CINZAS {ELIAS ABNER}


Não recordo muito bem os detalhes, de como tudo começou. Mas era noite. E era festa. Carnaval, melhor dizendo. A cidade, Belém. Era a primeira vez, aliás, nessa que diziam ser a Cidade das Mangueiras...
Até aí me lembro. Depois, o que vem na lembrança são flashes. Num deles, eu e mais dois amigos estamos num bloco de rua... Depois tudo fica nebuloso, indefinido, os flashes que surgem não me dizem nada de concreto.
Vou me infiltrando no meio da multidão. Procuro meus amigos. Não conheço ninguém, não sei onde estou. Como se localizar numa cidade desconhecida, no meio do carnaval, cheia de gente desconhecida e ainda por cima porre? Para muitos, essa seria uma ótima situação para se enturmar, caçar uma paquera e tal. Pra mim, vendo tudo e todos como um borrão, começou a parecer um pesadelo. O desespero foi tomando conta. Corri. Corri pelo meio da multidão enlouquecida. Procurei rostos, nenhum conhecido. Atravessei ruas, avenidas, por pouco, algumas vezes, não fui atropelado. Vejo-me caminhando por uma rua escura. Uma sensação estranha de que alguma coisa, ou alguém, me perseguia. Olhei para trás. Um casal passava, abraçados. Segui em frente. Antes de dobrar numa esquina olhei novamente para trás. O rapaz segurava a garota contra o muro e rasgava com os dentes a garganta dela. O sangue vertia, escarlate, vivo. O homem sugava cada gota, engolia cada pedaço de carne que se soltava. Fiquei paralisado, ou, melhor, tentei ficar. A cabeça tonteava, o corpo tonteava. Quase não conseguia ficar de pé. Na escura, solitária, nenhum barulho sequer, só os gemidos baixos da moça. Então ela foi se calando, até que as mãos pararam de tremer e ela se calou de vez. O homem a largou no chão e olhou em minha direção. Corri. Corri o mais rápido que pude. Tropecei por calçadas, por cima de árvores que surgiam do nada no meio do caminho...
A lembrança desaparece. Outro flash.
Estava numa avenida movimentada. Luzes multicoloridas ofuscavam minha visão. Coloquei uma mão sobre a testa para fazer sombra e segui, tateando pelos muros. Fui parar numa parte da cidade que parecia ter parado no tempo. Casarões ladeavam ruas estreitas que a cada passo pareciam se estreitar mais ainda. Entrei numa dessas ruas. Percorri alguns metros e tudo foi se estreitando, se estreitando... Quando dei por mim, as paredes das casas de ambos os lados da rua haviam se juntado no alto, formando um túnel escuro. Aquela mesma sensação de estar sendo observado... Junto com ela, sussurros pareciam confirmar o que eu temia: não estava sozinho. Seria o homem? Olhei para trás. Nada. Mas nas sombras, algo parecia se mover. O coração acelerou. As pernas começaram a se trançar enquanto eu tentava andar mais apressadamente. Corri. Tentei pedir ajuda; mas as janelas que ainda estavam abertas eram rapidamente fechadas enquanto eu me aproximava. Rostos indefinidos espiavam por trás das cortinas esfarrapadas. Mais à frente o som de gonzos me diziam que uma porta estava sendo aberta. Um filete de esperança surgiu. Corri. Gritei por socorro enquanto me aproximava cada vez mais da porta. Na luz que ela lançava sobre o estreito túnel, uma sombra alongada dizia que alguém esperava parado no batente. De alguma forma me senti aliviado. Até diminui os passos. Enquanto me aproximava da porta, ia olhando pra trás, e, na vista turva, nada de mais parecia me seguir. Uma sensação de conforto, meio de alívio, começou a tomar conta de mim. Olhei para frente. A figura continuava na porta. Meus olhos queriam se fechar, forcei-os para que continuassem abertos. Não dava. Semicerrei-os, e assim continuei. A figura parada era muitíssimo menor que a sombra projetada. Parecia uma criança. A cabeça baixa, metida nas mãos, parecia chorar, o corpo tremia como se soluçasse. Os sussurros voltaram. A mesma sensação de estar sendo observado, perseguido, voltou. Olhei pra