O ÚLTIMO NATAL





 

Guilherme seguiu o endereço dado pela namorada pelo aplicativo de celular. Não conhecia muito o local, andara pouco por lá. Bairro cheio de mansões luxuosas, refúgio da nata política e empresarial da cidade. 

Larissa, na realidade, não era sua namorada. Não ainda, pelo menos. Haviam se conhecido na internet há algumas semanas, trocaram fotos, interesses em comum. Ele sempre pedindo para marcarem algo e ela sempre dizendo não, que a família era tradicional e muito rígida quanto a isso. Até que chegou o natal. E, já não aguentando a distância, ela propôs que ele fosse passar a ceia de natal em sua casa, seria o momento ideal para os seus pais o conhecerem e aprovarem, ou não, o namoro.

Guilherme aceitou na hora. 

Dia 24 de dezembro, por volta das 21h00, ele iria.

***

O veículo Uber parou em frente a uma luxuosa residência, dois andares em estilo neoclássico. Guilherme conferiu o aplicativo. Era o mesmo endereço. Conhecia aquela casa, e isso o assustou um pouco. Era a casa do prefeito.

“Larissa nunca mencionou isso”, pensou enquanto apertava a campainha. Um segurança brutamontes veio atender a porta. Olhou de cima de seus mais de 2 metros para Guilherme, a mão no coldre da pistola:

― Pois não, o que deseja? 

― Boa noite, sou o Guilherme, convidado da Larissa.

O segurança meteu a cara para fora do portão e olhou para os lados.

― Veio sozinho?

Guilherme pensou o quanto deveria ser difícil a vida de uma autoridade como o prefeito, e os riscos que ele e sua família deveriam correr o tempo todo. Talvez por isso Larissa tenha relutado tanto em conhece-lo pessoalmente.

― Vim sim ― respondeu.

― Beleza, pode entrar. Fique à vontade ― o segurança sorriu de forma sarcástica, e Guilherme entendeu ter sido por educação.

Do portão à casa, cerca de uns vinte metros, passou por um jardim bem grande, cheio de rosas que exalavam um cheiro que, de tão forte, chegava a ser enjoativo.

Larissa o esperava no hall de entrada, diante de duas imensas portas duplas.

― Oi... ― ele a beijou no rosto. ― Porque você não disse que era parente do prefeito? 

Larissa riu baixinho:

― Filha, na verdade. Não queria estragar a surpresa... 

― Entendi...

― Mas fique tranquilo ― Larissa abriu um sorriso imenso. ― Minha família vai gostar de conhecer você. 

Havia um brilho muito intenso no olhar dela, e Guilherme já a imaginava entrando na igreja vestida de noiva. “A mulher da minha vida”, pensou. 

― Pode entrar.

Logo na entrada a família estava reunida em uma imensa e bem decorada antessala. Uma árvore de natal, igualmente imensa, num canto brilhava em luzes e enfeites de natal.  Conversavam baixinho entre si e pararam abruptamente quando Guilherme entrou. Viraram-se para ele e exibiram um sorriso radiante.

― Chegou o nosso convidado especial! ― disse, entusiasmada, a mulher mais velha presente, provavelmente a matriarca da família. Um sorriso de uma dentadura escurecida e os cabelos brancos, quase prateados, presos num coque no alto da cabeça. ― Entre, meu rapaz, seja bem-vindo!

― Boa noite! ― ele retribuiu tímido.

― Guilherme, essa é a minha avó Nazaré ― Larissa apresentou. ―  Aquele é o meu pai, Antônio, que você já deve conhecer, minha Mãe, Márcia, e meus irmãos mais velhos, Rodrigo e Samara.

Guilherme os cumprimentou, um a um, e ficou extremamente nervoso ao apertar a mão do prefeito da cidade. O prefeito, porém, o tranquilizou e o convidou a sentar-se com eles enquanto a ceia estava sendo preparada. 

Guilherme contou sua história, como conhecera Larissa. Sentiu que era muito querido por todos, quase parte da família já. Tinha certeza que o pedido formal de namoro não seria dificuldade. Não estranhou nada os sorrisos escancarados de todos, os dentes alinhados, os pretos da vovó. Sentiu-se totalmente à vontade...

― Você costuma comemorar o natal, Guilherme? ― o pai indagou.

― Sim, minha família toda é católica, então o natal é sagrado.

O pai levantou as sobrancelhas.

― Aqui também é tradição. Fazemos nosso ritual todos os anos... Como forma de agradecer a prosperidade do ano e pedir mais para o ano seguinte... É assim desde sempre. Tudo o que temos é fruto disso ― o pai apontou para o interior da mansão, os móveis caros, as obras de artes nas imensas paredes, onde uma foto sua como prefeito estava emoldurada. ― E neste ano você terá a honra de celebrar conosco!

Guilherme corou.

― Em casa comemoramos apenas nascimento de Cristo...

― Sim, também... ― o sorriso do pai se abriu mais ainda. ― Você bebe alguma coisa, Guilherme? ―  perguntou. 

Guilherme bebia sim. Mas, achando que fosse uma pegadinha do futuro sogro, apenas balançou a cabeça em uma quase negação:

― Senhor Antônio, bebo muito pouco, só em ocasiões especiais...

― Pois então! ― o pai animou-se. ― Vou te trazer um licor especial, tradição na família. Servido apenas em ocasiões como esta!

Guilherme assentiu. Imaginou que, por ser um licor especial, deveria ser um tipo de bebida muito cara e refinada, e que experimentá-la, assim de cara, era sinal de que era realmente especial para a família de Larissa.

O pai saiu. A sala ficou em silêncio, e todos, voltados para Guilherme, mantinham o mesmo sorriso no rosto. Aquilo, de certa forma, já estava começando a assustá-lo.

― Tá tudo bem?

Guilherme virou-se abruptamente para o lado. Era Larissa.

― Tá sim.

Larissa desculpou-se por tê-lo assustado. 

― Não, ta tudo bem, coisa da minha cabeça.

― Pronto!

Guilherme virou-se. O pai estava na sua frente com uma bandeja nas mãos, sobre ela uma garrafa de cristal com um líquido estranho, vermelho quase preto, e com um forte cheiro adocicado. Dentro do líquido alguns objetos pareciam submersos, mas Guilherme não conseguiu identificar.

O pai pegou uma pequena taça. Encheu-a até a metade e deu para Guilherme.

― Prove, você vai gostar.

Guilherme primeiro tentou distinguir o cheiro. Não conseguiu. Bebeu um gole. O gosto era forte, mas bom.

― Beba mais. ―  O pai incentivou.

Guilherme virou o resto da bebida.

― E então, querido? ― A avó indagou, o sorriso tão escancarado que parecia salivar. 

― Muito bom. De que é feita?

― Ah, isso é segredo ― o pai interveio. ― Está na nossa família há gerações... 

