Terça-feira, 6h00.
Não queria levantar naquela manhã. Se pudesse passaria o dia inteiro na
cama. O despertador tocou duas vezes seguidas antes que criasse coragem e
resolvesse levantar.
Passos arrastados afastam roupas e meias do caminho. A água fria do
chuveiro dói na pele como espinhos pontiagudos. No espelho, a imagem de uma
mulher velha. Imensas olheiras atestam mais uma noite sem dormir. Já eram
várias naquela semana.
Não passou batom, apenas penteou os cabelos com os dedos e os amarrou
com um elástico. Foi trabalhar.
Trabalhar, força do hábito.
Naquele dia, e nos tantos anteriores, não consideraria chamar aquilo de trabalho,
ou, se considerasse, na certa se envergonharia. Nunca sentira tanta vergonha de
exercer a profissão que amara desde sempre.
Sentada atrás da escrivaninha, limita-se a corrigir, muito vagamente, trabalhos
de concordância verbo-nominal passados na última semana e que cairiam na prova
dali há pouco mais de um mês. Os alunos, que há algum tempo vinham notando a ausência da professora, aos poucos vão
saindo da sala, um por um, sem que ela percebesse – ou sem que quisesse perceber. Quando ela se dá
conta, a sala está vazia, silenciosa, apenas o ventilador do teto produzindo um
som leve de peças gastas pela ferrugem do tempo. Fica um tempo olhando para o
vazio da sala. E do vazio, nota uma penumbra se formando nos cantos, como uma
sombra disforme se expandido. Sussurros baixinhos ecoam pelas paredes... Sente
uma presença. Olha para o fundo da sala. Vê um objeto preto
em cima de uma carteira. Estreita os olhos. O objeto se mexe e ela consegue
enxergar que era um gato. Ele está de costas, parecia alheio àquilo tudo, a
cauda serpenteando no ar. Mas, como se se percebesse descoberto, gira a cabeça
em sua direção. No lugar onde ficava o olho esquerdo, apenas uma órbita vazia,
sinistra; do outro lado, um olho de um amarelo forte a encarava. O gato fica
assim por alguns instantes, parado, avaliando. Então eriça os pelos das costas,
e como se estivesse com muita – muita!
– raiva arreganha os dentes ferozmente e salta em sua direção.
Acordou com a sirene anunciando o fim da última aula. 11h45.
No banheiro privativo dos professores, fuma um cigarro escondida. Não
ousa olhar para o espelho, temendo que o reflexo mostre mais que a sua imagem
cansada...
Alguns amigos próximos haviam questionado o que estaria acontecendo.
Estaria doente? Ela sempre desconversava. Cansaço, dizia apenas. Fazia algumas
semanas estava assim, cansada, um esgotamento mais que físico. Era como se a
alma estivesse esgotada... Pediram que fosse consultar um médico. Recusara.
Precisava ficar em casa, respondia. Terminar de ler um livro...
* * *
–
Três semanas atrás –
Aquele dia começara como qualquer outro, nada de excepcional. Acordou às
6, como sempre. Trabalhou até o meio dia. À tarde, aulas de boxe na academia.
Depois pegou o carro e decidiu passar numa grande livraria que acabara de ser
inaugurada no Centro. Era uma leitora voraz, tinha verdadeira compulsão por
livros. Mas havia tantos em casa, presentes do último natal, coisa de algumas
semanas, que ainda estavam no plástico, esperando... Não tinha importância. Precisava de livros. Tê-los à mão era
suficiente... Inebriava-se com o cheiro do papel, com o som das páginas
viradas. Considerava um livro quase uma Entidade do Sagrado. Dobrar as folhas,
marca-las?, considerava uma afronta. Riscá-lo, então? Sacrilégio!
Estacionou o carro e entrou na livraria, três andares com os mais
modernos lançamentos literários dividindo espaço com Cd’s e DVD’s. Vasculhou
tudo, mas – o que parecia soar quase impossível – não encontrou nada que lhe
agradasse. Saiu. Do outro lado da rua viu um pequeno sebo. Nunca o notara ali, quase escondido entre um prédio de
advocacia e uma farmácia. Atravessou a rua e entrou. Precisava de livros. Não
necessariamente novos. Na realidade, sempre gostara dos de segunda mão. Dizia
haver certa magia em manusear um livro usado, assim, gasto. Era como se pudesse
sentir o que outros leitores sentiram, como se isso, de certa forma, os
tornassem íntimos.