trás, pra frente, até pro alto. Nada. Quando percebi, estava parado diante da porta. A luz vinha de uma única lâmpada amarelada de uma luminária sobre uma escrivaninha cheia de livros aparentemente antigos, com as folhas soltas caindo por toda a parte. Baixei os olhos. A figura, que não soube identificar se era um menino ou menina, continuava ali; mas havia parado de soluçar, porém mantinha a cabeça nas mãos. Toquei seu ombro, ia perguntar alguma coisa que não recordo, quando ela levanta a cabeça. Minha mão formigou, e o formigamento percorreu todo o meu corpo em questão de segundos, parando na nuca. Duas órbitas vazias me encaravam. A boca, aberta num ângulo impossível, anunciava um grito que não cheguei a ouvir, pois saí em disparada sem olhar pra trás de uma forma que nem sei como, dado o estado de terror que me encontrava. Mas acho que foi isso mesmo. Terror. A adrenalina do momento. Mas por mais que eu corresse, por mais que atravessasse ruas, avenidas, passasse por lugares movimentados, cheios de gente, aquela sensação de estar sendo observado, perseguido, me perseguia...
Estaria ficando louco? É essa a sensação que se tem quando se está enlouquecendo? Não lembro se chorei, se gritei, ou se, de fato, cheguei a pedir ajuda pra alguém. Essa é uma das partes da lembrança em que tudo parece ficar nebuloso, e tu não sabes se o que tu lembras de fato aconteceu, ou se é apenas o teu subconsciente misturando as coisas, o real com o apenas imaginado. O que me recordo é de ver as pessoas rindo em minha direção. De ver os sorrisos se escancararem até se tornarem grotescos, as bocas se abrindo em ângulos inumanos, as mãos se contorcendo em minha direção. Então corri. Corri como correria um desesperado. Se me disserem que atravessei a cidade correndo, acredito; se disserem que corri por horas, também acredito. Não sei – realmente não sei – a real dimensão das horas, da distância. Só sei que quando parei, estava diante de um muro gradeado. Mais à frente, o portão estava aberto. Abaixei-me rente ao meio muro sobre o qual a grade começava. Engatinhando, fui em direção ao portão, com os ouvidos atentos ao menor sinal de sussurros. Nada, tudo silêncio. Nenhuma viva alma. Já no portão, conferi o que havia para além dele. Na minha visão, não parecia ser nada muito excepcional, era como se fossem pequenas casas, dispostas de forma irregulares, separadas aqui e acolá por estátuas estranhas, meio góticas. Ouvi risadas, conversas, choros de criança. Animei-me. Aquilo parecia ser muito agradável. Entrei. Caminhei por corredores estreitos, alguns escuros, outros vagamente iluminados. A sensação estranha havia passado. Tudo finalmente parecia estar voltando aos eixos. Não, eu não estava ficando louco. Cheguei a sorri ao constatar isso. O que havia sido aquilo, a final? Certamente efeito da bebida, da cidade; minha vó dizia que algumas cidades antigas têm disso, como se para entrar nelas fosse preciso pedir permissão. Seria isso? Não, não. Esse tipo de coisa é apenas crendice, bobagens...
De toda forma, eu havia chegado a um lugar desconhecido, havia me perdido dos meus amigos. Precisava voltar. Mas como? O celular havia ficado no hotel. O único jeito era pedir informação pra alguém. Mais à diante um grupo de pessoas, envoltos em capas brancas, conversava numa roda, cabisbaixos, como se segredassem algo. Aproximei-me pra pedir informação. À minha aproximação todos se calaram, só sussurros se ouviam. Uma coruja piou. Cheguei mais perto. Ao dizer “boa noite” todos se viraram, de uma só vez. Órbitas vazias me encaram. Bocas foram se alongando em aberturas sinistras enquanto mãos esqueléticas avançavam em minha direção. A primeira coisa que tentei fazer foi gritar, mas o grito não saiu. As pernas não respondiam ao comando de correr, raízes pareciam prender meus pés. Caí no chão. As mãos se contorcendo em minha direção. A