Guilherme piscou...

... o pai do meu avó que...

Guilherme piscou novamente e levou uma eternidade para fechar e abrir os olhos...

... navio quando chegou...

Olhou para o teto. As luzes ofuscavam vindo de todas direções...

... mas depois... soube que o... 

Os sons estavam sumindo num redemoinho... luzes... flashes... gritos... sangue...

― ... do ritual.

***

Guilherme pulou da poltrona. Respirava apressadamente.

― Tá tudo bem, querido. ― Uma voz feminina o confortou. Virou-se, era Samara, a irmã mais velha de Larissa. Larissa estava sentada mais adiante, e estava diferente.

― O que aconteceu? ― ele quis saber.

― Acho que a bebida foi muito forte pra você ― a irmã respondeu e todos riram.

Olhou-os, um a um, cada rosto com um sorriso quase grotesco.

― Não se preocupe, meu filho ― a avó falou. Estava com os cabelos trançados numa única trança prateada. ― Levanta, vamos para a mesa. A ceia já vai ser servida.

Guilherme estranhou...

― Que horas são? ― Perguntou.

― Dez para meia noite, Carlos ― o pai respondeu, apontando o relógio na parede. 

― Eu sou Guilherme, senhor Antônio.

O pai sorriu. O pai também estava diferente. Todos estavam diferentes, aliás, Guilherme percebeu. O que permanecia estático, sinistro, eram os sorrisos macabros. 

Levantou-se. Olhou rápido para um espelho na parede do outro lado e viu dois olhos azuis num rosto que não era seu. A respiração acelerou. Num ímpeto saiu correndo da sala em direção à saída. Ao abrir a porta dupla deparou-se que a mão fechada do segurança vindo em direção ao seu rosto.

***

Escuridão.

Risos. Cheiro forte de álcool entrou pelas narinas. Guilherme acordou de sobressalto, uma forte dor de cabeça e o olho direito parcialmente coberto e latejando. A forte luz do teto o cegou.

Estava deitado. Os pés, juntos, amarrados. Os braços abertos em formato de cruz, também amarrados pelos pulsos. Na boca um pedaço de pano o amordaçava.

E estava nu.

Um vento gelado o arrepiou. Tentou se soltar, logo constatou ser impossível. Gemeu em busca de ajuda, mas só recebeu em troca risos dos seres que o rodeavam, a forte luz do teto o impedia de identifica-los de imediato. Aos poucos a vista foi se acostumando à claridade. Pai, mãe, avó, irmã e irmão mais velhos de Larissa o observavam, inclusive Larissa. Todos tinham o mesmo sorriso macabro estampado, lambiam os beiços, pareciam salivar. 

― É natal, Carlos! ― O pai falou. Guilherme respirava apressadamente. Medo e confusão estavam estampados em seu rosto. ― Essa é a nossa ceia.  E você, convidado da Samara ― Guilherme olhou para a irmã mais velha de Larissa sem entender ―, será o prato principal...

Foi quando sentiu algo rasgar sua coxa direita causando uma dor lancinante. Os olhos esbugalharam em lágrimas e ele urrou. Levantou a cabeça e viu a avó cortando um generoso pedaço da carne da sua coxa, de cima à baixo. Tentou, em vão, se debater. O pai e o irmão o seguraram. Olhou para o pai buscando encontrar a figura simpática do prefeito que havia sido reeleito na última eleição com votação expressiva por ser um homem de bem e um bom cristão. Estava ali a figura, por fora. Dentro, mostrado através do sorriso macabro, estava uma coisa que Guilherme não conseguia compreender... E desmaiou.

***

            Acordou tempos depois. A ferida imensa na coxa latejava e queimava como se mil agulhas espetassem seguidamente. Olhou ao redor. Todos estavam sentados, foi quando percebeu que estava na enorme mesa de mogno da sala de jantar. À cabeceira, onde a cabeça de Guilherme estava, sentava o pai. Nos pés, a avó. Nos outros quatros assentos, a mãe e os filhos. Larissa o olhava afetuosa, os olhos brilhando. A avó se levantou. E retirou algo que estava assando no forno e entregou numa travessa para o pai. O pai olhou. Depois olhou para Guilherme. Riu. Era o pedaço de carne da sua coxa.

            Guilherme se debateu e gemeu. 

            O pai levou o dedo indicador aos lábios pedindo silêncio. Levantou-se e colocou a travessa com a carne assada da coxa de Guilherme num sinistro altar na parede um pouco mais adiante, onde velas negras queimavam e figuras esculpidas em mármore negro e que em nada lembravam santos católicos ou de qualquer outra religião recebiam oferenda.

            O pai voltou ao seu lugar. Todos se levantaram. Deram as mãos. Os sorrisos se desfizeram. No lugar, semblantes mórbidos, grotescos, quase inumanos. Começaram a fazer algum tipo de oração em uma língua que Guilherme nunca tinha ouvido. Oravam numa cadência ritmada, cada um pronunciava uma palavra e o outro, ao lado, pronunciava a próxima, de forma que era como se a oração estivesse circulando em sentindo anti-horário. Guilherme olhava para cada um aturdido, tentando acompanhar cada frase pronunciada de cada boca. Sentiu o estômago revirar, a cabeça começar a girar. Os olhos daquelas pessoas, ou o seja lá o que fossem, começaram a ficar brancos e a oração entrou num ritmo mais frenético. A cabeça de Guilherme girava automaticamente, tudo ao redor girava. Guilherme sentia-se flutuar num turbilhão, e enquanto flutuava conseguiu distinguir uma criatura alta e escura entrar pela porta, como um imenso boi disforme: dois olhos imensos, acesos como brasas, fumaça saindo da boca como se soltasse um ar extremamente quente das entranhas infernais, e um par de chifres retorcidos de carneiros. Os olhos de Guilherme se arregalaram mais ainda. A criatura foi até o altar, pegou a carne e a engoliu. Guilherme começou a se debater a tentar gritar o mais alto que conseguia. E então despencou com um baque surdo na mesa. 

Abriu os olhos. Continuava amarrado. A criatura não estava mais lá. Os outros continuavam em pé, tinham parado a oração. Olhavam para Guilherme sedentos, as bocarras, quase inumanas, se abrindo num sorriso grotesco. 

