A ÚLTIMA NARRATIVA QUE OUVI MEU AVÔ CONTAR {RAPHAEL SOARES}

Gravura de Gustave Doré

Nunca gostei do interior, desde os primórdios da minha infância. Embora seja de família tradicionalmente interiorana, vivi na cidade desde que consigo me lembrar. Embora meu pai também não gostasse de retornar a seu lugar de nascimento, sempre íamos ao interior na Semana Santa.
Para uma criança totalmente criada na cidade, era penosa a estadia na vila de meus avós: não havia nada para fazer, e as crianças daquele lugar pareciam de um universo completamente distinto do meu; eu estava só, e absolutamente sem linguagem comum com meus familiares. A única pessoa com quem gostava de conversar era meu avô, mas meu pai não suportava que eu ficasse muito tempo com ele. Na verdade, meu pai não gostava, em absoluto, da própria família, por razões religiosas, e pelas mesmas razões tinha de respeitá-los. Lembro de ouvir diversas vezes meu pai falar que a fé confusa dos simples beirava a heresia.
Meu pai foi o que na época era tido como o comportamento mais exemplar possível para um cidadão, e hoje tido como o ápice da intolerância: um ortodoxo. É muito curioso o como esse adjetivo foi mudando de significado, e em absoluto significando o mesmo, no decorrer dos anos que passaram da minha infância até minha velhice. Meu pai chorou profundamente a morte de João XXIII. Ele sempre dizia:
 Foi-se o último homem digno de ocupar a cadeira de Pedro.
E quando eu já era adulto acrescentava:
 Não fosse a morte repentina de João XXIII o mundo poderia ter tomado outro caminho. A fé seria mais sólida e o demônio não adentraria os portões da Igreja.
Nunca fui capaz de compreender exatamente o porquê de meu pai pensar desse modo, mas saber que tal era seu pensamento é o bastante para entender os problemas que envolviam o relacionamento de meu pai com meu avô.
De onde meu pai desenvolveu sua extrema ortodoxia também não sou capaz de dizer, só sei que não foi de meu avô. Se os interioranos humildes possuíam uma crença eclética e tendente à superstição inofensiva (o que parece ser um dos pilares da igreja, como nos apresenta o Catecismo), em meu avô adquiria um grau de liberalismo religioso que perturbava meu pai. Marcos, se posso chamar meu avô pelo nome, acreditava que todos os caminhos levavam a Deus, e que de certo modo tudo, até aquilo que era errado no mudo fazia parte da vontade Dele; meu pai, por outro lado, não concebia a ideia de que todos poderiam estar corretos, mas que apenas uma verdade existia, e o caminho a Deus era unívoco, e "desviar-se da reta doutrina era ir contra a vontade de Deus".
(Pode nos parecer um tanto exagerado hoje em dia, mas lembro bem que meu pai falava nestes termos, e suas lições eram quase homilética. Muitos dos conhecidos da família acreditavam que meu pai poderia ser um grande padre, quiçá bispo ou cardeal, se não houvesse encontrado minha mãe. Papai respondia gentilmente que "todos são chamados segundo o seu propósito, e cada um de acordo com sua vocação". Quase ninguém lia a Bíblia naqueles tempos, e poucos sabiam que a sabedoria de meu pai, que adorava falar em termos bíblicos, era uma paráfrase de Paulo)
Dentre as inúmeras faltas que meu pai imputava a meu avô estava a de que, com seu liberalismo religioso, não se importava com a formação moral e o ensino do certo e do errado aos filhos, que viviam suas vidas desregradas, a exceção do meu pai, que foi para a cidade, tornou-se empregado e constituiu uma família sólida. Segundo meu pai, os outros irmãos não seguiram o mesmo caminho por falta de um catecismo adequado, erro que ele próprio não queria cometer com os filhos. O fato de meu avô ter sido protestante na juventude fazia com que meu pai sempre tratasse o vô Marcos como se fora protestante a vida inteira. Os outros membros da família se diziam católicos mas sequer iam à missa: seguiam apenas algumas festividades de devoção, num ritual semi-dionisíaco. Papai sempre citava os santos ao falar da missa, citando Santo Anselmo ao dizer que “uma só Missa oferecida e ouvida em vida com devoção, para o próprio bem, pode valer mais que mil Missas celebradas na mesma intenção, depois da morte”, e um outro santo que nunca mais lembrei, que dizia algo como “a missa está no centro da fé assim como a morte de Cristo”.
Esses motivos faziam com que meu pai não gostasse que eu passasse muito tempo com meu avô (temia que eu fosse desviado do “reto caminho”), e meu avô, com suas histórias mal acabadas e antigas sempre me pareceu a pessoa mais interessante daquele universo completamente distinto do meu.