vista cada vez mais turva. Fui me arrastado em direção à saída como em câmera lenta, o corpo pesando uma tonelada. De cada lugar que parecia uma casa pequena outras mãos surgiam, sussurros, gritos sufocados, como se abafados por alguma coisa. Engatinhei rumo ao portão. Não estava longe, não poderia estar longe! Avistei-o. Deveria estar a uns vinte metros apenas. Dava pra chegar lá! TINHA que chegar lá. Engatinhei o mais rápido com consegui. Quando cheguei ao portão, vi, para minha infelicidade, que uma enorme corrente o lacrava. Estava fechado. Não tinha como passar. Levantei-me; não tinha como pular o portão, era muito alto. Segurei-o. Sacudi com toda a força que me restava, o que não era muita. Minhas mãos, enfraquecidas, escorregavam. Olhei pra rua em frente. Carros passavam em alta velocidade. Uma marchinha de carnaval tocava em algum lugar. Na calçada em frente um grupo de pessoas passou e começou a rir de mim... Minha vista foi embaçando mais e mais. As luzes dos postes foram se apagando, uma a uma. Senti um vento frio na nuca e um sussurro no ouvido. Então foi como se um anzol tivesse puxado meu umbigo pela parte de dentro em direção ao chão. E eu apaguei.
                Por quanto tempo fiquei assim, não sei. Mas quando recuperei a consciência, já na quarta-feira de cinzas, percebi que estava numa cama de hospital, um gosto azedo na boca, um soro alimentando minhas veias. Antes de abrir os olhos, porém, ouvi as vozes de Gustavo e Carlos, meus amigos, e de uma pessoa desconhecida, provavelmente um médico. Eles conversavam, mas só pude entreouvir poucas coisas. Como, por exemplo, que eu havia ficado doido pra experimentar cocaína. Como depois de ter cheirado algumas vezes comecei a ficar muito agitado e a dizer que tinha alguém me perseguindo. Como, para fugir do perseguidor imaginário, me meti no meio do pessoal e me perdi deles... Depois não ouvi mais nada porque apaguei.
Minutos depois voltei à consciência e abri levemente os olhos. A enfermaria estava lotada, mas só Gustavo e Carlos permaneciam próximo à minha cama. Fiquei quieto, ouvindo o que falavam. No íntimo, tentava encontrar uma explicação para dar a eles.
– Esse cara é doido... – Gustavo disse balançando a cabeça.
– Doido? Ele teve foi sorte – Carlos me olhou. Fechei os olhos. – Foi misturar cerveja, cachaça com aquela porra que tu comprou! Mais um pouco e ele tinha uma overdose, o médico disse...
– Verdade...
Fiquei à espreita. Eles se calaram por um tempo. Até que Gustavo voltou a falar:
– Sabe o que o Guarda disse?
– O quê?
– Que ele tava só de short, sem carteira, sapatos, sem nada! Só conseguiu nos encontrar porque ele tava com o cartão do hotel no bolso de trás. Então eles ligaram pra lá e de lá eles me ligaram...
– Cara, eu já tinha até ido na polícia... Já tava indo num hospital quanto tu me ligou...
– Nem me fala. Mas ó, vamos entrar num acordo. A gente não vai falar nada disso pra ele, pode ser que ele morra de vergonha, sei lá...
– Não, claro. A gente fala que ele só apagou e a gente trouxe ele pra tomar um soro, alguma coisa assim.
– Isso...
Novamente silêncio. Gustavo estalou os dedos, um a um, depois continuou:
– E sabe o que foi mais sinistro?
– O que?
– O lugar onde acharam ele...
Senti um arrepio na nuca. Os flashes vieram, todos de uma vez. Teria sido real, ou só as projeções de uma mente perturbada? Pensei em abrir os olhos e revelar minha presença. Não queria mais ouvir nada. De certa forma ainda tinha esperança de que aquilo tudo não passasse imaginação... Mas fiquei quieto. Voltei a semicerrar os olhos.
– Onde? – Carlos quis saber.
Gustavo olhou em minha direção e sussurrou:
– Dentro de um cemitério antigo, já desativado. O nome é parecido com saudade –
– Soledade?
– isso! – Gustavo disse e olhou novamente em minha direção. Senti um formigamento nos pés. – Ele tava agarrado na grade do portão...