― Feliz natal, Calos! ― o pai disse. E antes que Guilherme se desse conta do que estaria para ocorrer, sentiu a primeira mordida. Olhou, a avó arrancava um pedaço generoso da panturrilha esquerda. Logo várias outras partes começaram a ser arrancadas a dentadas e devoradas avidamente. Guilherme se debatia e urrava, sentia uma dor tão intensa que beirava a loucura. Olhou para o lado, a mãe arrancara um dos dedos da mão direita e Guilherme conseguia ouvir ela triturando as falanges nos dentes. Se debateu. Urrou. Milhões de agulhas por todos os lados. Pareciam hienas. Em algumas partes já haviam chegado ao osso, pois os dentes batiam em algo sólido... Guilherme foi parando de reagir aos poucos, era como se o corpo estivesse anestesiado pela dor. Via o seu corpo sendo despedaçado, mas não podia fazer nada... Aquilo era muito surreal para ser verdade... Não é real, tentou se convencer enquanto ainda tinha consciência. E antes perde-la, a irmã de Larissa, nua, montou em cima dele e colocou o seu pênis, que por algum motivo diabólico estava ereto, em sua vagina... Ela se contorcia como uma serpente, passava o sangue de Guilherme em seus seios, no corpo, em êxtase. As mãos dela vieram em direção ao seu rosto. Ele ainda sentiu quando os seus dedos entraram nas suas órbitas oculares e arrancaram seus olhos... Guilherme sentiu-se morto. Devorado. Mas de alguma forma, ainda conseguia ver, de longe e se afastando, a irmã cavalgando no seu cadáver sobre a mesa... Depois foi Larissa. Sentiu-se caindo... E tudo ficou vermelho, como sangue, e então escureceu, escureceu... E tudo se apagou.

***

            Guilherme acordou num sobressalto.

            ― O que foi, Guilherme? ― era Larissa.

        ― Nada... ― Guilherme olhava em volta respirando apressadamente. Todos estavam ali, como antes, os mesmos sorrisos. ― Acho que acabei cochilando...

― Acho que a bebida foi muito forte pra você... ― Larissa disse e todos riram.

Guilherme sentiu o coração acelerar. Tinha alguma coisa estranha.

― Vem, vamos para a mesa ― era a avó. ― A ceia já vai ser servida.

Guilherme se levantou e tentou correr. Sentiu uma forte pancada na parte de trás da nuca e caiu por cima da bandeja com a bebida... A garrafa espatifou-se no chão, o licor avermelhado como sangue escurecido espalhou-se por todos os lados... E antes que Guilherme desmaiasse conseguiu distinguir os objetos que estavam dentro da garrafa. Parados numa poça da bebida aos pés de uma poltrona, dois olhos azuis o observavam. 

 

Elias Abner.

Castanhal, 24.12.2020.






Imagem tirada originalmente de “ https://realidadesimulada.com/santa-claus-a-verdadeira-historia-por-tras-do-papai-noel/

O JARDIM DENTRO DE MIM {GIROTTO BRITO}




 Como num estranho sonho, vi-me envolto em um emaranhado denso de galhos secos e folhas mortas. O luar irrompia com dificuldade por entre as árvores e o silêncio revezava com o estalar dos galhos ao sinal dos ventos amenos da primavera.
Andei cambaleante na noite, enxarcando os pés no chão que ficava mais úmido a cada passo. Os pés descalços se cortavam nas raízes, os joelhos iam ao chão, depois voltavam ao ar, e tornava a caminhar.
Mais à frente, uma clareira. Os arbustos se afastavam dando lugar a um grande jardim. Grande e belo, embora sombrio e melancólico. A lua despejava sobre a relva um brilho tristonho e as plantas, de tão secas, já não tinham cor. O silêncio pairava ferozmente sobre aquele lugar, denunciando a falta de qualquer criatura vida ao redor. Os pilares, que antes possivelmente sustentavam plantas trepadeiras, foram tomados pelo fétido musgo, e o mato esgrouvinhado sufocava as flores que outrora haviam ali. Das fendas, ervas daninhas brotavam e se espalhavam por todos os lados.
Enquanto caminhava, observando o jardim, invadia-me a inquieta sensação de já ter estado ali num outro tempo, talvez quando criança, ou numa outra vida. Imaginei aquele lugar em tempos idos, quando a grama cobria o chão lamacento e as trepadeiras cobriam as colunas exibindo as cores vivas das flores que se abriam na primavera e, pareceu-me, que havia estado ali justamente nesses tempos de beleza divinal.
De repente, meu corpo se elevou e os pés afastaram-se do chão. Uma força estranha arrastou-me lentamente para o alto e a imagem do jardim foi tomando outra forma. Do alto, de longe, vi a imagem cinzenta do jardim que sentia ter visto outrora, tomando a forma volumétrica do órgão que só do céu pude reconhecer. E, de tristeza, estremeci ao ver que as flores murchas eram, na verdade, minhas esperanças – e o jardim, meu frio e morto coração!



Baseado no poema A Garden (1917), de H. P. Lovecraft.

HORROR NA ESCOLA {WAGNER DE LA CRUZ}



— Se apresse, menino! Vai se atrasar! [gritava Íris para o filho].

Já passava do meio-dia e Bruno ainda não estava pronto para almoçar e ir para a escola. Na verdade, ainda estava só de cuecas e metido embaixo das cobertas quando sua mãe chamou.
Na noite anterior o Telecine Cult transmitiu "O Exorcista", clássico que ele apenas ouviu falar, mas nunca havia assistido. Sempre lhe disseram que era o filme mais assustador de todos os tempos, o que despertou sua curiosidade quando viu, no final da tarde passada, que estaria em exibição.

O horário marcado era 02:25, Bruno precisou deixar o despertador ligado para não perder a hora. Assim, com a TV do quarto em volume baixo, para não atrapalhar o sono dos pais e receber um bronca, ele assistiu a obra-prima de William Friedkin sem medo, do auge dos seus nove anos. Bom, não exatamente sem medo. Ao término do filme, já passada as cinco da manhã, as cenas da possessão da garota Reagan não saiam de sua mente. Era fechar os olhos que as imagens do vômito verde, o giro da cabeça, a masturbação com o crucifixo (que ele sequer entendeu bem) ou a levitação teimavam em surgir. Claro que ninguém saberia disto, já que seria humilhante para um homem admitir que ficou com medo de um filmezinho bobo, assim pensava.

O sono só chegou muito tempo depois do Sol raiar e iluminar parcialmente o quarto do garoto. Ainda que tivesse medo de que, a qualquer instante, sua cama fosse começar a balançar, sentiu-se mais seguro sendo dia e os pais estarem acordados. Quando escutou o pai ligar o chuveiro caiu no sono quase instantaneamente. Não teve pesadelos. Na verdade, nem teve certeza se dormiu, tinha a impressão de num instante fechar os olhos e no outro ser despertado pela mãe.

Preguiçosamente, vestiu a primeira camiseta que sua mão tocou e dirigiu-se para o banheiro, semi-acordado. Lavou o rosto, escovou os dentes, urinou abundantemente (não o fazia há mais de dez horas) e tomou um banho rápido, quase frio, mais para despertar do que para higienizar-se. Após fechar o chuveiro e apertar a toalha contra os olhos ao secar-se, já se sentia mais disposto.

