Não recordo
muito bem os detalhes, de como tudo começou. Mas era noite. E era festa.
Carnaval, melhor dizendo. A cidade, Belém. Era a primeira vez, aliás, nessa que
diziam ser a Cidade das Mangueiras...
Até aí
me lembro. Depois, o que vem na lembrança são flashes. Num deles, eu e mais
dois amigos estamos num bloco de rua... Depois tudo fica nebuloso, indefinido,
os flashes que surgem não me dizem nada de concreto.
Vou me
infiltrando no meio da multidão. Procuro meus amigos. Não conheço ninguém, não
sei onde estou. Como se localizar numa cidade desconhecida, no meio do carnaval,
cheia de gente desconhecida e ainda por cima porre? Para muitos, essa seria uma
ótima situação para se enturmar, caçar uma paquera e tal. Pra mim, vendo tudo e
todos como um borrão, começou a parecer um pesadelo. O desespero foi tomando
conta. Corri. Corri pelo meio da multidão enlouquecida. Procurei rostos, nenhum
conhecido. Atravessei ruas, avenidas, por pouco, algumas vezes, não fui
atropelado. Vejo-me caminhando por uma rua escura. Uma sensação estranha de que
alguma coisa, ou alguém, me perseguia. Olhei para trás. Um casal passava,
abraçados. Segui em frente. Antes de dobrar numa esquina olhei novamente para
trás. O rapaz segurava a garota contra o muro e rasgava com os dentes a
garganta dela. O sangue vertia, escarlate, vivo. O homem sugava cada gota,
engolia cada pedaço de carne que se soltava. Fiquei paralisado, ou, melhor,
tentei ficar. A cabeça tonteava, o corpo tonteava. Quase não conseguia ficar de
pé. Na escura, solitária, nenhum barulho sequer, só os gemidos baixos da moça.
Então ela foi se calando, até que as mãos pararam de tremer e ela se calou de
vez. O homem a largou no chão e olhou em minha direção. Corri. Corri o mais
rápido que pude. Tropecei por calçadas, por cima de árvores que surgiam do nada
no meio do caminho...
A
lembrança desaparece. Outro flash.
Estava
numa avenida movimentada. Luzes multicoloridas ofuscavam minha visão. Coloquei
uma mão sobre a testa para fazer sombra e segui, tateando pelos muros. Fui
parar numa parte da cidade que parecia ter parado no tempo. Casarões ladeavam
ruas estreitas que a cada passo pareciam se estreitar mais ainda. Entrei numa
dessas ruas. Percorri alguns metros e tudo foi se estreitando, se estreitando...
Quando dei por mim, as paredes das casas de ambos os lados da rua haviam se
juntado no alto, formando um túnel escuro. Aquela mesma sensação de estar sendo
observado... Junto com ela, sussurros pareciam confirmar o que eu temia: não
estava sozinho. Seria o homem? Olhei para trás. Nada. Mas nas sombras, algo
parecia se mover. O coração acelerou. As pernas começaram a se trançar enquanto
eu tentava andar mais apressadamente. Corri. Tentei pedir ajuda; mas as janelas
que ainda estavam abertas eram rapidamente fechadas enquanto eu me aproximava.
Rostos indefinidos espiavam por trás das cortinas esfarrapadas. Mais à frente o
som de gonzos me diziam que uma porta estava sendo aberta. Um filete de
esperança surgiu. Corri. Gritei por socorro enquanto me aproximava cada vez
mais da porta. Na luz que ela lançava sobre o estreito túnel, uma sombra
alongada dizia que alguém esperava parado no batente. De alguma forma me senti
aliviado. Até diminui os passos. Enquanto me aproximava da porta, ia olhando
pra trás, e, na vista turva, nada de mais parecia me seguir. Uma sensação de
conforto, meio de alívio, começou a tomar conta de mim. Olhei para frente. A
figura continuava na porta. Meus olhos queriam se fechar, forcei-os para que
continuassem abertos. Não dava. Semicerrei-os, e assim continuei. A figura
parada era muitíssimo menor que a sombra projetada. Parecia uma criança. A
cabeça baixa, metida nas mãos, parecia chorar, o corpo tremia como se
soluçasse. Os sussurros voltaram. A mesma sensação de estar sendo observado,
perseguido, voltou. Olhei pra trás, pra frente, até pro alto. Nada. Quando
percebi, estava parado diante da porta. A luz vinha de uma única lâmpada
amarelada de uma luminária sobre uma escrivaninha cheia de livros aparentemente
antigos, com as folhas soltas caindo por toda a parte. Baixei os olhos. A
figura, que não soube identificar se era um menino ou menina, continuava ali;
mas havia parado de soluçar, porém mantinha a cabeça nas mãos. Toquei seu
ombro, ia perguntar alguma coisa que não recordo, quando ela levanta a cabeça.