JURUPARI {FRANCIORLYS VIANA}


Vai passando discretamente por trás da cadeira de balanço do avô. Este percebe, chamando-o quer saber para onde ele irá vestido igual a um “papagaio de circo”. O neto explica que a indumentária colorida está na moda. O idoso não entende como uma camisa lilás-fosforescente, um sapatênis flavo com cadarço verde e solado roxo, ainda outra extravagância, uma calça mais justa que a justiça divina, cheia de rasgados, pode agradar aos jovens de hoje em dia.
Quando o idoso começa a pronunciar a frase “no meu tempo...” é interrompido.
– Qualé, my brother? Corta esse papo quadrado! Tô do jeito que as gatinhas curtem. Vô namorar bastante esta noite!
 A mãe, lá do quarto, impulsionando a máquina de costura, ouve-o e grita: “Isso são modos de falar com seu avô? Respeita os mais velhos, se não vou aí e te dou umas boas palmadas!”.
 Na sala neto e avô riem da irritação da costureira. São cúmplices mórbidos. O idoso sente sua alma pulsando na veia indômita dos dezenove anos do jovem. Está cansado de prover dinheiro para ele ir ao cinema, passear com os amigos, ou viajar para balneários.
No fundo, bem no fundo, no baú das raras alegrias que não sucumbiram ao tempo, habita-lhe uma filosofia que afirma “quando meu neto pulsa/vive, é como se eu fosse o coração batendo/revivo”.

Esse sentimento rudimentar de avô é sagrado.

