MÚSICA DOS ANJOS {RAPHAEL SOARES}


Gravura de Gustave Doré

Seus pais queriam pôr-lhe o nome de Vitória, mas logo que nascera escolheram outro nome: Angélica. O nome não fora escolhido à toa, pois a menina era um belo e indefeso anjinho. A casa era pequena, um pequeno quarto com banheiro e uma sala que servia de cozinha, mas os pais teriam condição de criar sua filha e ampliar o lar aos poucos. Primeiro um quarto, depois uma cozinha.
Durante seus primeiros anos, a pequena Angélica fora criada com todo o cuidado, sempre bem limpa, vestida e afagada pelos pais. Em alguns momentos superprotegida, mas nada que a própria menina não quisesse. Angélica, como o anjo que era, vivia num verdadeiro Éden de tranquilidade, e pouco lhe faltava. Porém, calada, sempre desejara uma coisa: um irmãozinho que lhe fizesse companhia, que brincasse com ela, para que a vida fosse ainda mais perfeita; embora nunca tenha pedido aos pais, pedia ao “pai do céu”, como costumava chamar em suas orações, que lhe atendesse tal desejo pequenino.
Demorou vários anos, mas o desejo de Angélica fora atendido. Quando tinha doze anos veio a notícia de que teria um irmão mais novo, e era muita alegria para todos. Felizes comemorações e chás foram feitos para aguardar o novo morador daquela casa, que já não era mais tão pequena e poderia ter mais um visitante. Meses depois a confirmação de que seria um menino. Teriam de preparar um novo quarto para a menina, já que não é habitual que uma moça nessa idade compartilhe o quarto com um rapaz.
Os últimos meses de gravidez foram de uma grande tensão, tensão que a frágil menina sequer poderia imaginar, e por isso não pôde perceber. Nasceu o menino, e foi uma comoção geral, e toda a família chorou. Deram-lhe o nome de Augusto, e as coisas nunca mais seriam as mesmas desde então.
Angélica mudara para o novo quarto, nos fundos da casa. Devido a pressa em concluir a obra do quarto da menina, aproveitaram a paredes do lado e dos fundos, e o quarto ficou ligado à casa por um banheiro apenas. Como um apêndice à casa ficaram Angélica e seu quarto. Toda a sua vida fora e estava no centro daquele ambiente, e agora era relegada a um canto traseiro, enquanto o novo habitante tomava o seu lugar. A menina vira o irmão apenas uma vez, e não lhe foi permitido chegar muito perto. Não sabia o quê e o porquê, mas seu irmão era, de algum modo, muito diferente de si; engraçado, esquisito, dava medo. Não sabia.
A chegada do novo morador não afetara a vida de Angélica somente. A casa inteira estava mudada, mais sombria. Sempre que a menina se aproximava do centro da casa podia ouvir as inúmeras brigas entre os pais. Nunca vivera em um ambiente hostil como aquele, carregada de ofensas e acusações, e como sempre acontecia cada vez que se aproximava do coração da residência, pensou que era por sua culpa que tal se sucedia, então passou a se isolar cada vez mais em seu quarto, onde não ouvia sequer ruido de queixas, saindo apenas quando os pais iam com o irmão em uma das numerosas visitas ao médico. Quando estava na sala, só, era um silêncio, que nem de longe lembrava a abundância de sons da sua infância. Fora expulsa do Éden, e não era mais capaz de colher a alegria com as mãos.
Mas um segundo fato mudou a sua vida. Do silêncio do seu quarto, subitamente, ouviu longas notas de flauta, e logo depois uma canção. De onde viera? Viera acaso do céu? Sabia que não. Sabia que tal som vinha dos fundos de seu quarto. Talvez o vizinho fizera o mesmo que seus pais, construindo um cômodo colado ao muro. Não importava, aquela música parecia vir de instrumentos angelicais. A menina só queria que ela não parasse nunca. Porém, sobreveio o silêncio, e Angélica chorou.
Em pouco tempo a menina percebeu uma regularidade matemática que movia a música e seu executor, e a vida na casa era igualmente regular. No centro da casa as brigas e ofensas, o cuidado com o menino oculto e as idas ao hospital. No quarto da menina a música da flauta, entremeada de silêncio. Era aquela música sua única alegria, e sua maior tristeza, e nunca vira que ser, anjo ou demônio, tocava para ela.
Certo dia, Angélica tomou uma resolução. Os pais saíram e a música tocou, como era hábito. A menina saiu de casa sozinha e foi, pela primeira vez, à casa do vizinho de trás. Era uma casa verde e simples. Deu dois toques na campainha. Gritou de dentro uma voz anunciando que já atenderia, e logo um homem alto e jovem abriu a porta, com uma flauta em punho, perguntando com quem a jovem queria falar. A menina ficou alguns instantes em silêncio, congelada, enquanto o homem aguardava alguma reação.
Angélica desferiu três facadas no homem e correu.

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