O cheiro da comida da mãe era delicioso. O aroma do feijão bem temperado atiçou o estômago de Bruno logo que ele saiu do quarto, já vestido para o colégio. Tinha fome. E agradecia a Deus pelo cardápio não trazer sopa de ervilhas.

* * *

Bruno estava no segundo ano. Estudava na Escola Municipal de Ensino Fundamental Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, em Novo Hamburgo, no bairro Redentora. Era um dia bonito de outubro, em plena primavera, com o Sol brilhando e uma leve brisa impedindo que o calor insuportável se instalasse.

Exatamente para aproveitar a tarde, a professora resolvera antecipar a Educação Física, que estava programada apenas para o próximo dia.

— Não é dia de ficarmos trancados na sala! [Dizia animadamente Fernanda, a mestra, que na verdade era uma estagiária e não tinha idade nem para ser mãe dos seus alunos].

Bruno gostava de futebol, mas, após dormir pouco e ter comido rapidamente no almoço, não se sentia muito animado para jogar. Mesmo assim, atendendo a pedidos dos seus colegas e, principalmente, porque Marianne, a menina que ele gostava, estava olhando, decidiu jogar um pouco. Bem pouco, na verdade, já que, cinco minutos após entrar na quadra, uma bola afortunadamente acertou seu nariz, após um colega do time adversário chutá-la forte e sem direção. Bruno caiu de costas, enquanto enxergava raios de todas as cores e formas graças a bolada. Fernanda chegou a correr para acudí-lo, mas as risadas dos colegas, juntamente com a vergonha de ter feito papel de bobo à frente da mulher da sua vida trataram de reanimá-lo imediatamente.

* * *

Nuvens começavam a se formar, escondendo o Sol. A brisa já começava a tomar forma de vento e, por precaução, Fernanda decidiu que era melhor retornarem à classe.

Mais cansado ainda, após tentar exibir-se para Marianne e ser nocauteado, passando o resto da aula emburrado, Bruno sentou-se pesadamente em seu lugar, no fundo, próximo à janela, e se pôs a conversar com Jean, seu colega e melhor amigo.

— E aí? Viu o Exorcista ontem? [perguntava Bruno]

— Pior que não. Meus pais não me deixaram ver e…

— Ah! Não mente, cagão!

— Sério, cara! Eu ia olhar, sim!

— Aham, sei… Tava é com medinho, seu viado! Eu olhei todo e…

— Meninos… [interrompia a professora] Abram seus livros, agora é hora do conto.

— Viadinho… [disse Bruno para Jean, quase inaudível, com um sorriso de canto de boca]

A hora do conto, para Bruno, era tédio puro. Nunca gostou muito de ler, nem mesmo quadrinhos. Se ler já era chato, dizia, imagina alguém ler para você! E a história de hoje era João e Maria, um conto que ele já ouvira umas quinhentas vezes e que achava muito infantil. Mesmo assim, resolveu acompanhar a professora Fernanda no seu Livro de Contos, um calhamaço com cinquenta histórias que os alunos receberam no início do ano letivo.

A chuva começava a cair, de imediato Bruno bocejou, mas seguiu acompanhando a fábula. Quando João e Maria encontraram a casa de doces na floresta, Bruno embaralhou a vista e quase não distinguiu as letras do texto. Quando João ofereceu um graveto para a Bruxa tocar, no lugar de seu dedinho, Bruno cochilou sobre o livro.

Acordou de sobressalto, com o barulho do granizo batendo no vidro da janela. De olhos arregalados, percebeu que estava sozinho na sala, que estava com muito frio e que já anoitecera…

* * *

Quanto saiu do banho e vestiu-se para ir à escola, usava apenas uma calça jeans e uma camiseta gola polo, e saíra reclamando do calor.

— Leva uma blusa, pois esfria de tarde! [disse-lhe a mãe].

Bruno não lhe deu ouvidos, como era de praxe. Desta vez, porém, arrependia-se. O termômetro da sala, que a tarde registrava 25°, agora marcava 5°. Um frio atípico para a estação.

Com os braços cruzados sobre o abdômem, caminhou até a porta, rezando para que não estivesse trancada. Um arrepio correu pelo pescoço quando tocou a maçaneta, sentindo todos os pêlos do corpo se eriçarem, mas, felizmente, estava destrancada.

O frio fora da sala era estranhamente menos intenso. Porém, o corredor estava às escuras, bem como toda a escola. Pelo que o garoto lembrava, o interruptor se localizava em uma pilastra próxima à escada, há uns cinquenta passos de onde ele estava, segundo suas contas. Não queria passar a noite alí, mas, principalmente, não queria permanecer no escuro.

Aguardou seus olhos acostumarem com a penumbra e, guiando-se pela parede, saiu para o corredor. Mentalmente ia contando os passos, quase não respirando de tensão, ouvindo o barulho do granizo no telhado.

Vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove…. O frio retornava com força. Agora ele podia ver nuvens de ar a cada respirada. Quase pensou em voltar correndo para a sala de aula, mas agora estava mais perto do interruptor, então decidiu acelerar o passo, quase correr.

Quarenta, quarenta e um, quaren… seus pés pisaram em algo molhado e viscoso. Mal teve tempo de registrar isto, pois vislumbrou a pilastra quase ao alcance das mãos. Deixando o apoio da parede, Bruno correu onde se lembrava que ficava a chave de energia. Seus dedos tocaram imediatamente as teclas e fez-se a luz!

Com o corredor perfeitamente iluminado, Bruno teve um hiato de cinco segundos de uma tranquilidade razoável, até registrar uma poça de sangue a menos de dez metros de onde ele estava. Seus olhos se voltaram primeiro para as pegadas rubras que seus tênis deixaram pelo caminho, e em seguida para o teto, sobre a poça, de onde pendia o corpo do senhor Mauro, o zelador da escola. Estava nu, pendurado pelos pés através de uma corda fixada em um suporte de uma das luminárias. Uma perfuração no centro do peito e o rosto completamente vermelho, com um semblante de sofrimento, davam a ideia de que sangrara até morrer.

As pernas de Bruno fraquejaram, seu estômago se contorceu, querendo expulsar o almoço. Inclinou-se sob o parapeito e, segurando-se nas barras, vomitou. O som ecoava na escola vazia. Pálido, ainda tremendo, contornou a poça e correu para o andar de baixo.

* * *

O térreo estava iluminado somente pelas luzes do segundo andar. O hall de entrada da escola tinha uma porta dupla de um vidro transparente, dando direto para o pátio principal. Bruno correu direto para lá, e forçou uma das folhas. Sem sucesso. A porta, além de trancada a chave, possuia uma corrente unindo os puxadores, do lado de fora, com aros grossos, e um cadeado.

