CINZAS {ELIAS ABNER}


Não recordo muito bem os detalhes, de como tudo começou. Mas era noite. E era festa. Carnaval, melhor dizendo. A cidade, Belém. Era a primeira vez, aliás, nessa que diziam ser a Cidade das Mangueiras...
Até aí me lembro. Depois, o que vem na lembrança são flashes. Num deles, eu e mais dois amigos estamos num bloco de rua... Depois tudo fica nebuloso, indefinido, os flashes que surgem não me dizem nada de concreto.
Vou me infiltrando no meio da multidão. Procuro meus amigos. Não conheço ninguém, não sei onde estou. Como se localizar numa cidade desconhecida, no meio do carnaval, cheia de gente desconhecida e ainda por cima porre? Para muitos, essa seria uma ótima situação para se enturmar, caçar uma paquera e tal. Pra mim, vendo tudo e todos como um borrão, começou a parecer um pesadelo. O desespero foi tomando conta. Corri. Corri pelo meio da multidão enlouquecida. Procurei rostos, nenhum conhecido. Atravessei ruas, avenidas, por pouco, algumas vezes, não fui atropelado. Vejo-me caminhando por uma rua escura. Uma sensação estranha de que alguma coisa, ou alguém, me perseguia. Olhei para trás. Um casal passava, abraçados. Segui em frente. Antes de dobrar numa esquina olhei novamente para trás. O rapaz segurava a garota contra o muro e rasgava com os dentes a garganta dela. O sangue vertia, escarlate, vivo. O homem sugava cada gota, engolia cada pedaço de carne que se soltava. Fiquei paralisado, ou, melhor, tentei ficar. A cabeça tonteava, o corpo tonteava. Quase não conseguia ficar de pé. Na escura, solitária, nenhum barulho sequer, só os gemidos baixos da moça. Então ela foi se calando, até que as mãos pararam de tremer e ela se calou de vez. O homem a largou no chão e olhou em minha direção. Corri. Corri o mais rápido que pude. Tropecei por calçadas, por cima de árvores que surgiam do nada no meio do caminho...
A lembrança desaparece. Outro flash.
Estava numa avenida movimentada. Luzes multicoloridas ofuscavam minha visão. Coloquei uma mão sobre a testa para fazer sombra e segui, tateando pelos muros. Fui parar numa parte da cidade que parecia ter parado no tempo. Casarões ladeavam ruas estreitas que a cada passo pareciam se estreitar mais ainda. Entrei numa dessas ruas. Percorri alguns metros e tudo foi se estreitando, se estreitando... Quando dei por mim, as paredes das casas de ambos os lados da rua haviam se juntado no alto, formando um túnel escuro. Aquela mesma sensação de estar sendo observado... Junto com ela, sussurros pareciam confirmar o que eu temia: não estava sozinho. Seria o homem? Olhei para trás. Nada. Mas nas sombras, algo parecia se mover. O coração acelerou. As pernas começaram a se trançar enquanto eu tentava andar mais apressadamente. Corri. Tentei pedir ajuda; mas as janelas que ainda estavam abertas eram rapidamente fechadas enquanto eu me aproximava. Rostos indefinidos espiavam por trás das cortinas esfarrapadas. Mais à frente o som de gonzos me diziam que uma porta estava sendo aberta. Um filete de esperança surgiu. Corri. Gritei por socorro enquanto me aproximava cada vez mais da porta. Na luz que ela lançava sobre o estreito túnel, uma sombra alongada dizia que alguém esperava parado no batente. De alguma forma me senti aliviado. Até diminui os passos. Enquanto me aproximava da porta, ia olhando pra trás, e, na vista turva, nada de mais parecia me seguir. Uma sensação de conforto, meio de alívio, começou a tomar conta de mim. Olhei para frente. A figura continuava na porta. Meus olhos queriam se fechar, forcei-os para que continuassem abertos. Não dava. Semicerrei-os, e assim continuei. A figura parada era muitíssimo menor que a sombra projetada. Parecia uma criança. A cabeça baixa, metida nas mãos, parecia chorar, o corpo tremia como se soluçasse. Os sussurros voltaram. A mesma sensação de estar sendo observado, perseguido, voltou. Olhei pra trás, pra frente, até pro alto. Nada. Quando percebi, estava parado diante da porta. A luz vinha de uma única lâmpada amarelada de uma luminária sobre uma escrivaninha cheia de livros aparentemente antigos, com as folhas soltas caindo por toda a parte. Baixei os olhos. A figura, que não soube identificar se era um menino ou menina, continuava ali; mas havia parado de soluçar, porém mantinha a cabeça nas mãos. Toquei seu ombro, ia perguntar alguma coisa que não recordo, quando ela levanta a cabeça. Minha mão formigou, e o formigamento percorreu todo o meu corpo em questão de segundos, parando na nuca. Duas órbitas vazias me encaravam. A boca, aberta num ângulo impossível, anunciava um grito que não cheguei a ouvir, pois saí em disparada sem olhar pra trás de uma forma que nem sei como, dado o estado de terror que me encontrava. Mas acho que foi isso mesmo. Terror. A adrenalina do momento. Mas por mais que eu corresse, por mais que atravessasse ruas, avenidas, passasse por lugares movimentados, cheios de gente, aquela sensação de estar sendo observado, perseguido, me perseguia...