Minha mão formigou, e o formigamento percorreu todo o meu corpo em questão de
segundos, parando na nuca. Duas órbitas vazias me encaravam. A boca, aberta num
ângulo impossível, anunciava um grito que não cheguei a ouvir, pois saí em
disparada sem olhar pra trás de uma forma que nem sei como, dado o estado de
terror que me encontrava. Mas acho que foi isso mesmo. Terror. A adrenalina do
momento. Mas por mais que eu corresse, por mais que atravessasse ruas,
avenidas, passasse por lugares movimentados, cheios de gente, aquela sensação
de estar sendo observado, perseguido, me perseguia...
Estaria
ficando louco? É essa a sensação que se tem quando se está enlouquecendo? Não
lembro se chorei, se gritei, ou se, de fato, cheguei a pedir ajuda pra alguém.
Essa é uma das partes da lembrança em que tudo parece ficar nebuloso, e tu não
sabes se o que tu lembras de fato aconteceu, ou se é apenas o teu subconsciente
misturando as coisas, o real com o apenas imaginado. O que me recordo é de ver
as pessoas rindo em minha direção. De ver os sorrisos se escancararem até se
tornarem grotescos, as bocas se abrindo em ângulos inumanos, as mãos se
contorcendo em minha direção. Então corri. Corri como correria um desesperado.
Se me disserem que atravessei a cidade correndo, acredito; se disserem que
corri por horas, também acredito. Não sei – realmente não sei – a real dimensão
das horas, da distância. Só sei que quando parei, estava diante de um muro
gradeado. Mais à frente, o portão estava aberto. Abaixei-me rente ao meio muro
sobre o qual a grade começava. Engatinhando, fui em direção ao portão, com os
ouvidos atentos ao menor sinal de sussurros. Nada, tudo silêncio. Nenhuma viva
alma. Já no portão, conferi o que havia para além dele. Na minha visão, não
parecia ser nada muito excepcional, era como se fossem pequenas casas,
dispostas de forma irregulares, separadas aqui e acolá por estátuas estranhas,
meio góticas. Ouvi risadas, conversas, choros de criança. Animei-me. Aquilo
parecia ser muito agradável. Entrei. Caminhei por corredores estreitos, alguns
escuros, outros vagamente iluminados. A sensação estranha havia passado. Tudo
finalmente parecia estar voltando aos eixos. Não, eu não estava ficando louco.
Cheguei a sorri ao constatar isso. O que havia sido aquilo, a final? Certamente
efeito da bebida, da cidade; minha vó dizia que algumas cidades antigas têm
disso, como se para entrar nelas fosse preciso pedir permissão. Seria isso?
Não, não. Esse tipo de coisa é apenas crendice, bobagens...
De
toda forma, eu havia chegado a um lugar desconhecido, havia me perdido dos meus
amigos. Precisava voltar. Mas como? O celular havia ficado no hotel. O único
jeito era pedir informação pra alguém. Mais à diante um grupo de pessoas,
envoltos em capas brancas, conversava numa roda, cabisbaixos, como se
segredassem algo. Aproximei-me pra pedir informação. À minha aproximação todos
se calaram, só sussurros se ouviam. Uma coruja piou. Cheguei mais perto. Ao
dizer “boa noite” todos se viraram, de uma só vez. Órbitas vazias me encaram.
Bocas foram se alongando em aberturas sinistras enquanto mãos esqueléticas
avançavam em minha direção. A primeira coisa que tentei fazer foi gritar, mas o
grito não saiu. As pernas não respondiam ao comando de correr, raízes pareciam
prender meus pés. Caí no chão. As mãos se contorcendo em minha direção. A vista
cada vez mais turva. Fui me arrastado em direção à saída como em câmera lenta,
o corpo pesando uma tonelada. De cada lugar que parecia uma casa pequena outras
mãos surgiam, sussurros, gritos sufocados, como se abafados por alguma coisa.