Desesperado, jogou-se contra o vidro, que devolveu o mesmo impacto, atirando-lhe ao chão. Um trovão ribombou no pátio, sobre uma das traves de madeira da quadra de futebol. O fogo imediatamente começou a consumir as goleiras. Com dificuldade, Bruno levantou-se, apoiando o corpo nos pesados vasos de planta que ali haviam. Devido ao breu da noite, não havia percebido algo nas traves que, agora, devido ao fogo, podia ver melhor: Professora Fernanda, sem roupas, pendurada pelo pescoço em uma corda no meio do travessão e com as mãos amarradas às costas tremulava ao ritmo do vento.

Bruno ficou em estado de choque. Estático, permaneceu olhando fixamente para o pátio, com os olhos arregalados e a boca aberta. Só saiu do transe quando o fogo consumiu a corda e Fernanda, com os cabelos em chamas, caiu no chão de concreto. Ele precisava sair dalí, tinha de achar uma saída, não queria ficar preso naquela escola.

Sem ação, lembrou-se dos banheiros, que ficavam bem próximos da entrada. Cada compartimento possuia uma janelinha. Ele teria de tentar. Disparou na direção dos sanitários mesmo quase sem visibilidade, com a adrenalina em alta. Nem percebia que chorava até as lágrimas salgadas chegarem à sua boca.

* * *

Meio trôpego, Bruno deu com o nariz na porta do banheiro masculino. Testara a maçaneta insistentemente, quase a arrancando da fechadura, mas nada acontecia. Frustrado, escostou a testa na madeira e começou a chorar copiosamente, deixando-se deslizar até o chão enquanto soluçava.

Foi em meio às lágrimas que, olhando para a escada que conduzia ao segundo andar, vagamente iluminada, um movimento chamou-lhe a atenção: envolto em algo que parecia uma toga com capuz, um Ser praticamente deslizava rumo ao andar de baixo através dos degraus. Lentamente, o Ser virou a cabeça na direção de Bruno. Um par de olhos estrábicos, de um violeta vivo, fitaram o garoto. Da fenda negra abaixo do nariz, bem evidente devido a pele pálida, um largo sorriso com dentes disformes e amarelados surgiu. A coisa apontou um dedo para Bruno:

— Você… [a voz era quase um ronronado de um gato] Quero você…

A bexiga do menino soltou-se nesta hora. Nem percebeu o mijo quente escorrer por entre as pernas. A sua mente de garoto não havia lhe sugerido tentar o banheiro feminino. Era algo errado, proibido. Mas Bruno não mais importava-se com bons modos e, antes da criatura entrar na curva da escadaria, testou a porta do sanitário das meninas. Quase gargalhou ao achá-la destrancada.

Encostou-a sabendo ser inútil, já que não tinha a chave, mas não se preocupava com isto. Precisava ser rápido, podia sentir o farfalhar da toga nos degraus da escada há menos de trinta metros. Aliviou-se ao achar a tomada e ter o cômodo inteiramente iluminado.

O banheiro feminino tinha três compartimentos, e, instintivamente, dirigiu-se ao central. Ao abrir a porta sentiu uma nova onda de horror: Jean estava sentado, com as calças abaixadas. O colega de Bruno fôra decapitado, e só foi reconhecido pelo amigo graças a camiseta da banda Oasis, que usava frequentemente, agora ensopada de sangue. Tornando a cena ainda mais bizarra, Jean segurava em suas mãos, na frente da virilha, a cabeça de Marianne, que mantinha a boca escancarada em um eterno O e os olhos abertos sem vida e sem íris.

Pela primeira vez na noite Bruno gritou, e cambaleou de costas até encostar na parede, afastando-se daquele cenário aterrador. O ar parecia impregnado com o cheiro pesado de sangue. Um gosto de bile subiu à garganta do rapaz quando escutou passos vindo do exterior do banheiro.

Impelido pelo medo, entrou no compartimento central, e puxou o amigo morto para o lado, a fim de subir no vaso. Ao deslocar Jean, o defunto derrubou a cabeça de Marianne. O barulho foi semelhante ao que se ouve ao atirar um peixe sobre uma tábua de madeira. A janela abriu sem dificuldade no exato instante em que a porta rangia ao ser aberta lentamente. Bruno subiu na caixa descarga, escorregadia devido ao sangue, e içou-se pela pequena abertura acima. Em três segundos estava do lado de fora, estatelado na relva, de costas para cima. Virou-se a tempo de ver o rosto pálido do Ser na janelinha, ainda a lhe sorrir.

A chuva era fria, as roupas estavam empapadas, Bruno tremia e batia queixo. Levantou-se e caminhou em direção ao portão da escola. Um cheiro de carne de porco assada chegou ao seu nariz ao passar próximo do corpo fumegante da professora. Ela havia caído de lado, e não era mais do que um esqueleto envolto em pele negra ressecada, mas com os olhos estranhamente vivos a fitar o garoto.

O granizo castigava-lhe o corpo franzino. Estava exausto, machucado pela queda, chocado com tudo que havia passado, mas resistia à entrega bravamente. Precisava sair daquele inferno e buscar ajuda. Estava a menos de dez metros do portão quando uma pedra de gelo do tamanho de uma bola de pingue-pongue o acertou no supercílio, o derrubando de joelhos.

Com a visão turva, levou uma das mãos ao machucado e se assustou quando as pontas dos dedos se mancharam de sangue. Do SEU sangue. Apoiando um braço no solo, levantou-se novamente e deu dois passos até que uma nova pedra de gelo, desta vez quase do tamanho do um punho fechado, atingiu-o na face, jogando-o no chão lamacento. Um gosto ferroso de sangue inundou sua boca enquanto a chuva de granizo ganhava força, judiando-o por inteiro.

Mesmo no frio sentia o corpo arder nos locais em que era atingido. Num ato de desespero levou as mãos ao rosto para se proteger. Parecia que todo o granizo do mundo havia o escolhido para alvo. Ao virar-se de barriga para baixo instintivamente, a fim de proteger os órgãos vitais, uma última pedra atingiu-o na nuca. Bruno perdeu os sentidos em meio a tempestade, enquanto uma poça de sangue aquoso formava-se ao redor de seu corpo.

* * *

Um barulho contínuo trouxe-o de volta. Estava deitado em uma cama branca, num quarto branco, com uma pessoa de branco à sua frente. Tinha dificuldade para abrir os olhos, que estavam bem inchados, mas, ao vislumbrar a mãe sentada na poltrona a seu lado, quase fez o globo pular da cavidade.

A mãe foi até ele e o abraçou levemente enquanto chorava silenciosamente, evitando forçá-lo muito.

— Eu… [Dizia Bruno, quase sussurrando] eu tô vivo? Mãe?

— Sim, filho! Sim! [Íris começava a chorar mais alto] Deus é bom!

— Mas… mas como me acharam?