 Naquela Semana Santa, era sábado de aleluia se não me falha a memória, e nessa idade ela tende a falhar muito, meu pai teve uma briga séria com meu avô por alguma razão qualquer (crianças não se metiam na conversa dos adultos, naquele tempo, sob pena de cipó), e nós, os mais jovens, fomos obrigados a deixar o recinto para “brincar lá fora”. Meus primos gostavam de brincar na beira do rio, no lodo, lugar onde nunca me senti nem um pouco confortável. Resolvi afastar-me deles, e andei um pouco pela vila, embora, pensava eu, não haveria muito a ver. No entanto, em meio a minha caminhada aleatória me deparei com uma construção singular: um grande sobrado, muito maior que as maiores casas que já havia visto por aquelas bandas, e de aparência tão antiga que lembrava as construções mais nobres da Cidade Velha. O sobrado parecia abandonado, no entanto aparentava ser muito melhor em estrutura que muitas casas por ali. Fiquei pensando se meu avô saberia a história desse prédio, um casarão antigo desses devia ter muitas histórias, mesmo inventadas, num lugar como aquele. Conhecia bem meu pai: depois de uma briga como aquela, todos sairiam por algum tempo e deixar meu avô só. Era uma boa oportunidade para que ele me contasse alguma das histórias do sobrado.
Quando comecei a falar do que vira, perguntando o que era aquele prédio e porque estava abandonado, fui surpreendido com o comportamento de meu avô, que olhou para longe, como que perdido no tempo. Então, depois de um tempo, disse de forma clara e direta.
– Aquele prédio era uma antiga igreja. Está abandonado porque sofreu um incêndio, tempos atrás.
E ficamos sem falar alguns instantes. Eu olhava meu avô com perplexidade, e ele simplesmente fitava a janela, distante. Pensei que a briga com meu pai o tivera deixado muito abalado, mas percebi que por algum motivo havia algo mais em tudo aquilo. Meu avô era um grande narrador de histórias, e não evitava contar logo alguma narrativa, geralmente fantasiosa, sobre qualquer coisa que eu comentava, mesmo se fosse uma simples formiga.
– Mas vô, aquilo não parece nem uma igreja, e nem parece que foi incendiado. – indaguei, tentando fazer com que meu avô falasse um pouco mais.
– Por causa de não haver uma cruz? – ele me perguntou sorrindo, e passou a mão na minha cabeça. – Não era uma igreja católica, mas uma protestante.
Naquele momento imaginei que aquela havia sido a igreja em que meu avô ingressou na juventude, e a história dela, de certo modo, era a de nossos conflitos familiares. Fiquei ainda mais intrigado.
– E ela foi sim incendiada, embora não tenha se destruído de todo. Mas sabe como é o povo daqui, cheio de superstições! Ninguém teria coragem de derrubar a igreja para construir uma nova casa ou qualquer coisa. As pessoas nem sequer gostam de morar perto dela. Mas posso assegurar com toda a certeza que não é uma história interessante para um jovem como você. – Prosseguiu, terno, meu avô.
Passado aquele ponto, nada me demoviria de ouvir a narrativa que me fora apresentada, e que ora relembro. Pedi que meu avô contasse, independente de ser ou não uma história interessante.
*
– Quando eu ainda era moleque chegou um tal de Alguma-coisa Berk... Berken ou coisa parecida. Era um missionário vindo do estrangeiro. Não sei exatamente o que o trouxe cá para o fim do mundo, mas veio com a clara intenção de construir uma igreja.
– Essa que vi hoje?
– Não ainda. Ele construiu uma em outro canto, bem ao lado do campo de futebol, próximo ao aonde fostes com teus primos. A princípio, a comunidade deu muita importância à chegada do estrangeiro. Na época mal víamos pessoas chegadas de Belém, que não fossem, de algum modo, filhos ou netos da terra. Ainda hoje é difícil estranhos virem aqui, e quando vem são vistos com desconfiança. Não era diferente naquela época. O missionário se estabeleceu perto do atual campinho e montou sua casa com um espaço para as pregações. Como o povo é dado a fofocas, costumavam dizer que esse estrangeiro era um criminoso fugido de sua terra. Meu pai sequer permitia que conversássemos com ele. Lembro-me que certa vez o pastor veio a nossa porta, mas papai o expulsou asperamente, e pediu que ficássemos longe. Era bem jovem, e não lembro bem de muitas coisas relacionadas a ele nessa época, apenas que ele era muito diferente (era loiro, muito mais alto que qualquer um daqui e muito branco). Também falava de um jeito muito engraçado. Não lembro, mas sei que na época o padre Miguel fez calorosos sermões contra esse pastor, o associando ao próprio mal e às profecias do apocalipse. Sei porque depois de tudo o que aconteceu, e desse tempo lembro bem, o mesmo padre, já bem velho, retomou esse tema, à moda dos pais reprimindo os erros dos filhos com um típico “eu avisei”, e o povo em coro respondia “sim! ele avisou”.
– E o que foi que aconteceu, vô?
– Seja paciente, menino. Não ponha os cavalos na frente dos bois.
– Desculpa, vô. Mas o senhor falou, falou e não contou nada da igreja nem de nada. Em pouco tempo o pai chega e não vai querer me ver ouvindo essa sua história.
Meu avô ficou algum tempo calado. Pouco tempo, mas dava para ver a tristeza em seus olhos, uma que talvez fosse eterna naqueles instantes. Respondeu tentando sorrir:
– Não se preocupe, filho. Seu pai está com seu tio, e só vem amanhã.