 O avô indaga onde ocorrerá o festejo. O neto corrige-o, esclarecendo que se chama “Rave”. Responde que será no Vila Nova; conhecida sede dançante. A única remanescente dos dias aurorais do idoso, agora, repaginada e adequada à exigência dos novos frequentadores.
A menção a sede deixa o ancião bastante assustado. O neto percebe e indaga: “O que tá pegando, vô?”. O idoso pigarreia, deixa de balançar-se, semblante fechado, inclina o peito para frente.
– Vila Nova? Foi lá que um dia eu vi o Jurupari.
– Jurupari? O que é isso? A gente come? – o jovem caiu na gargalhada.
– Jurupari é o nome que tomei do Guarani para me referir ao demônio.
– Ah, tá! O senhor quer que eu acredite que o demônio – de puro desdém fez questão de espichar a pronúncia da vogal “o”– apareceu pro senhor, no Vila Nova? 
– Sim, meu filho. Tal qual vou te contar. Quando eu tinha a tua idade, o Jurupari resolveu me pregar uma peça. Fui ao Vila Nova participar dum baile patrocinado pelo saudoso Prefeito Antero Dias (que Deus o tenha num bom lugar!). A sede estava ornamentada com adereços ribeirinhos. Se não me falha a memória o tema era justamente sobre os mitos e lendas da Amazônia. O prefeito escolheu essa temática, não porque se importasse com o folclore nortista, mas porque sua filha Heliane Patrícia, que era professora formada, garantiu que isso daria um ar culto ao mandatário do município...
 O jovem percebeu que estava prestes a ouvir uma daquelas histórias mirabolantes do avô. Admiráveis dos seis anos aos dez, interessantes dos onze aos quatorze, toleráveis dos quinze aos dezesseis, fatigantes dos dezessete até a idade atual. Não é que necessariamente os causos tenham ficado prolixos. É que os adultos na sua adultice sempre buscam a verossimilhança no que lhes são contados. Quando não as encontram, reputam as palavras por mentiras e as desprezam. Bom será o dia em que for desvendado que se tem buscado algo em uma procura invertida. Dever-se-ia olhar a vida e em não encontrando verossimilhança com a ficção, execrar a realidade por não se ter elevado ao patamar dos romances, contos, poemas fábulas e crônicas.
O neto, que antes de ser parado pelo avô pretendia esperar os amigos no pátio da casa, olhou o relógio e pensou “A galera não deve demorar muito. O vô vai começar a lorota dele, vô fingir que tô gostando, logo meus amigos chegam, interrompo o papo e zarpo fora!”.
Plano elaborado, voltou à atenção ao idoso que continuava sua falação.
–... Estava vestido com extrema elegância. Na cabeça, um topete feito com o melhor óleo de mutamba do boteco. Seu avô era um bom pé de valsa! Os brotos brigavam pra que eu os puxasse pra uma contradança. Naquela noite, estava cansado. Dancei com as irmãs Sara e Selma (as “frenéticas”, como eram conhecidas), depois fui sentar a um canto, solitário. Tapava-me a vista os casais de namorados que dançavam logo à frente. Ouvia-se na caixa de som uma música da ternurinha Wanderléa. Então, uma moça belíssima surgiu entrecortando a chusma de dançantes. Nunca nestes setenta anos de vida, encontrei uma garota como aquela. Era simplesmente estonteante! Tinha as madeixas louras. Não um louro oxigenado. Um louro puro, quase dourado. Unhas pintadas de esmalte preto. Boca carnuda. Dentes branquinhos. Trajava um vestido rubro. O interessante é que ela veio em minha direção. Sim, na direção do seu avô. Estendeu-me as mãos, convidando-me pro meio do salão. Abismado que estava nem atentei pro fato de que não era usual uma mulher arrastar um homem pra dançar. Emendamos treze músicas seguidas. Ela me parecia um anjo assanhado. Nesse ritmo levamos até quatro horas, quando me dei conta de que até ali não pronunciara um palavra se quer com a desconhecida. Resolvi arriscar: “Qual é o teu nome?”. Ela me fitou. Vi suas retinas de um vermelho mais forte que vinho em copo de vidro. Ela abriu um sorriso insinuante. Riu de canto de boca. Respondeu:
“Me chamo Luiza”.
Nesse instante a noite começou a se recolher no horizonte. Notei que após me dizer o nome, ela olhou pro firmamento e fez uma expressão de preocupação. Desapegou-se das minhas mãos. Sem me olhar uma última vez, virou-se e se entremeteu na multidão, as carreiras. Sumiu. Demorei alguns minutos aguardando que ela voltasse; como percebi que não, saí a sua procura em todos os cantos do Vila Nova, sem êxito. Perguntei aos meus amigos se a tinham visto, mas eles responderam que não tinha visto ninguém comigo naquela noite. Que estive sozinho o tempo todo. Certo de que não estava tresloucado. Continuei procurando a mulher, da qual conhecia apenas o prenome “Luiza”, que partira sem nem se quer me deixar, a semelhança daquele famoso conto de fadas, o sapatinho de cristal como pista. Um prenome e nada mais. Quantas Luizas devem existir no mundo? Após vasculhar toda a sede, veio à mente o lugar óbvio onde ela deveria estar: o toalete. Lógico! Ela sentiu vontade de urinar, não deu pra segurar, e saiu correndo. Se bem que faz tempo... Dirigi-me rapidamente pro lado onde ficava o banheiro. Encontrava-se fechado. Sorte que a porta era de madeira. Bati repetidas vezes. Chamei: “Luiza! Luiza! Luiza!”, não houve resposta. Fiquei preocupado. Como os seguranças do Vila Nova estavam ocupados demais pra me socorrerem, resolvi arrombar a porta. Com um chute o fiz. Foi então que a vi por um instante, não mais que um instante. Ela estava de costa pra mim. De repente seu cabelo louro começou a se transformar num longo rabo. Na cabeça surgiram chifres. Braços, pernas e pescoço foram recobertos de pelo. A mulher ficou com a aparência dum bode. O ar se empestou dum odor insuportável de enxofre. Ela (ele) se virou pra mim com um aspecto horrível. Olhos esbugalhados. Soltava fumaça pela narina. Rinchava como cavalo. Fiquei apavorado. Juro que me urinei todinho! Comecei a clamar pelo sangue de Nosso Senhor. Congelado de pavor, espiei nos olhos da criatura. Ele (ela) me reparou. Deu um berro de agonia, um pulo para o alto e evaporou no ar. Só depois disso consegui me mexer do lugar. O bicho que vi era o cramulhão em pessoa.
 Após terminar o relato, o neto estava sobressaltado, mas para não dar o braço a torcer gracejou: “Cramulhão, é? Além da Jovem Guarda, será que ele também é chegado num batidão?”, e pôs-se a gargalhar, sob a advertência do avô que o mandava ter cautela com o assunto. Lá fora um carro buzinou. Os amigos do jovem tinham chegado. Ele deu um beijo na mãe (que lhe rogou que retornasse cedo) e outro no avô. A este, disse:
– Se preocupa não vô, se o capeta/cramulhão/demônio/Jurupari me aparecer hoje eu xaveco também!
Na festa, depois de exagerar no energético, o jovem, sentindo-se nauseabundo, deixou a companheira dançando com um amigo e foi se sentar a um canto. Cinco minutos depois, uma mão de unhas esmaltadas de preto o convidava para dançar. Vendo tudo trêmulo, distinguiu levemente uma cor avermelhada no vestido da pessoa que lhe arrastava para o salão. Ouvia-se na aparelhagem a música Closer to Heaven, do DJ israelense Astrix. Em dado momento, enrolou seus dedos nas madeixas da moça, percebeu que eram louras. Resolveu perguntar:
– Gata, qual é mesmo o teu nome?
Ela abriu um sorriso insinuante. Riu de canto de boca. Respondeu:


 – Me chamo Luiza.