O atendente, um rapaz jovem, de barbicha e camisa do Pink Floyd,
levantou os olhos de uma revista em quadrinhos que lia e deu um meio sorriso.
Ela encaminhou-se pelos corredores apertados e um tanto bagunçados. Os livros
pareciam ter sido amontoados de qualquer forma, sem seguir um padrão ou
critério literário. Cada vez que dobrava um corredor novo o cheiro de mofo era sufocante,
como se aquilo ali não fosse limpo há anos! Passou em uma prateleira mais de
uma vez e, quando estava desistindo, viu a edição de luxo – em capa dura
vermelha de bordas douradas – de um livro que parecia muito antigo. Uma bíblia
estava por cima dele. Puxou-o de baixo. E então sentiu um forte arrepio na
nuca, um vento derrubou alguns livros no chão. Ficou assustada e olhou em
direção à saída, imaginando que o vento entrara pela porta aberta.
Histórias Extraordinárias: Edgar
Allan Poe, lê o título na capa já muito gasta.
Folheia o livro. Estava todo – completamente – rabiscado. De imediato
sentiu repulsa pelas suas condições físicas, um verdadeiro horror estava diante
dos seus olhos. Chamou alguns palavrões e amaldiçoou quem quer que tenha feito
aquilo! Apesar disso sentiu uma forte atração pelo livro, quase uma conexão
imediata. Não saberia explicar. Decidiu comprá-lo. Assim, pelo menos, outros
leitores não teriam a mesma sensação ao se deparar com aquela coisa.
O jovem atendente achou estranho, pois o livro não contava no registro.
Era provável que o pai – que estava começando a informatizar – ainda não o
tivesse registrado, mas nem no livro de registro estava contando. Era estranho.
Mesmo assim vendeu.
* * *
Terça-feira,
13h00.
Depois de colocar o carro na garagem, entra em casa e tranca a porta.
Larga a bolsa com materiais escolares num canto; os sapatos ficam pelo caminho
enquanto caminha. As cortinas que estavam fechadas permanecem fechadas. Um
único ponto de claridade vinha do balancim do banheiro social. Fecha a porta do
banheiro. Penumbra total. E mofo, um cheiro forte de pano velho que há muito
não era lavado. Senta-se na poltrona que, em outra época, usava todas as tardes
para tomar café e ler seus livros preferidos. Na mesinha ao lado, algumas
xícaras amontoadas ainda conservam um líquido viscoso do que antes fora café.
Moscas voam, pousam. Numa mancha preta de café derramado, formigas trabalham
incansavelmente tentando sugar o açúcar. Não notara quando ficara assim, tão desleixada.
Quer um cigarro. A última carteira está vazia. Procura no cinzeiro
cheio. Entre tantos tocos encontra um cigarro pela metade, quase inteiro.
Acende-o. Traga. Olhos fechados. Fumaça para o teto.
Abre os olhos.
Num canto da estante, está o livro.
Não quer pegá-lo. Não quer lê-lo. Não quer!
Os olhos vacilam. Quer chorar.
Luta ferozmente contra a compulsão que faz as mãos abrirem e fecharem
furiosamente, como se estivesse em abstinência de alguma droga. E está. Ou
melhor, está tentando se abster. Mas sabe, sabe,
que não consegue. Por mais que lute, se esforce... não consegue. O corpo para
de tremer, as mãos se aquietam. Abre os olhos. Olha para o livro. Ele sussurra.
Pega-o.
* * *
No dia em que comprara o livro acontecera algo estranho.
Sentou-se à poltrona com uma xícara de café, alguns biscoitos integrais
e um livro de Virginia Woolf à mão. (O livro de Poe ficara na sacola.) Antes de
começar a ler o livro, o telefone toca. Foi atender. Ao voltar, deparou-se com
o livro de Poe aberto na mesinha, e nem sinal do outro livro. Achou apenas
estranho. Podia jurar que tinha pegado outro livro! Ou não?
Tomou o livro nas mãos, observando cada detalhe. Parecia uma obra
bastante... singular. Em tantos anos
de leitora voraz nunca havia se deparado com um livro tão bem acabado, apesar
de velho, parecia que tinha sido feito sob medida, com acabamento à mão. Foi
olhar a edição. Não havia. Teria sido
feito à mão? As páginas todas estavam rabiscadas, como se fosse um diário,
ou o caderno de algum adolescente rebelde. Perguntas soltas, sem nexo; outras
direcionadas, como se a pergunta anterior fosse respondida e levasse à
seguinte. E assim as perguntas/respostas iam enchendo os espaços vazios de cada
folha, cada margem, às vezes dentro do texto. Ficou imaginado quem poderia ter
feito aquilo, parecia um verdadeiro sacrilégio. Mas o que lhe chamara a atenção
era o fato de que havia notado tantos rabiscos assim....