Ficamos algum tempo nos olhando, sem dizer uma palavra. Não sabia o que dizer naquela ocasião, nem sequer entendia o porquê de estar desconfortável com tudo isso. Só queria que meu avô continuasse a história. Não demorou muito para prosseguir.
– Pois bem, vou continuar a contar, e vê se não me interrompe.
– Tudo bem –. Respondi.
– O missionário ficou ainda algum tempo com a pequena igrejinha e uma meia dúzia de fiéis, todos vistos com desconfiança pelo resto do povo, que ainda era profundamente católico. Porém, quando eu era mais jovem, devia ter uns 19 ou 20 anos,  as coisas começaram a mudar bruscamente. A desconfiança sumiu, e com ela o número de protestantes na vila foi crescendo tanto que eles deviam ser em número quase igual aos católicos, e tudo isso repentinamente.
– Foi na igreja dele que entraste na juventude? Era a igreja que foi incendiada?
Meu avô me repreendeu com olhar naquele momento, sem dizer mais uma palavra. Percebi que havia o interrompido outra vez, e pedi desculpas. Prosseguiu:
– Com o número de fiéis crescendo cada vez mais, logo o pastor abandonou a igreja que havia fundado e construiu aquele belíssimo prédio que viste hoje. Nessa época eu havia me tornado um dos jovens a se converter ao protestantismo de então. Não consigo lembrar exatamente, mas algo no discurso do pastor era profundamente persuasivo. Em pouco tempo mesmo aquela igreja grande ficava lotada em dias de culto, e foi uma época bastante animada por aqui, apesar da grande rivalidade que beirava a violência que existia entre os católicos e protestantes, agravada com o tamanho da vila. Lembro bem que nessa época conheci sua avó.
E meu avô ficou bastante tempo olhando para si mesmo, pensando não sei o quê. Fiz o possível para não lhe falar nada, até que lhe perguntei o que acontecera depois.
– Muita coisa aconteceu. O pastor foi ficando com aparência abatida e doente. Todos repararam também que sua habilidade de persuadir e convencer se esgotava cada vez mais. Muitos boatos surgiram na época em relação a um suposto relacionamento com uma de suas fiéis, e até com um dos jovens da igreja; os mais fiéis pensavam se tratar de difamação perpetrada pelos padres, mas nunca ninguém provou nada de nada. Até que um dia o pastor teve um surto completamente assustador num culto, que estarreceu profundamente todos os que lá estavam, incluindo a mim. Parecia um louco gritando palavras incompreensíveis, que alguns interpretavam como um milagre, outros como uma possessão e outros como ataque de loucura. Ouviu-se, na mesma noite mais um longo berro do pastor dentro da igreja –. E depois de uma breve pausa: – e assim acaba a história.
– Como assim acaba a história?
– A história termina aqui. Não há nada mais a contar.
– Mas e o que aconteceu com o pastor? E com a igreja? E o incêndio?
– Nunca mais vimos o pastor. Sem seu pastor, as ovelhas permanecem onde estão até que outro pastor cuide delas ou um lobo as venha devorar. O incêndio não parece ter nada a ver com isso. Aconteceu alguns anos depois, e aconteceu espontaneamente.
– Mas ninguém sabe de nada? Não há relação entre o sumiço do pastor e o incêndio? – pausei um pouco, demonstrando toda a minha decepção. – Que história mais sem graça!
– Não disse que seria uma história engraçada. Poderias procurar outros narradores na cidade, tão velhos como eu, para contar essa história. Dependendo de quem conta, muita coisa muda. As coisas podem estar relacionadas. Para uns o pastor era um servo do pé-de-pato, enquanto para outros ele havia feito um pacto para conseguir os fiéis, e o malvado veio buscar sua paga depois do décimo terceiro ano. No fundo é bastante improvável que qualquer um consiga lembrar a data exata em que ele veio para cá, e por essas bandas é muito difícil de se perceber a passagem dos anos; seu pai, adepto dessa teoria nasceu alguns anos depois, e nem poderia saber disso se não por terceiros. Naquela época ainda mais. Outros narrariam um romance, em que o pastor foge e logo após sua amada, ou amado, fugiria atrás, para um lugar de fantasia em que ninguém mais os condenasse; alguns até especularam candidatas para essa paixão. Outros contam de um assassinato, talvez até articulado pelos seus próprios correligionários, ou por um membro da igreja católica. Lembras do compadre Matias? – acenei com a cabeça que lembrava – pois então, o finado Matias falava que viu um disco voador levando o pastor para o espaço. Também, o velho Matias bebia muito.
E meu avô caiu na gargalhada. E logo após prosseguiu.
– Enfim, meu filho. Se quiseres uma história fascinante, que ligue o incêndio ao sumiço, eu não sou a pessoa mais adequada a contar. Pergunte para outro dos velhos, que vão dominar a arte de contar histórias melhor que eu. Eles podem acrescentar detalhes, e contar todos os fatos meticulosamente, em que tudo tenha significado. Não sou um bom narrador. A minha história simplesmente termina no ponto em que terminou. Nada mais sei nem tenho a falar sobre isso.