O MONSTRO {RAPHAEL SOARES}

Gravura de Gustave Doré

Crianças normalmente possuem o medo irracional de que monstros saiam pela porta de seus armários. A criança de que trataremos adiante possuía um medo similar, de que o monstro entrasse pela porta do quarto e o ferisse, mas esse medo não parecia irracional: o monstro vinha regularmente e o machucava.

Todas as noites aguardava com pavor a chegada do monstro, e quando não vinha, como hoje, era um alívio. Crianças normalmente tentam se defender ligando as luzes, mas ligar as luzes não serviria de nada nesse caso, apenas pioraria a situação. Preferia as luzes ligadas. Ao acordar pela manhã, aliviado, arrumava-se. Os danos das agressões passadas não cessavam nunca, mas havia um pequeno consolo de uma visita a menos. Escovava os dentes e vestia o uniforme escolar. Descia para a cozinha e tomava a bênção da mãe, que estava preparando um ótimo café da manhã e lhe tratava com profundo carinho. Não possuía irmãos, então todas as atenções eram dedicadas a ele desde o início da manhã. Terminava de comer e logo tentava dizer à mãe que não queria ir à aula, mas ela parece que nunca o compreendia. A mãe tentava convencê-lo de que a escola era importante, mas parece que o filho não a compreendia. Pouco depois desceu o pai da família, pronto para levá-lo à escola e ir ao trabalho, encerrando o ritual que se repetia todos os dias. Beijava a esposa e acariciava o filho, levando-o ao carro para mais um dia de aula.
Era deveras um pai atencioso, carinhoso e exemplar, e o filho não conseguia compreender a metamorfose que frequentemente acontecia; será que o pai sabia das coisas que o monstro fazia com ele todas as noites? Pensava o menino. Sua avó certa vez lhe contara, das lendas do norte, várias histórias de homens que se metamorfoseavam em lobisomens, porcos, insetos e diversas outras criaturas aterradoras. Poderia seu pai ser uma espécie de lobisomem? Também sua mãe contara como um irmão fora possuído por espíritos demoníacos, ou assim acreditava a família, enquanto o pai ria dessas coisas como sendo “superstições”. Seria alguma força do mal a incitar a incredulidade do pai? Também os desenhos mostravam como alguma química poderia transformar seres inofensivos em monstros aterradores, e não era seu pai um farmacêutico? Tentou falar:
— Pai...
— Sim, filho, o que há?

E a conversa não passava daí. Na escola sentava-se ao fundo, mas não era dos mais ativos. Ficava apenas recolhido em seu canto, independente de ser notado ou não pelos professores. Uma das professoras apenas tentava fazer-lhe participar das aulas, sem sucesso. A falta de interação social, aliada ao rendimento escolar precário, preocupavam a professora que já havia convocado os pais para tentar descobrir os problemas que poderiam causar essa apatia escolar. Chegou até a ser sugerido o acompanhamento psicológico da criança, mas os pais se negaram; seu filho não era louco para tal. Voltando para casa a criança recolhia-se em seu quarto. Não possuía amigos, e seus pais trabalhavam a tarde inteira. Chegava a noite e o medo aumentava gradualmente. Comia, tomava as bênçãos do pai e da mãe e voltava para o quarto. Com a luz desligada observava a porta por horas sem grudar os olhos. O monstro apareceu naquele dia.

PELOS OLHOS DE LÚCIA {SAMANTHA DE SOUSA}

    