A mãe olhou para o doutor, que lhe devolveu o olhar, meio embascado, piscando através dos óculos de lentes esmaecidas.

— A diretora ligou, filho. Você bateu com a cabeça na quadra jogando bola, lembra?

— Eu? Quando?

— Há dois dias, Bruno. [Respondeu o médico, por baixo da máscara cirúrgica] Desde então você apenas dormiu, até agora.

A cabeça de Bruno voltou a doer, sentiu o mundo girando. Sua mãe segurava seu pulso.

— Tudo bem. [continuou o doutor] É uma reação natural de quem sofre algum trauma no crânio. É melhor deixá-lo descansar mais um pouco, dona Íris.

A mãe acomodou-o no travesseiro. Um sorriso brotou no rosto de Bruno. Agora percebia que estava nu, provavelmente devia ter urinado nas roupas e na cama e foi preciso trocá-lo, mas era uma humilhação que poderia suportar.

— O que foi, filho? Por que o riso?

— Nada não mãe, um negócio que sonhei, só isso.

— Deve ter sido um sonho e tanto. [Disse o médico] Você dormiu por quase dois dias inteiros. Dormindo você se recuperaria mais rápido.

Bruno viu o médico introduzir uma seringa no frasco de soro que estava conectado ao seu corpo.

— O que é isto, doutor?! [perguntou o rapaz]

— Ah. É um negocinho para você dormir mais um pouco. Ainda não está bem, bem. Mais um dia de recuperação e já vai poder voltar até a namorar. [o doutor piscou para Íris, e um sorriso de alívio surgiu no rosto da mãe, em meio às lágrimas incessantes]

Íris abraçou o filho uma vez mais. Sua testa já não estava febril, o que aliviou ainda mais a mulher.

— Eu vou ao banheiro lavar os olhos filho. Já, já eu volto.

Após um beijo no rosto, a mãe de Bruno deixou-o só com o médico. O menino já sentia a sonolência lhe dominar enquanto seus olhos percorriam o quarto de hospital. Um instante mais tarde, seu olhar parou em seus tênis, colocados sobre a roupa dobrada que usava quando foi a escola na última vez, em cima de uma cadeira. Na sola, Bruno notou manchas vermelhas, como se ele houvesse pisoteado em beterrabas cozidas.

Aflito, mas sem forças, olhou para o doutor, parado aos pés da sua cama, com uma segunda ampola nas mâos. O médico baixou a máscara e sorriu, exibindo seus dentes amarelados e podres, e aproximou-se de Bruno. Através dos óculos, o garoto viu com incredulidade e terror os olhos vesgos cor de violeta. Então falou, abaixando o rosto próximo o bastante para que seu paciente sentisse o hálito putrefato:

— Bons sonhos, menino. Descanse em paz.


Depois disto, o mundo de Bruno foi tomado pelas trevas.


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Wagner De La Cruz (Tramandaí, 03/08/1988) é um escritor e compositor gaúcho. Inicialmente autor de contos eróticos, publicou seu primeiro romance, "A Defensora", um drama político, em 2015. Em 2016 aventurou-se no mundo do terror com o conto "Horror na Escola". É casado e vive em Imbé, famosa praia do Rio Grande do Sul.

O LIVRO AMALDIÇOADO DE EDGAR ALLAN POE {ELIAS ABNER}





Terça-feira, 6h00.
Não queria levantar naquela manhã. Se pudesse passaria o dia inteiro na cama. O despertador tocou duas vezes seguidas antes que criasse coragem e resolvesse levantar.
Passos arrastados afastam roupas e meias do caminho. A água fria do chuveiro dói na pele como espinhos pontiagudos. No espelho, a imagem de uma mulher velha. Imensas olheiras atestam mais uma noite sem dormir. Já eram várias naquela semana.
Não passou batom, apenas penteou os cabelos com os dedos e os amarrou com um elástico. Foi trabalhar.
Trabalhar, força do hábito. Naquele dia, e nos tantos anteriores, não consideraria chamar aquilo de trabalho, ou, se considerasse, na certa se envergonharia. Nunca sentira tanta vergonha de exercer a profissão que amara desde sempre.
Sentada atrás da escrivaninha, limita-se a corrigir, muito vagamente, trabalhos de concordância verbo-nominal passados na última semana e que cairiam na prova dali há pouco mais de um mês. Os alunos, que há algum tempo vinham notando a ausência da professora, aos poucos vão saindo da sala, um por um, sem que ela percebesse – ou sem que quisesse perceber. Quando ela se dá conta, a sala está vazia, silenciosa, apenas o ventilador do teto produzindo um som leve de peças gastas pela ferrugem do tempo. Fica um tempo olhando para o vazio da sala. E do vazio, nota uma penumbra se formando nos cantos, como uma sombra disforme se expandido. Sussurros baixinhos ecoam pelas paredes... Sente uma presença. Olha para o fundo da sala. Vê um objeto preto em cima de uma carteira. Estreita os olhos. O objeto se mexe e ela consegue enxergar que era um gato. Ele está de costas, parecia alheio àquilo tudo, a cauda serpenteando no ar. Mas, como se se percebesse descoberto, gira a cabeça em sua direção. No lugar onde ficava o olho esquerdo, apenas uma órbita vazia, sinistra; do outro lado, um olho de um amarelo forte a encarava. O gato fica assim por alguns instantes, parado, avaliando. Então eriça os pelos das costas, e como se estivesse com muita – muita! – raiva arreganha os dentes ferozmente e salta em sua direção.
Acordou com a sirene anunciando o fim da última aula. 11h45.
No banheiro privativo dos professores, fuma um cigarro escondida. Não ousa olhar para o espelho, temendo que o reflexo mostre mais que a sua imagem cansada...
Alguns amigos próximos haviam questionado o que estaria acontecendo. Estaria doente? Ela sempre desconversava. Cansaço, dizia apenas. Fazia algumas semanas estava assim, cansada, um esgotamento mais que físico. Era como se a alma estivesse esgotada... Pediram que fosse consultar um médico. Recusara. Precisava ficar em casa, respondia. Terminar de ler um livro...