*

E essa foi a última narrativa que ouvi de meu avô. Marcos morreu 6 anos depois, então o vi ainda mais umas 12 vezes; semana santa e natal, como de costume. Meu pai foi ficando cada vez mais distante dele, e por isso também me distanciava. A morte do vovô não foi inesperada: adoeceu e foi ficando cada vez pior, até morrer. O velório foi triste, chorei muito, mas meu pai aparentava frieza. Pensei que, no fundo, meu pai não gostava do próprio pai, mas estava enganado. Com o tempo, papai falava cada vez melhor de meu avô, e com maior carinho. Nessa época que percebi o grande paradoxo da morte, que obliterando completamente um ser, o aproximava dos demais. Nunca me esqueci da última história que ouvi de meu avô, porque encerrava um outro paradoxo: em sua relutância em narrar, me ensinou uma inaudita verdade da arte de contar histórias.

MEU PAI {JACI AMARAL}


— O nosso pai morreu.
Foi com uma ligação e essa frase do meu irmão André que eu fui acordado naquele dia. Depois de perguntar se ele sofrera muito e como nossa irmã estava, desligamos. Eu, Carlos, há dez anos moro longe da minha família, mudei de Estado quando tinha 20 anos e uma péssima relação com meu pai. Eu o acusava de ter sido responsável pela morte de nossa mãe quando eu ainda tinha 18 anos, André 8 e Ana 3. Eles não viviam uma boa fase no casamento e meu pai a tinha convidado para passarem um final de semana na fazenda de um amigo do trabalho, minha mãe primeiramente tinha se recusado a ir por causa dos meus irmãos menores, mas meu pai insistira e ela aceitara o convite. Na fazenda, minha mãe fora andar a cavalo com meu pai, o cavalo que ela estava disparou e ela caiu batendo a cabeça, traumatismo craniano. Ela morreu dois dias depois no hospital.
Eu, que já não gostava das brigas que eles tinham e o culpava por elas, passei a chamar meu pai de assassino. No início ele nada falava, apenas baixava os olhos ou ficava com o olhar distante. Depois passou a querer me reconquistar, se reaproximar, sem nunca efetivamente se defender de minhas acusações, apenas dizendo “Você não sabe o que está falando”.
Meus irmãos, ainda pequenos, nada entendiam e, nos dois anos que se seguiram à morte da minha mãe e antecederam meu distanciamento, viram nossa casa continuar em conflito, só que desta vez entre o irmão mais velho e o pai.
Arrumei emprego em outra cidade e saí de casa, poucas vezes ia visitar meus irmãos. Estudei e arrumei emprego em outro Estado, distante do meu primeiro lar. Meu pai às vezes tentava me alcançar, telefonava, enviava e-mails e eu, embora já não o acusasse mais de assassinato, era sempre frio. Tinha saudade dos meus irmãos, porém, em dez anos, pouco fui visitá-los.
Soubemos da doença do meu pai a pouco mais de um ano e meio, um pouco depois de eu ter passado uns dias com meus irmãos. Câncer de próstata. Ele iniciou tratamento, fez quimio, mas a doença não regredia, até aparecerem metástases em outros órgãos. Ele foi definhando, enquanto meu irmão André tentava que eu fosse passar os últimos momentos com nosso pai. Alegando muito trabalho e não contando que ele fosse ter uma piora considerável e que a morte estaria próxima, eu fui adiando. Mas... “Nosso pai morreu”... eu fui acordado com a voz chorosa do meu irmão. Nosso pai tinha ido embora.
Tomando um café no aeroporto, eu lembrava de quando eu era criança e eu e ele jogávamos futebol, de como minha mãe se irritava quando entrávamos sujos em casa, de como eu adorava ajudá-lo a limpar nosso quintal, de quando ele ia me buscar na escola e me deixava tomar sorvete antes do almoço. Meu pai era um cara bom, mas depois de um tempo, botara na cabeça que minha mãe tinha amantes e o inferno começou. Ele ficava louco, tinha surtos de ciúmes a cada vez que minha mãe saía de casa, fosse até para ir ao mercado. Acho que foi por isso que minha raiva começou, por causa da mudança no comportamento dele. Por isso eu o acusava.
Olhei no relógio. O voo estava atrasado por causa do mau tempo. Eu não havia confirmado para meu irmão que iria ao velório. Fiquei rodando pelo saguão do aeroporto. Vi algumas famílias, vi alguns pais e seus filhos. A culpa tomou conta de mim. Não lembrava da ultima vez que dera um abraço verdadeiro em meu pai. Não lembrava da ultima vez que dissera que o amava. Eu o amava? Que espécie de filho eu era?
Finalmente o chamado e pude entrar no avião. Algumas horas de voo e cheguei na minha cidade natal. Peguei um táxi e fui para o local do velório. O cortejo já estava saindo. Fui seguindo de táxi. Já no cemitério fiquei distante. O padre rezava, meus irmãos estavam abraçados, minha tia os observava de perto. Fui me aproximando. Os presentes começaram a notar minha presença. Ana e André deram uma pausa no abraço e ficaram me encarando. Tirei os óculos escuros e toquei levemente o caixão, percorri-o com o dedo indicador, parei na direção do rosto. Todos estavam em silêncio. Pedi que abrissem o caixão. Toquei o rosto pálido e frio do meu pai. As nuvens escureciam no céu. Comecei a chorar. Algumas pessoas se aproximaram e tentaram me tirar dali, precisavam fechar o caixão e enterra-lo antes da chuva. Fui tirado, não sem resistência. Quando baixaram o esquife na cova fui tomado por culpa e loucura. Me joguei por cima do “meu pai” como se o abraçasse. Os coveiros, que já começavam a usar as pás para encher a sepultura de terra, pararam. A chuva começava a cair.  Fiquei ali, deitado sobre o caixão, encharcado. Já era quase noite quando o temporal passou e os coveiros voltaram. Eu estava ajoelhado, sujo, usando as mãos para cobrir o caixão com terra. Fui retirado dali. Passei alguns dias na casa da minha tia e voltei para a cidade e estado que escolhera para fugir.
Todos os dias, ao chegar em casa, eu olhava para a foto de um pai abraçando orgulhoso seu filho e chorava. Eu morava sozinho em um pequeno apartamento. Passei a beber todas as noites, acordava dormindo no chão da sala, da cozinha, sobre o vaso do banheiro.
Certa vez a minha campainha tocou, já era tarde, chovia e eu não esperava visita. Dei um gole no whisky e me levantei, cambaleei até a porta. Abri. Ali estava um homem que primeiro desviou o olhar, depois fixou como se olhasse o horizonte, depois sorriu... “Você não sabe o que está fazendo”... disse e entrou. Eu estava imóvel. Por um tempo ele me observou. Eu estava despenteado, usando calça de moletom e uma camiseta. Ele se aproximou devagar, tocou meu rosto, me abraçou. Por cima do meu ombro pareceu se dar conta de algo. Afrouxou o abraço e foi até a fotografia. Ficou um tempo em silêncio, em seguida se virou para mim com o mesmo olhar da foto e disse “Também sinto saudades. Eu te amo!”