Os olhos pesavam presos num sono que não se consumia. Há sete dias ela não saia do quarto, há sete dias ela não se alimentava, há sete dias ela não via a luz, há sete dias ela não dormia. Pela janela entrava um vento extremamente congelante, sentia os pelos se arrepiarem num lento calafrio. Lúcia tremia, era como se o seu corpo fosse aos poucos perdendo o controle.
         Os olhos de Lúcia encontravam os olhos dele e afundavam. Eram olhos negros e profundos, como um além. Ele estava ali parado perto do berço, era pequeno e parecia tão frágil, tão pálido, olhava tão fixamente para ela que parecia invadi-la. A criança já não chorava mais, parecia ter perdido as forças, quedava-se entre as cobertas em silêncio, pouco se movia, mas ainda respirava. Lúcia também já não tinha forças, aquele olhar parecia sugar toda a sua energia.
         O olhar de Lúcia fugia daqueles olhos de escuridão e daquela face vazia e passeavam pelas paredes ensanguentadas e cheias de visgos apodrecidos. Quando aquilo tinha começado? Ela já não sabia mais, era como se o tempo tivesse perdido o sentido. Durante sete dias, Lúcia esteve aprisionada por uma eternidade. Aquela criatura simplesmente aparecera ali, no pequeno quarto que dividia com seu filho recém-nascido, acomodara-se no pequeno espaço entre o berço e a parede, implantara-se ali como um provedor de angústia.
A princípio, ele só existia na mente de Lúcia, quando ela dormia e era arrebatada por sonhos demoníacos, vozes a chamavam, mãos invisíveis a tocavam e destroçavam sua pele, quando ela acordava, o alívio e o medo pairavam sobre si. Mas agora, acordar já não bastava, os pesadelos saíam dos sonhos e se tornavam reais. Quando ela fechava os olhos era como se fosse sugada por aqueles olhos negros que nunca se desviavam dela. Aquele olhar incomodava como uma ferida latejante e sempre ia de encontro ao seu, por mais que evitasse. Aqueles olhos estavam em todos os lugares, Lúcia os via nas sombras, na face de seu filho em seu próprio reflexo no espelho. Olhos de buraco negro.
Lúcia já não adormecia, mas era como se estivesse dormindo, fora tomada por um sopor. Via sua carne apodrecer todos os dias, vomitara pelo chão tudo o que havia dentro de si. A náusea tornava a fome e a sede impossíveis. Lúcia ensurdecera, o silêncio era absoluto e caótico, ela não ouvia nem mesmo seu próprio pensamento, como se ele também tivesse se calado. Tudo foi silenciando aos poucos: o desespero de Lúcia, o choro do bebê, os sons da cidade, as vozes que invadiram o quarto. Tudo foi se calando devagar. O silêncio era grave como uma nota fúnebre. Um rosto vazio, apenas as duas órbitas negras flutuando naquele rosto pálido e morto, ele olhava para dentro dela. Aquele rosto sem boca parecia devorá-la, mastigá-la. Era doloroso ser devorada por dentro.
         O vento congelava sua alma e espalhava o cheiro de carne podre que emanava de seu próprio corpo. Sim, ela estava apodrecendo, era preciso então morrer. Lúcia levantou-se pesadamente e tomou o filho nos braços, ela podia ouvir o palpitar do coração dele. Uma mistura de vazio e desespero a preenchiam, ela estava tão perto dele. Ele olhava. Devagar, Lúcia caminhou rumo à janela, não havia nada do lado de fora, apenas uma distância profunda entre ela e o chão, olhou pela última vez para aqueles olhos de negro infinito, apertou o filho em seu peito e se jogou.

MÁSCARAS {GIROTTO BRITO}


O último dia do mês de Fevereiro era sempre ansiosamente aguardado pelos poucos habitantes da pequena vila de San Martín. O vilarejo de poucas famílias, isolado no vale entre as montanhas do leste, nada tinha de especial. Com suas ruas tortuosas, calçadas de paralelepípedos e uma dezena de casas que circundavam uma velha igreja, a vila orgulhava-se do único e especial evento que organizavam anualmente. Felizardo aquele que visitava o Carnaval de San Martín!
Acontecia ao entardecer, quando a escuridão começava a adentrar pelos becos e as lamparinas iam se acendendo. Os foliões iam saindo de suas casas com tambores, flautas, banjos e trombones, e as serpentinas caiam dos postes ao som das músicas carnavalescas. Todos com suas fantasias extravagantes e obrigatórias, dos mais variados personagens. Havia Pierrôs, Colombinas, Arlequinas, Capitães, Corallinas, Coviellos, Bobos da corte e malabaristas que equilibravam objetos e cuspiam labaredas. 
Apesar de todos serem conhecidos, naquela noite ninguém sabia quem era quem. Era regra estar mascarado. Todos brincavam, cantavam e dançavam anonimamente e para garantir que a regra se cumprisse plenamente, um vigilante fantasiado de Gárgula ficava na entrada do vilarejo com uma estante cheia de máscaras para os viajantes que ali chegassem.
Era raro viajantes aparecerem por ali, mas naquela noite um rapaz se aproximou da vila seduzido pela música e as luzes do baile que podiam-se enxergar do alto das montanhas.
— Seja bem vindo ao Carnaval de San Martín, meu rapaz. Escolha sua máscara e seja quem você quiser.
O rapaz acenou com a cabeça e cogitou passar sem pegar a máscara, mas o vigilante o interceptou e voltou a repetir o chavão:
— Escolha sua máscara e seja quem você quiser.
O rapaz olhou desconfiado e voltou-se para a estante de máscaras.
— Eu posso pegar qualquer uma? Tenho que pagar?
— Escolha a que você quiser, são gratuitas e obrigatórias para se entrar na festa.
O rapaz coçou a cabeça e começou a observar as máscaras. Eram muitas e de todas as formas. Heróis, vilões, personagens carnavalescos, monstros, animais e até rostos de pessoas desconhecidas, mas entre todas, uma chamou sua atenção de modo especial. Jogada num canto da estante, havia uma máscara de vidro, completamente transparente.
— E esta, o que é? — perguntou o viajante intrigado com a máscara que não esconderia seu rosto.
— Essa é a máscara que te torna quem você realmente é. É a máscara que tira todas as máscaras.
— E qual é a graça de ser você mesmo no carnaval?
O vigilante aproximou-se, encostando sua fantasia levemente no ombro do viajante.
— Você sabe quem você realmente é?
— Claro que sei! Como poderia não conhecer a mim mesmo?!
— Sorte a sua. Eu não teria coragem de usar essa máscara.
— Bobagem!
O viajante pegou a máscara e levou consigo, colocando-a já no meio da festa. Um a um, os foliões foram paralisando ao vê-lo. Os flautistas foram parando de tocar e os tambores se calando. Os banjos tocaram o último acorde e as danças cessaram. Um silêncio amedrontador tomou conta das ruas de San Martín e, de repente, todos os olhares de voltaram para o viajante. Olhares aterrorizados.
Era a primeira vez que viam alguém completamente sem máscaras.


