tinha pulado o muro e estava no quintal dos fundos da casa vizinha. Estava escuro, sem luar, sem vento. Uma noite quente e abafada. O quintal era sujo e cheio de entulho. Móveis velhos, livros rasgados, e objetos indistinguíveis se espalhavam no chão de terra batida. Aproximei-me da porta, a música parecia cada vez mais alta e intensa, como que se pudesse sentir minha aproximação, de tal modo que ao tocar a maçaneta as notas pareciam ser tocadas em um frenesi aterrorizante. Respirei fundo e girei a maçaneta. Estava destrancada! Surpreendentemente aberta.
Entrei no cômodo escuro e fui seguindo a música e uma fraca luz que parecia dançar ao som da melodia. Lá estava, de costas para mim, sentado numa cadeira. A luz vinha de uma lamparina sobre uma mesa de canto e o quarto, apesar da penumbra, podia se ver, possuía apenas uma cama, a cadeira e a mesinha.
O clarinete gritava sem parar aquela música agourenta e os dedos pareciam desumanamente flexíveis e ágeis. O suor escorria pelo seu pescoço e, até onde eu podia ver, por parte do rosto. Dei alguns passos na direção do velho para poder me explicar, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa a música subitamente cessou. Um silêncio cortante ganhou toda a casa por um insignificante período de tempo, quebrado então pelo tic-tac do meu relógio que estranhamente voltou a funcionar. Era três e quinze da madrugada. Pensei em voltar antes que fosse notado, mas já não era mais possível.
— Eu disse que era para ir embora dessa cidade — soou a voz fraca e rouca do velho sentado na cadeira.
— Desculpe-me, senhor, eu sei que não tenho o direito de invadir sua ca...
— Eu disse que era para ir embora! — interrompeu o velho com um grito aterrorizante — Não vês que estou tentando te livrar dessa maldição?!
— Que maldição? Só quero encontrar meu amigo e sei que o senhor sabe onde ele está. Achei que era ele tocando esse clarinete, mas vejo que me enganei. Só quero saber onde ele está.
— Você não entende — dizia num sussurro quase inaldível—. Se ficar aqui, se tornará como eu: um amaldiçoado! Um prisioneiro desta cidade de almas perdidas.
— Senhor, não sei do que está falan...
Antes que eu pudesse terminar minha frase, o velho Tião levou o instrumento aos lábios e começou a soprar. Uma nota atrás da outra e a melodia foi tomando novamente aquela forma sombria, frenética e assustadora. O velho olhou para mim e, para meu desespero, seu rosto foi tomando estranhas formas, desfigurando-se, remodelando horrivelmente cada traço, cada feição. Os cabelos grisalhos e compridos escureciam e diminuíam conforme os dedos se moviam sobre os orifícios do instrumento, as rugas se moveram elasticamente de modo que eu não as via mais, o contorno dos olhos clarearam e as retinas mudaram do preto para um castanho-esverdeado. À minha frente, com o clarinete nas mãos, não havia mais um velho e tísico pescador, mas o jovem e altivo clarinetista: Antônio!
Horrorizado com aquela metamorfose horrenda e inesperada, cambaleei para trás na escuridão, esbarrando na mesa da cozinha. Aquela música impressionante continuava e parecia romper meus tímpanos. Horrorizado, gritei, mas meus gritos eram abafados pelo som esmagador daquele instrumento.
Os olhos de Antônio pareciam vidrados, observavam o nada, como em hipnose ou possessão. Tateei no escuro tentando encontrar o rumo da saída, tropecei numa cadeira e caí. Por algum instante fiquei ali, estendido no chão, tonto. Quando recuperei os sentidos, vi o relógio à frente do meu rosto: novamente parado! Levantei num salto e corri sem pensar para onde. Pulei o muro e corri pelas ruas estreitas, becos, calçadas com paralelepípedos, ainda na escura madrugada, entre casarios cinzentos e silenciosos. O som da melodia foi ficando para trás, diminuindo a cada pernada. O horror foi tamanho que mesmo sem saber para onde estava correndo as pernas me levaram até a velha estação ferroviária.
No amanhecer do dia tomei o primeiro trem rumo à Belém e de lá voltei para minha cidade apenas com os documentos e o dinheiro que carregava nos bolsos.

♠ ♠

Eis as horríveis lembranças que trago comigo, de um amigo aprisionado nas entranhas de uma cidade amaldiçoada, de um corpo que só consegue voltar a si ao som daquela música infernal.

Ainda hoje, no entanto, penso como poderia tudo aquilo ter acontecido e tento entender o motivo de meu amigo ter me enviado aquela carta. Depois de tanto tempo começo a duvidar de minhas próprias convicções, de minha memória e até de minha lucidez. Talvez eu mesmo ainda estivesse lá, aprisionado, se Antônio não me dissesse a tempo que eu deveria ir embora. Talvez eu mesmo fosse hoje mais uma alma atormentada ao som daquele frenético clarinete. Malditas lembranças! Maldita melodia que não sai da minha cabeça!

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