NO ESCURO {SAMANTHA DE SOUSA}


Acordou assustada. Tentou abrir os olhos, mas alguma coisa forçava a mantê-los fechados. Não conseguia se levantar, o sono era pesado demais. A mente se agitava, mas o corpo não queria despertar. Respirava fundo e pela boca, era só um pesadelo, precisava deixar ir embora. Tranquilizou-se, abriu os olhos de leve, não enxergava nada.
Tudo estava escuro aos olhos de Ruth. Já era dia, podia ouvir os passarinhos brincando no telhado, podia ouvir os passos apressados na rua, as vozes se emaranhavam desde muito longe. Não enxergava. Passou as mãos levemente nos olhos. Nada acontecia.
Milhares de perguntas borbulhavam em sua mente e ao mesmo tempo um silêncio tomava conta dela. Precisava despertar, aquilo não podia ser real. O que fizera no dia anterior? E no outro dia anterior? E na semana passada? Não se lembrava de nada. Além de seus olhos, sua mente também se apagara.
Desesperada, atirou-se da cama e bateu a cabeça contra a superfície de alguma coisa áspera. levantou-se tentando manter o equilíbrio. É difícil manter o corpo forte quando não se pode reconhecer nada do que está ao seu redor. Seus passos estavam colados ao chão, não conseguia levantar os pés. Arrastando-se e tateando a parede, alcançou a porta do quarto, era como estar em um lugar que não conhecesse. Tudo por onde passava parecia estar em seu exato lugar, mas ao mesmo tempo tudo parecia diferente, por vezes mais afastado do que devia, outras vezes tudo parecia próximo demais.
Precisava pedir ajuda, mas para quem? Não se lembrava de ninguém que pudesse ajuda-la. Esfregava os olhos na vã esperança de que pudessem enxergar, mas nada acontecia, começava a sentir uma agonia crescendo dentro dela e também começava a sentir medo. Sentou-se no chão, precisava pensar, lembrar, tentar entender o que estava acontecendo. Sentiu alguém se aproximando, estava muito perto, ouvia os passos lentos, tentou pronunciar alguma coisa para falar-lhe, mas a presença sumiu antes que a voz saísse.
Havia alguém ali além dela. Ruth seguiu na direção de onde vinha a presença, foi andando devagar, equilibrando-se contra a parede, havia uma porta, mas estava trancada, bateu de leve e a porta se abriu.
 Alguém?  perguntou trêmula.
Uma respiração forte parecia se escapar daquele novo cômodo. Ruth entrou fixando seus ouvidos para capturar qualquer som. Sentiu novamente a sensação daquela presença, alguém passava por ela. Tateou par tocar quem estava lá, mas tudo era vazio. Ruth estava perdida.
Voltou a chamar por aquele alguém que parecia se esconder, ninguém respondia. Ruth tremia, agora também de frio, de repente aquela estranha respiração que sentia tornou-se um hálito gelado. Deu meia volta para retornar à porta, tateava a parede, mas a entrada desaparecera. O desespero alcançava seu ápice e ela já respirava com dificuldade.
Ruth começou a gritar para ser ouvida ao menos pelos vizinhos, mas seu grito se perdia naquela escuridão na qual afundara. Tudo era vazio, tudo era silêncio. Não havia mais um lá fora, não havia mais ninguém. Ruth estava sozinha em seu pesadelo. Ruth não estava dormindo.