Engatinhei rumo ao portão. Não estava longe, não poderia estar longe! Avistei-o.
Deveria estar a uns vinte metros apenas. Dava pra chegar lá! TINHA que chegar
lá. Engatinhei o mais rápido com consegui. Quando cheguei ao portão, vi, para
minha infelicidade, que uma enorme corrente o lacrava. Estava fechado. Não
tinha como passar. Levantei-me; não tinha como pular o portão, era muito alto. Segurei-o.
Sacudi com toda a força que me restava, o que não era muita. Minhas mãos,
enfraquecidas, escorregavam. Olhei pra rua em frente. Carros passavam em alta
velocidade. Uma marchinha de carnaval tocava em algum lugar. Na calçada em
frente um grupo de pessoas passou e começou a rir de mim... Minha vista foi
embaçando mais e mais. As luzes dos postes foram se apagando, uma a uma. Senti
um vento frio na nuca e um sussurro no ouvido. Então foi como se um anzol
tivesse puxado meu umbigo pela parte de dentro em direção ao chão. E eu
apaguei.
Por quanto tempo fiquei assim, não sei. Mas quando
recuperei a consciência, já na quarta-feira de cinzas, percebi que estava numa
cama de hospital, um gosto azedo na boca, um soro alimentando minhas veias.
Antes de abrir os olhos, porém, ouvi as vozes de Gustavo e Carlos, meus amigos,
e de uma pessoa desconhecida, provavelmente um médico. Eles conversavam, mas só
pude entreouvir poucas coisas. Como, por exemplo, que eu havia ficado doido pra
experimentar cocaína. Como depois de ter cheirado algumas vezes comecei a ficar
muito agitado e a dizer que tinha alguém me perseguindo. Como, para fugir do
perseguidor imaginário, me meti no meio do pessoal e me perdi deles... Depois não
ouvi mais nada porque apaguei.
Minutos
depois voltei à consciência e abri levemente os olhos. A enfermaria estava lotada,
mas só Gustavo e Carlos permaneciam próximo à minha cama. Fiquei quieto,
ouvindo o que falavam. No íntimo, tentava encontrar uma explicação para dar a
eles.
– Esse
cara é doido... – Gustavo disse balançando a cabeça.
–
Doido? Ele teve foi sorte – Carlos me olhou. Fechei os olhos. – Foi misturar
cerveja, cachaça com aquela porra que tu comprou! Mais um pouco e ele tinha uma
overdose, o médico disse...
–
Verdade...
Fiquei
à espreita. Eles se calaram por um tempo. Até que Gustavo voltou a falar:
– Sabe
o que o Guarda disse?
– O
quê?
– Que
ele tava só de short, sem carteira, sapatos, sem nada! Só conseguiu nos
encontrar porque ele tava com o cartão do hotel no bolso de trás. Então eles
ligaram pra lá e de lá eles me ligaram...
– Cara,
eu já tinha até ido na polícia... Já tava indo num hospital quanto tu me
ligou...
– Nem
me fala. Mas ó, vamos entrar num acordo. A gente não vai falar nada disso pra
ele, pode ser que ele morra de vergonha, sei lá...
– Não,
claro. A gente fala que ele só apagou e a gente trouxe ele pra tomar um soro, alguma
coisa assim.
– Isso...
Novamente
silêncio. Gustavo estalou os dedos, um a um, depois continuou:
– E sabe
o que foi mais sinistro?
– O
que?
– O
lugar onde acharam ele...
Senti
um arrepio na nuca. Os flashes vieram, todos de uma vez. Teria sido real, ou só
as projeções de uma mente perturbada? Pensei em abrir os olhos e revelar minha
presença. Não queria mais ouvir nada. De certa forma ainda tinha esperança de
que aquilo tudo não passasse imaginação... Mas fiquei quieto. Voltei a
semicerrar os olhos.
– Onde?
– Carlos quis saber.
Gustavo
olhou em minha direção e sussurrou:
–
Dentro de um cemitério antigo, já desativado. O nome é parecido com saudade –
– Soledade?
– isso!
– Gustavo disse e olhou novamente em minha direção. Senti um formigamento nos
pés. – Ele tava agarrado na grade do portão...