Na página em que se iniciava O gato preto havia uma frase riscada,
mas a pessoa que a escrevera (ou outra pessoa) riscara com tanta força que a
ponta da caneta atravessara duas outras páginas. Era impossível saber o que
havia ali em baixo; mas notara que, do riscado, a tinta azul escorrera pela
página como se fosse sangue saindo de um corte profundo...
Fechou o livro de súbito. Já passava das nove horas da noite e nem
notara. Mesmo fechado, quase conseguia ler as frases riscadas no livro, como
vozes em sussurros.
* * *
O primeiro pesadelo foi por volta das três da madrugada.
Acordara com um grito de socorro. Era uma mulher, mas não lembra onde
estava, nem quem seria, apenas que estava prestes a morrer e que gritava por
ajuda. Permaneceu deitada na cama, a respiração acelerada, e um medo, um medo
profundo. Parecia ouvir sussurros ao longe, como vozes abafadas por paredes,
como se fossem de outras casas, choros. Seriam mesmo? O corpo todo estava
arrepiado. As mãos tremiam. Os sussurros agora parecem mais forte, como se
estivessem mais perto. Pareciam dezenas de vozes diferentes, homens e mulheres,
todos lamentando, chorando. De onde estariam vindo?
Apesar do medo, resolveu que ia verificar.
Acendeu a lanterna do celular. Tentou sair da cama sem fazer barulho. A
mão que carregava o celular tremia, o corpo todo tremia, as pernas vacilavam. A
porta do quarto rangeu quando foi aberta, e as vozes silenciaram, como se
estivessem esperando alguma coisa; e logo em seguida retornaram; mais fortes,
mais perto. Vinham da sala. A lanterna do celular iluminava objetos soltos pelo
caminho criando sombras distorcidas, fantasmagóricas. A sala estava vazia; mas
as vozes continuavam. Foi se aproximando da poltrona de onde as vozes pareciam
vir. Em cima da mesinha estava apenas o
livro. As vozes, os lamentos e sussurros, pareciam vir dele!
Levou a mão à boca para evitar o grito. Ficou paralisada por alguns
minutos, sem qualquer reação. Depois criou coragem e abriu lentamente o livro.
Os rascunhos mudavam de lugar. Iam aparecendo no livro de acordo com as vozes e
os sussurros; uns apagavam e logo outros surgiam, manchas de sangue também
pareciam surgir do meio das folhas...
Deu um passo para trás. Foi quando sentiu alguma coisa se enroscando
nos seus pés, alguma coisa peluda. O coração disparou. Ficou imóvel, só as
pernas tremendo incontrolavelmente. Então virou vagarosamente a lanterna do
celular para a coisa. Deparou-se com
um enorme gato preto, mas estava tão magro que os ossos do corpo saltavam. Ele
olhava fixamente em sua direção. E na luz da lanterna, uma órbita vazia a
encarava; a outra exibia um olho amarelado, como uma enorme brasa. O gato
mostrou os dentes afiadíssimos e foi eriçando os pelos da costa. De súbito
pulou em direção à luz da lanterna.
Acordou com o celular despertando. 6h00.
* * *
Não sabe explicar como passou aquele mês. Sente como se não tivesse realmente
vivido aqueles dias, ou como se tivesse tido apenas uma sobrevida, como se
vivesse dentro de um eterno pesadelo.
Os amigos notaram de imediato a diferença. Largara a vida social, não
saía mais, não se cuidava, largara as aulas de boxe que tanto amava, deixara até
de ir nas rodas de literatura que ela mesma havia incentivado na escola. Parece
que está morta, diziam os amigos, não estamos te reconhecendo... Ela dizia
estar apenas cansada, muita coisa pra fazer. Na realidade, tinha muita coisa
pra ler.
Há semanas notara que os rascunhos do livro pareciam não ter fim, e que
ela nunca conseguiria terminar de ler tudo. Todos os dias eles mudavam, e às
vezes era se como falassem entre si, como se estivessem conversando.