O INTERMEDIADOR {GIROTTO BRITO}


Essa é a quarta vez que venho a esse maldito cemitério. Dessa vez, para enterrar meu último filho. Primeiro foi o mais velho, logo em seguida minha esposa e o caçula, e agora, para findar o pouco de força que ainda me resta, Felipe se foi. Tenho vivido a dor, incessantemente, todos os dias desses últimos três anos.
Dessa vez eu estou sozinho, ninguém viera me ajudar a sepultar meu filho, pois já não me veem mais como antes. Os moradores desta vila passaram a acreditar que sou um sinal de má sorte, um agouro, que carrego comigo o espírito da morte. De meus próprios pensamentos é tolice falar, já nem sei mais quem sou: um homem destruído pelas almas lhe tiradas, os amores roubados, o emprego destituído e a falta de vontade de viver. Inacreditavelmente, a causa das mortes ainda não foi descoberta, apenas minha família foi afetada por esse mal súbito.
Tudo começou no inverno de 1989, quando eu e minha família nos preparávamos para as festividades da estação. Helena, minha esposa, tinha saído e Henrique e Pedro estavam na escola. Em casa, estávamos eu e Alexandre, meu filho mais velho, limpando e organizando os livros da nossa pequena biblioteca quando, subitamente, ele começou a rasgar as páginas dos livros e resmungar palavras sem sentido. A princípio, achei que fosse algum tipo de brincadeira, mas logo percebi que seus olhos tremiam freneticamente e sua pupila estava dilatada. De repente, ele começou a comer as páginas soltas e eu, já tomado de pânico, tentava desesperadamente impedi-lo. Tomei tudo que estava em suas mãos e o arrastei para o sofá. Ele tremia e sua boca espumava enquanto repetia palavras aleatórias como: Rua, Setembro e Cruz.
Corri para a sala de jantar, onde estava o telefone mais próximo, mas não consegui completar a ligação. Ouvi um estrondo na biblioteca e voltei correndo. Alexandre havia quebrado o vidro da janela e cortado sua própria garganta. Fiquei em estado de choque. Meu menino, que sempre fora tão alegre e são, de repente comete suicídio durante um súbito ataque de loucura. Não havia explicação para aquele ato de total demência.
Quando Helena chegou, a polícia já realizava a perícia e desde esse dia minha esposa nunca mais foi a mesma. Passou a estar sempre calada, depressiva e não mais me olhava nos olhos. Em nenhum momento ela me culpou pelo que aconteceu, mas também não me absolveu da culpa. Por um ano e cinco meses nossa família viveu silenciosamente, como em um luto prolongado. Helena cada vez mais triste e reclusa no quarto.
Certo dia, quando voltava de uma caçada, encontrei-me com Felipe na estrada. Papai! Papai! Mamãe está louca! — ele gritava e chorava. Imediatamente, coloquei-o no carro e fomos para casa. Quando chegamos, avistei o corpo de Pedro estendido no chão do pátio, com várias perfurações. O sangue escorria por entre as frestas do piso de madeira e uma faca se encontrava jogada ao seu lado. Tentei reanimá-lo, mas era tarde demais, já estava morto. Entrei então na casa à procura de Helena, mas não a encontrei, liguei para a polícia que logo chegou.
Depois de alguma busca, minha esposa foi encontrada perto da casa, no lago, também sem vida. Afogada.
Abalado, passei semanas tentando entender o que levaria Helena a matar nosso filho e depois se matar. Depressão ou algum distúrbio psicológico, talvez. O fato era que só restávamos eu e Felipe. E eu tinha que ser forte para cuidar dele sozinho após tantos traumas.
Depois de algum tempo, Felipe me contou que sua mãe, durante sua crise de loucura, pronunciava três palavras repetidamente: Sete, Malta e Azul. Isso me deixou muito intrigado, pois Alexandre também teve o mesmo comportamento antes de se suicidar.
A polícia já tinha me interrogado diversas vezes, mas depois de alguns meses resolveram encerrar o caso. Aparentemente concluíram que a culpada pela morte de Pedro não teria como pagar pelo crime cometido, já que tinha se suicidado. No entanto, a população da vila ainda tinham suas dúvidas quanto ao culpado e quando eu saía de casa todos olhavam e comentavam sobre as mortes. Eu podia sentir os olhares que me crucificavam.
Certo dia me veio à mente as palavras ditas por Alexandre e Helena e comecei organizá-las de modo que fizessem algum sentido. O único resultado plausível foi:

Rua Sete de Setembro, cruz de malta azul.