* * *


  Três semanas atrás

Aquele dia começara como qualquer outro, nada de excepcional. Acordou às 6, como sempre. Trabalhou até o meio dia. À tarde, aulas de boxe na academia. Depois pegou o carro e decidiu passar numa grande livraria que acabara de ser inaugurada no Centro. Era uma leitora voraz, tinha verdadeira compulsão por livros. Mas havia tantos em casa, presentes do último natal, coisa de algumas semanas, que ainda estavam no plástico, esperando... Não tinha importância. Precisava de livros. Tê-los à mão era suficiente... Inebriava-se com o cheiro do papel, com o som das páginas viradas. Considerava um livro quase uma Entidade do Sagrado. Dobrar as folhas, marca-las?, considerava uma afronta. Riscá-lo, então? Sacrilégio! 
Estacionou o carro e entrou na livraria, três andares com os mais modernos lançamentos literários dividindo espaço com Cd’s e DVD’s. Vasculhou tudo, mas – o que parecia soar quase impossível – não encontrou nada que lhe agradasse. Saiu. Do outro lado da rua viu um pequeno sebo. Nunca o notara ali, quase escondido entre um prédio de advocacia e uma farmácia. Atravessou a rua e entrou. Precisava de livros. Não necessariamente novos. Na realidade, sempre gostara dos de segunda mão. Dizia haver certa magia em manusear um livro usado, assim, gasto. Era como se pudesse sentir o que outros leitores sentiram, como se isso, de certa forma, os tornassem íntimos. 
O atendente, um rapaz jovem, de barbicha e camisa do Pink Floyd, levantou os olhos de uma revista em quadrinhos que lia e deu um meio sorriso. Ela encaminhou-se pelos corredores apertados e um tanto bagunçados. Os livros pareciam ter sido amontoados de qualquer forma, sem seguir um padrão ou critério literário. Cada vez que dobrava um corredor novo o cheiro de mofo era sufocante, como se aquilo ali não fosse limpo há anos! Passou em uma prateleira mais de uma vez e, quando estava desistindo, viu a edição de luxo – em capa dura vermelha de bordas douradas – de um livro que parecia muito antigo. Uma bíblia estava por cima dele. Puxou-o de baixo. E então sentiu um forte arrepio na nuca, um vento derrubou alguns livros no chão. Ficou assustada e olhou em direção à saída, imaginando que o vento entrara pela porta aberta.
Histórias Extraordinárias: Edgar Allan Poe, lê o título na capa já muito gasta.
Folheia o livro. Estava todo – completamente – rabiscado. De imediato sentiu repulsa pelas suas condições físicas, um verdadeiro horror estava diante dos seus olhos. Chamou alguns palavrões e amaldiçoou quem quer que tenha feito aquilo! Apesar disso sentiu uma forte atração pelo livro, quase uma conexão imediata. Não saberia explicar. Decidiu comprá-lo. Assim, pelo menos, outros leitores não teriam a mesma sensação ao se deparar com aquela coisa.
O jovem atendente achou estranho, pois o livro não contava no registro. Era provável que o pai – que estava começando a informatizar – ainda não o tivesse registrado, mas nem no livro de registro estava contando. Era estranho. Mesmo assim vendeu.  

* * *

            Terça-feira, 13h00.
Depois de colocar o carro na garagem, entra em casa e tranca a porta. Larga a bolsa com materiais escolares num canto; os sapatos ficam pelo caminho enquanto caminha. As cortinas que estavam fechadas permanecem fechadas. Um único ponto de claridade vinha do balancim do banheiro social. Fecha a porta do banheiro. Penumbra total. E mofo, um cheiro forte de pano velho que há muito não era lavado. Senta-se na poltrona que, em outra época, usava todas as tardes para tomar café e ler seus livros preferidos. Na mesinha ao lado, algumas xícaras amontoadas ainda conservam um líquido viscoso do que antes fora café. Moscas voam, pousam. Numa mancha preta de café derramado, formigas trabalham incansavelmente tentando sugar o açúcar. Não notara quando ficara assim, tão desleixada.
Quer um cigarro. A última carteira está vazia. Procura no cinzeiro cheio. Entre tantos tocos encontra um cigarro pela metade, quase inteiro. Acende-o. Traga. Olhos fechados. Fumaça para o teto.
Abre os olhos.
Num canto da estante, está o livro.
Não quer pegá-lo. Não quer lê-lo. Não quer!
Os olhos vacilam. Quer chorar.
Luta ferozmente contra a compulsão que faz as mãos abrirem e fecharem furiosamente, como se estivesse em abstinência de alguma droga. E está. Ou melhor, está tentando se abster. Mas sabe, sabe, que não consegue. Por mais que lute, se esforce... não consegue. O corpo para de tremer, as mãos se aquietam. Abre os olhos. Olha para o livro. Ele sussurra.
Pega-o.

* * *

No dia em que comprara o livro acontecera algo estranho. 
Sentou-se à poltrona com uma xícara de café, alguns biscoitos integrais e um livro de Virginia Woolf à mão. (O livro de Poe ficara na sacola.) Antes de começar a ler o livro, o telefone toca. Foi atender. Ao voltar, deparou-se com o livro de Poe aberto na mesinha, e nem sinal do outro livro. Achou apenas estranho. Podia jurar que tinha pegado outro livro! Ou não?
Tomou o livro nas mãos, observando cada detalhe. Parecia uma obra bastante... singular. Em tantos anos de leitora voraz nunca havia se deparado com um livro tão bem acabado, apesar de velho, parecia que tinha sido feito sob medida, com acabamento à mão. Foi olhar a edição. Não havia. Teria sido feito à mão? As páginas todas estavam rabiscadas, como se fosse um diário, ou o caderno de algum adolescente rebelde. Perguntas soltas, sem nexo; outras direcionadas, como se a pergunta anterior fosse respondida e levasse à seguinte. E assim as perguntas/respostas iam enchendo os espaços vazios de cada folha, cada margem, às vezes dentro do texto. Ficou imaginado quem poderia ter feito aquilo, parecia um verdadeiro sacrilégio. Mas o que lhe chamara a atenção era o fato de que havia notado tantos rabiscos assim....
 Na página em que se iniciava O gato preto havia uma frase riscada, mas a pessoa que a escrevera (ou outra pessoa) riscara com tanta força que a ponta da caneta atravessara duas outras páginas. Era impossível saber o que havia ali em baixo; mas notara que, do riscado, a tinta azul escorrera pela página como se fosse sangue saindo de um corte profundo...
Fechou o livro de súbito. Já passava das nove horas da noite e nem notara. Mesmo fechado, quase conseguia ler as frases riscadas no livro, como vozes em sussurros.