Perguntava-se quem eram aquelas pessoas, ou que, de fato, era aquilo. Quando
deu por si, estava com uma caneta na mão, escrevendo alucinadamente nas páginas
do livro. Passava horas inteiras rabiscando. Rabiscava perguntas, e os outros
rabiscos sussurravam respostas. As conversas duravam horas, às vezes dias
inteiros. Ouviu que todas aquelas
pessoas haviam morrido, ou melhor, se matado;
e todas, no final, diziam a mesma coisa:
— Mate-se!
* * *
Terça-feira, alguma hora da
madrugada.
Mate-se...
Por várias vezes pensou nisso. Se jogar do viaduto, tomar veneno,
cortar os pulsos. Naquela madrugada, na mais longa ideia sobre o assunto,
pendurou uma forca no quarto. Subiu na cama. Experimentou colocar o laço no
pescoço. Sentiu uma sensação estranha. Olhou-se no espelho do guarda-roupa. Viu
seu reflexo enforcado. Os membros roxos, o rosto em agonia de uma respiração
que não viera. No reflexo, os ponteiros do relógio na parede do outro lado
corriam rapidamente, como se estivessem descontrolados. O tempo parecia
descontrolado. Dia e noite alternavam-se em questão de segundos. Dias, semanas,
meses e anos passaram rapidamente. O corpo apodreceu antes que fosse achado.
De súbito tirou o laço do pescoço. O corpo todo tremia.
Tomou a decisão que deveria ter tomado há muito tempo: ia devolver o
livro.
* * *
Algum
dia, alguma hora.
Na garagem o carro criava poeira, os pneus secos. Não precisava de
carro. Precisava andar. Atravessou a cidade a pé. Foi até à livraria. Não percebera que ela havia mudado tanto em
tão pouco tempo. O atendente, um senhor de meia idade com uma farta barba e uma
camisa do Pink Floyd, nem ligou quando a porta abriu e ela entrou. Também não
ligou quando ela perguntou se poderia devolver o livro, nem queria saber do
dinheiro, só queria se livrar daquela coisa.
Ele levantou os olhos, e como se olhasse vagamente para o nada, apenas
suspirou.
Com raiva da total falta de receptividade do atendente, foi procurar um
local para deixar o livro. Nos fundos da loja, na mesma estante de onde o
tirara, encontrou o mesmo lugar. Estava vazio. Naquele momento lhe veio a ideia
que deveria ter tido antes: deveria tê-lo queimado, ao invés de devolvê-lo.
Queimado, talvez aquele pesadelo, ou maldição, não sabia, acabasse. Mas talvez
fosse isso mesmo: pesadelo. Fruto da sua imaginação. Não achava que aquelas
vozes fossem reais. Estaria ficando maluca? Não, essa coisa de livro
amaldiçoado não existia, era coisa da sua cabeça. Queimar um livro, assim,
clássico como aquele, que passara de geração em geração! Seria um sacrilégio.
Fizera bem em não tê-lo queimado. O devolveu ao seu lugar de antes. Foi olhar
outros livros, talvez um sobre religião. Uma bíblia, quem sabe?
As possibilidades eram tantas...
Sorriu e olhou em volta, as centenas de livros, as gerações ali, quase
conseguia sentir o cheiro de cada dono, cada época... Seguia pelos corredores,
os dedos passando pelas lombadas dos livros como se, de repente, descobrisse-se
liberta. Mas então o sorriso morreu nos lábios quando viu um jovem rapaz, de
aparência um tanto gótica, ir em direção à estante em que o livro de Poe
estava. Ficou olhando para ter certeza de que ele não iria nem passar perto daquele livro. Mas ele foi justamente em
sua direção, como se estivesse atraído por ele. Ela arregalou os olhos. Aquilo
não poderia acontecer.
— Não! — gritou mas o rapaz não
ouviu, e foi em direção ao livro.
Assim que ele tirou o livro da prateleira ela tentou pegá-lo de volta.
Mas, como se tocasse o ar, sua mão passou direto, não chegou a tocar o livro,
muito menos o rapaz. Ele porém, sentiu os cabelos do corpo arrepiarem. Fez o
sinal da cruz e, olhando assustado para todos os lados sem ver ninguém,
levantou-se, colocou o livro debaixo do braço e foi ao caixa pagar.
[A imagem original veio de: http://www.duofox.com.br/o-gato-preto-mitologia-e-misticismo-na-obra-de-edgar-allan-poe/]