Na vila eu sabia que não havia nenhuma rua com esse nome, então fui até Marília, a cidade mais próxima. Lá, encontrei a tal Rua Sete de Setembro e, depois de algum tempo caminhando e perguntando, me falaram de uma pequena loja de penhores no fim da rua que possuía em sua fachada um brasão com uma cruz de malta.
Chegando lá, uma Cruz de Malta azul realmente acompanhava os dizeres talhados em madeira:

Frederico Pantoja - Loja de Penhores

O que chamavam de loja, na verdade, não passava de uma sala estreita e escura, abarrotada de coisas velhas por todos os cantos. Prateleiras ocupavam praticamente todas as paredes e nos fundos havia um velho balcão de madeira.
— Bem vindo à minha humilde loja, senhor. No que posso ajudá-lo? Tenho relógios, livros e muitos outros artefatos. — disse repentinamente um homem que se encontrava atrás do balcão.
Aparentava ter cerca de sessenta anos, cabelos grisalhos despenteados, suas vestes estavam velhas e fumava um cachimbo bastante comprido.
— Não vim aqui à procura de artefatos, senhor. Na verdade, procuro respostas.
Ele então se levantou e olho para mim, analisando-me dos pés à cabeça. Intencionalmente, expulsou um tanto de fumaça em meu rosto e se sentou novamente.
— Não vendo respostas aqui, meu rapaz. E não conheço nenhuma loja que o faça.
A atitude rude daquele homem me irritou, mas não deixei transparecer meu incômodo. Eu precisava dele.
— Gostaria de saber se o senhor conhece uma mulher chamada Helena Vasconcelos? Ela já veio aqui alguma vez?
Quando pronunciei o nome da minha esposa o velho levantou seu olhar em minha direção e deixou escapar um leve e silencioso sorriso de canto de boca.
— Então quer dizer que finalmente a dívida foi cobrada? Eu já estava cansado de esperar. — disse com um suave sarcasmo.
— Esperar? Então o senhor a conhece. O que minha esposa veio fazer aqui? E porque ela pronunciou este lugar antes de sua morte?
Eu tinha muitas perguntas a fazer e não conseguia organizar meu pensamento de forma que pudesse explicar melhor a ele o que eu queria saber, de fato.
— Quando se pede um favor ao Senhor da Morte, há que se pagar um dia. Com juros.
Não entendi o que ele dissera, mas continuei a ouvi-lo.
— Há alguns anos, sua esposa veio até mim pedindo ajuda. Disse que seu esposo estava muito doente e que não poderia perdê-lo. Algumas pessoas ouvem os boatos e acreditam neles. E sua mulher acreditou que eu pudesse ajudá-la.
­— Eu realmente estive muito doente, à beira da morte, por causa de um acidente vascular cerebral. Passei semanas em estado de coma no hospital aqui de Marília. Os médicos já me consideravam um caso perdido.
— Sim. Sua esposa, desesperada, veio até mim dizendo que faria de tudo para que você fosse salvo. Ela ofereceu sua própria vida em troca da sua.
Sempre fui um ateu cético e ainda estava tentando entender toda aquela história e por mais que minha razão duvidasse daquilo tudo, meus sentimentos eram levados a crer.
— Eu sou um velho intermediador do destino. Faço tratos e acordos, redijo contratos, mas não sou eu quem cobra pelos favores prestados. Quando Helena ofereceu sua própria vida em troca de sua cura, ela sabia que um dia isso seria cobrado. O contrato era claro.
— Contrato? Do que está falando?
O velho se levantou novamente e subiu numa pequena escada para alcançar uma caixa no alto de uma prateleira.
— Aqui está — disse, abrindo a caixa e me mostrando um frasco de vidro com um dente dentro — Esse dente selou o pacto de sua esposa. Uma vez feito, não há como voltar atrás.
Reparei que na caixa estava escrito o nome da minha esposa e tinha uma marca de sangue na tampa.
— Está querendo me dizer que o senhor ofereceu um pacto demoníaco para minha esposa para que ela trocasse sua vida pela minha enquanto eu estava doente? Isso não tem cabimento!
— Eu não ofereci. Ela veio até mim e fez o pedido. Como eu disse, sou apenas um velho intermediador.
— Mesmo que eu acreditasse em você, isso não explicaria o fato de dois filhos meus terem morrido também.
— Meu caro homem. Vejo que você resiste à verdade. Mas o que aconteceu não poderá ser mudado. O Senhor da Morte cobra caro por seus favores, como eu disse antes, com juros.
Não acreditei no que dissera o tal Frederico Pantoja. Agradeci a ele por ter cedido um pouco do seu tempo para mim e fui embora.
Dirigi cerca de duas horas. Uma chuva intensa caía e quando me aproximei da vila percebi que parte dela estava sem energia. Em frente minha casa, somente as luzes das sirenes refletiam por entre as árvores. Alguma coisa havia acontecido.
O último dos três filhos estava morto. A vizinha que tinha ficado responsável por ele enquanto eu viajava relatou que ele simplesmente enlouqueceu: subiu em uma árvore no quintal da casa e se agarrou nos fios de alta tensão.