* * *

O primeiro pesadelo foi por volta das três da madrugada.
Acordara com um grito de socorro. Era uma mulher, mas não lembra onde estava, nem quem seria, apenas que estava prestes a morrer e que gritava por ajuda. Permaneceu deitada na cama, a respiração acelerada, e um medo, um medo profundo. Parecia ouvir sussurros ao longe, como vozes abafadas por paredes, como se fossem de outras casas, choros. Seriam mesmo? O corpo todo estava arrepiado. As mãos tremiam. Os sussurros agora parecem mais forte, como se estivessem mais perto. Pareciam dezenas de vozes diferentes, homens e mulheres, todos lamentando, chorando. De onde estariam vindo?
Apesar do medo, resolveu que ia verificar.
Acendeu a lanterna do celular. Tentou sair da cama sem fazer barulho. A mão que carregava o celular tremia, o corpo todo tremia, as pernas vacilavam. A porta do quarto rangeu quando foi aberta, e as vozes silenciaram, como se estivessem esperando alguma coisa; e logo em seguida retornaram; mais fortes, mais perto. Vinham da sala. A lanterna do celular iluminava objetos soltos pelo caminho criando sombras distorcidas, fantasmagóricas. A sala estava vazia; mas as vozes continuavam. Foi se aproximando da poltrona de onde as vozes pareciam vir. Em cima da mesinha estava apenas o livro. As vozes, os lamentos e sussurros, pareciam vir dele!
Levou a mão à boca para evitar o grito. Ficou paralisada por alguns minutos, sem qualquer reação. Depois criou coragem e abriu lentamente o livro. Os rascunhos mudavam de lugar. Iam aparecendo no livro de acordo com as vozes e os sussurros; uns apagavam e logo outros surgiam, manchas de sangue também pareciam surgir do meio das folhas...
Deu um passo para trás. Foi quando sentiu alguma coisa se enroscando nos seus pés, alguma coisa peluda. O coração disparou. Ficou imóvel, só as pernas tremendo incontrolavelmente. Então virou vagarosamente a lanterna do celular para a coisa. Deparou-se com um enorme gato preto, mas estava tão magro que os ossos do corpo saltavam. Ele olhava fixamente em sua direção. E na luz da lanterna, uma órbita vazia a encarava; a outra exibia um olho amarelado, como uma enorme brasa. O gato mostrou os dentes afiadíssimos e foi eriçando os pelos da costa. De súbito pulou em direção à luz da lanterna.

Acordou com o celular despertando. 6h00.

* * *

Não sabe explicar como passou aquele mês. Sente como se não tivesse realmente vivido aqueles dias, ou como se tivesse tido apenas uma sobrevida, como se vivesse dentro de um eterno pesadelo.
Os amigos notaram de imediato a diferença. Largara a vida social, não saía mais, não se cuidava, largara as aulas de boxe que tanto amava, deixara até de ir nas rodas de literatura que ela mesma havia incentivado na escola. Parece que está morta, diziam os amigos, não estamos te reconhecendo... Ela dizia estar apenas cansada, muita coisa pra fazer. Na realidade, tinha muita coisa pra ler.
Há semanas notara que os rascunhos do livro pareciam não ter fim, e que ela nunca conseguiria terminar de ler tudo. Todos os dias eles mudavam, e às vezes era se como falassem entre si, como se estivessem conversando. Perguntava-se quem eram aquelas pessoas, ou que, de fato, era aquilo. Quando deu por si, estava com uma caneta na mão, escrevendo alucinadamente nas páginas do livro. Passava horas inteiras rabiscando. Rabiscava perguntas, e os outros rabiscos sussurravam respostas. As conversas duravam horas, às vezes dias inteiros. Ouviu que todas aquelas pessoas haviam morrido, ou melhor, se matado; e todas, no final, diziam a mesma coisa:
Mate-se!
* * *

Terça-feira, alguma hora da madrugada.
Mate-se...
Por várias vezes pensou nisso. Se jogar do viaduto, tomar veneno, cortar os pulsos. Naquela madrugada, na mais longa ideia sobre o assunto, pendurou uma forca no quarto. Subiu na cama. Experimentou colocar o laço no pescoço. Sentiu uma sensação estranha. Olhou-se no espelho do guarda-roupa. Viu seu reflexo enforcado. Os membros roxos, o rosto em agonia de uma respiração que não viera. No reflexo, os ponteiros do relógio na parede do outro lado corriam rapidamente, como se estivessem descontrolados. O tempo parecia descontrolado. Dia e noite alternavam-se em questão de segundos. Dias, semanas, meses e anos passaram rapidamente. O corpo apodreceu antes que fosse achado.
De súbito tirou o laço do pescoço. O corpo todo tremia.
Tomou a decisão que deveria ter tomado há muito tempo: ia devolver o livro.

* * *

            Algum dia, alguma hora.
Na garagem o carro criava poeira, os pneus secos. Não precisava de carro. Precisava andar. Atravessou a cidade a pé. Foi até à livraria.  Não percebera que ela havia mudado tanto em tão pouco tempo. O atendente, um senhor de meia idade com uma farta barba e uma camisa do Pink Floyd, nem ligou quando a porta abriu e ela entrou. Também não ligou quando ela perguntou se poderia devolver o livro, nem queria saber do dinheiro, só queria se livrar daquela coisa. Ele levantou os olhos, e como se olhasse vagamente para o nada, apenas suspirou.
Com raiva da total falta de receptividade do atendente, foi procurar um local para deixar o livro. Nos fundos da loja, na mesma estante de onde o tirara, encontrou o mesmo lugar. Estava vazio. Naquele momento lhe veio a ideia que deveria ter tido antes: deveria tê-lo queimado, ao invés de devolvê-lo. Queimado, talvez aquele pesadelo, ou maldição, não sabia, acabasse. Mas talvez fosse isso mesmo: pesadelo. Fruto da sua imaginação. Não achava que aquelas vozes fossem reais. Estaria ficando maluca? Não, essa coisa de livro amaldiçoado não existia, era coisa da sua cabeça. Queimar um livro, assim, clássico como aquele, que passara de geração em geração! Seria um sacrilégio. Fizera bem em não tê-lo queimado. O devolveu ao seu lugar de antes. Foi olhar outros livros, talvez um sobre religião. Uma bíblia, quem sabe?
As possibilidades eram tantas...
Sorriu e olhou em volta, as centenas de livros, as gerações ali, quase conseguia sentir o cheiro de cada dono, cada época... Seguia pelos corredores, os dedos passando pelas lombadas dos livros como se, de repente, descobrisse-se liberta. Mas então o sorriso morreu nos lábios quando viu um jovem rapaz, de aparência um tanto gótica, ir em direção à estante em que o livro de Poe estava. Ficou olhando para ter certeza de que ele não iria nem passar perto daquele livro. Mas ele foi justamente em sua direção, como se estivesse atraído por ele. Ela arregalou os olhos. Aquilo não poderia acontecer.
— Não! — gritou mas o rapaz não ouviu, e foi em direção ao livro.
Assim que ele tirou o livro da prateleira ela tentou pegá-lo de volta. Mas, como se tocasse o ar, sua mão passou direto, não chegou a tocar o livro, muito menos o rapaz. Ele porém, sentiu os cabelos do corpo arrepiarem. Fez o sinal da cruz e, olhando assustado para todos os lados sem ver ninguém, levantou-se, colocou o livro debaixo do braço e foi ao caixa pagar.



[A imagem original veio de: http://www.duofox.com.br/o-gato-preto-mitologia-e-misticismo-na-obra-de-edgar-allan-poe/]