A DANÇA {JACI AMARAL}


Fiquei feliz ao ver o rosto complacente daquela senhora à beira da minha cama. Eu não sabia exatamente onde estava e a febre alta me causava confusão mental. Mas, ao acordar, senti um imenso medo de estar sozinho.
Quão aliviado me senti ao ver que aquela senhora me olhava como a um filho, embora eu não me lembrasse de já tê-la visto. Tentei me sentar, mas ela, gentilmente, tocou-me a testa e me fez permanecer quieto, sob o cobertor. Pegou um pano e umedeceu-o em uma pequena bacia contendo água e álcool, o que eu pude identificar pelo cheiro.
Fiquei imóvel, obedecendo a uma ordem muda, transmitida unicamente pelo cuidado com que a senhora me tratava. Lembrei-me de minha mãe, de quando ela, incansavelmente, se preocupava com meus delírios noturnos. Me senti tão cheio de cuidados que até sorri. Ela também sorriu, como se já esperasse aquela minha reação.
No embalo desse surpreendente carinho, acabei adormecendo.
Acordei, no outro dia, me sentindo bastante revigorado. Consegui engolir todas aquelas sopas, caldos e coisas sem graça que são servidas nos hospitais. Eu estava feliz. Quase ao meio dia, vi a senhora (eu não conseguia olhá-la como uma simples enfermeira) entrar no quarto, ir direto à cama de outro paciente e sorrir para mim, pouco antes de sair. Meu quadro já apresentava uma considerável melhora.
Passada uma semana, eu me vi tendo uma recaída. A febre voltara violenta e as dores no abdômen também. Vomitei várias vezes durante a noite, enquanto a senhora, pacientemente, limpava toda a minha sujeira e acalmava as minhas convulsões. Mas, apesar dessa minha recaída, os médicos se demonstravam otimistas. Eu estava melhorando e isso os agradava imensamente. Graças à “enfermeira noturna”, da qual eu nunca lembrei de perguntar o nome.
Passaram-se mais uma... duas... três noites em que ela simplesmente entrava no quarto, ia até uma das camas e, sem muito demorar-se, ia embora. Eu, por dias, me senti abandonado, pois vi que, enquanto uma enfermeira fria e apática se encarregava de meus cuidados, ela, a senhora, dedicava sua atenção a outro. Sentia-me enciumado e já me via saindo daquele hospital sem que ela voltasse a mim. Até que, em uma noite, ela veio novamente sentar-se à beira de minha cama, segurou-me a mão como se pedisse desculpa e, num gesto suave, levantou-me sorrindo. Eu a puxei como se a tirasse para dançar, ela, ignorando a idade, encaixou-se em mim. Divertidos, rodopiamos alguns segundos, até que meus olhos alcançaram a figura de mim mesmo, inerte e pálido sobre a cama.