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A vida me reservou esse triste destino e infelizmente não pude salvá-los, pois descobri tarde demais o universo sombrio que existe além do que eu acreditava. E agora, aqui, sentado no túmulo do meu garoto, cogito a possibilidade de Frederico ter me dito a verdade e amaldiçoo minha própria vida, que foi a causadora desse maldito comércio de almas.

Ilustração de Girotto Brito }

CHARLIE, O PALHAÇO {GIROTTO BRITO}

“Não precisamos mais de você”, foi o que disseram. Depois de uma vida inteira alegrando corações, percorrendo países por todo o mundo, contando piadas e divertindo crianças e adultos, fora simplesmente descartado do Circo Abrazador. Não como os leões, camelos e elefantes que foram proibidos por lei, nem porque estava velho demais e incapaz de alegrar as pessoas, mas simplesmente porque achavam que palhaços não eram mais atrativos nos circos modernos.
Saiu do trailer do mágico, arrasado. O circo era sua casa, sua paixão, sua vida. Não tinha para onde ir e nem sequer sabia fazer qualquer coisa na vida que não fossem palhaçadas. As lágrimas escorriam pelo seu rosto fazendo borrar a maquiagem que levara horas para preparar e que não mais usaria. Sabia que àquela hora da noite todos estavam se aprontando para o espetáculo das 10. O mágico, os malabaristas, os músicos, os anões, as dançarinas e até Maria Luiza — a equilibrista que ele sempre amou, mas nunca foi correspondido. Todos estariam lá, menos Charlie, o palhaço.
Deixou-se jogar ao chão, escorando-se num monte de entulho. Aos prantos, fitava as luzes do circo que piscavam aleatoriamente em diversas cores, a grande e imponente tenda no alto da colina, os caminhões e trailers estacionados, as filas de pessoas comprando ingressos, as jaulas. Era realmente maravilhoso, um espetáculo divino.
A tristeza que sentia foi gradualmente dando espaço à amargura. A amargura foi, de repente, se tornando solidão. A solidão, por sua vez, foi transformando-se em medo. E o medo, cada vez mais intenso, de súbito se tornou ódio. Um ódio insano e incontrolável que fazia pulsar violentamente as veias do seu pescoço. Um ódio doentio por aqueles que o desprezaram, que achavam-no inútil, desnecessário. Todos eles.
Passou a mão no rosto para enxugar as lágrimas, borrando ainda mais a maquiagem, e levantou-se. Já estava quase na hora de começar o show. As arquibancadas estavam cheias, os pipoqueiros circulavam entre as colunas de espectadores, os músicos se posicionavam com seus instrumentos e o mágico se preparava para iniciar seu espetáculo. Seria um belo espetáculo. Charlie o assistiu quase que por completo, espreitando por debaixo das arquibancadas, entre os pés da plateia. O show chegara ao clímax e as pessoas gritavam e aplaudiam o número mais importante da noite, em que anões, bailarinas, malabaristas, equilibristas, o mágico e também o palhaço — lembrou-se com tristeza, deveria estar lá com eles — se apresentavam juntos ao som de 1812, de Tchaikovsky.
Chegara a hora. Charlie fechou todas as saídas da grande tenda despercebidamente e, com uma tocha — roubadas dos cuspidores de fogo —, começou incendiar a lona, correndo às gargalhadas ao redor do circo e ateando fogo em toda a circunferência. As risadas histéricas e doentias de Charlie se misturavam ao som da música e dos gritos de desespero da plateia que começava a perceber que aquilo não fazia parte do show . As labaredas cresciam e cresciam. A lona se incendiava por inteira, fazendo chover grandes gotas plástico em chamas sobre as cabeças enlouquecidas e desesperadas. Tentavam correr do fogo, mas o fogo corria até seus corpos. Iam todos queimando num espetáculo primoroso que iluminava a noite como as luzes de nenhum circo jamais poderiam iluminar.
Por fim, Charlie sentou-se no chão, escorando-se no monte de entulho de antes, e assistiu ao desfecho do seu maior espetáculo. Divertindo-se como nunca, soltava histéricas gargalhadas e aplaudia. Divertindo-se como todos que assistiram seus tantos números de palhaçadas pelos quatro cantos do mundo. Não conteve as lágrimas, levantou-se e aplaudiu de pé.