Estaria ficando louco? É essa a sensação que se tem quando se está enlouquecendo? Não lembro se chorei, se gritei, ou se, de fato, cheguei a pedir ajuda pra alguém. Essa é uma das partes da lembrança em que tudo parece ficar nebuloso, e tu não sabes se o que tu lembras de fato aconteceu, ou se é apenas o teu subconsciente misturando as coisas, o real com o apenas imaginado. O que me recordo é de ver as pessoas rindo em minha direção. De ver os sorrisos se escancararem até se tornarem grotescos, as bocas se abrindo em ângulos inumanos, as mãos se contorcendo em minha direção. Então corri. Corri como correria um desesperado. Se me disserem que atravessei a cidade correndo, acredito; se disserem que corri por horas, também acredito. Não sei – realmente não sei – a real dimensão das horas, da distância. Só sei que quando parei, estava diante de um muro gradeado. Mais à frente, o portão estava aberto. Abaixei-me rente ao meio muro sobre o qual a grade começava. Engatinhando, fui em direção ao portão, com os ouvidos atentos ao menor sinal de sussurros. Nada, tudo silêncio. Nenhuma viva alma. Já no portão, conferi o que havia para além dele. Na minha visão, não parecia ser nada muito excepcional, era como se fossem pequenas casas, dispostas de forma irregulares, separadas aqui e acolá por estátuas estranhas, meio góticas. Ouvi risadas, conversas, choros de criança. Animei-me. Aquilo parecia ser muito agradável. Entrei. Caminhei por corredores estreitos, alguns escuros, outros vagamente iluminados. A sensação estranha havia passado. Tudo finalmente parecia estar voltando aos eixos. Não, eu não estava ficando louco. Cheguei a sorri ao constatar isso. O que havia sido aquilo, a final? Certamente efeito da bebida, da cidade; minha vó dizia que algumas cidades antigas têm disso, como se para entrar nelas fosse preciso pedir permissão. Seria isso? Não, não. Esse tipo de coisa é apenas crendice, bobagens...
De toda forma, eu havia chegado a um lugar desconhecido, havia me perdido dos meus amigos. Precisava voltar. Mas como? O celular havia ficado no hotel. O único jeito era pedir informação pra alguém. Mais à diante um grupo de pessoas, envoltos em capas brancas, conversava numa roda, cabisbaixos, como se segredassem algo. Aproximei-me pra pedir informação. À minha aproximação todos se calaram, só sussurros se ouviam. Uma coruja piou. Cheguei mais perto. Ao dizer “boa noite” todos se viraram, de uma só vez. Órbitas vazias me encaram. Bocas foram se alongando em aberturas sinistras enquanto mãos esqueléticas avançavam em minha direção. A primeira coisa que tentei fazer foi gritar, mas o grito não saiu. As pernas não respondiam ao comando de correr, raízes pareciam prender meus pés. Caí no chão. As mãos se contorcendo em minha direção. A vista cada vez mais turva. Fui me arrastado em direção à saída como em câmera lenta, o corpo pesando uma tonelada. De cada lugar que parecia uma casa pequena outras mãos surgiam, sussurros, gritos sufocados, como se abafados por alguma coisa. Engatinhei rumo ao portão. Não estava longe, não poderia estar longe! Avistei-o. Deveria estar a uns vinte metros apenas. Dava pra chegar lá! TINHA que chegar lá. Engatinhei o mais rápido com consegui. Quando cheguei ao portão, vi, para minha infelicidade, que uma enorme corrente o lacrava. Estava fechado. Não tinha como passar. Levantei-me; não tinha como pular o portão, era muito alto. Segurei-o. Sacudi com toda a força que me restava, o que não era muita. Minhas mãos, enfraquecidas, escorregavam. Olhei pra rua em frente. Carros passavam em alta velocidade. Uma marchinha de carnaval tocava em algum lugar. Na calçada em frente um grupo de pessoas passou e começou a rir de mim... Minha vista foi embaçando mais e mais. As luzes dos postes foram se apagando, uma a uma. Senti um vento frio na nuca e um sussurro no ouvido. Então foi como se um anzol tivesse puxado meu umbigo pela parte de dentro em direção ao chão. E eu apaguei.
                Por quanto tempo fiquei assim, não sei. Mas quando recuperei a consciência, já na quarta-feira de cinzas, percebi que estava numa cama de hospital, um gosto azedo na boca, um soro alimentando minhas veias. Antes de abrir os olhos, porém, ouvi as vozes de Gustavo e Carlos, meus amigos, e de uma pessoa desconhecida, provavelmente um médico. Eles conversavam, mas só pude entreouvir poucas coisas. Como, por exemplo, que eu havia ficado doido pra experimentar cocaína. Como depois de ter cheirado algumas vezes comecei a ficar muito agitado e a dizer que tinha alguém me perseguindo. Como, para fugir do perseguidor imaginário, me meti no meio do pessoal e me perdi deles... Depois não ouvi mais nada porque apaguei.
Minutos depois voltei à consciência e abri levemente os olhos. A enfermaria estava lotada, mas só Gustavo e Carlos permaneciam próximo à minha cama. Fiquei quieto, ouvindo o que falavam. No íntimo, tentava encontrar uma explicação para dar a eles.
– Esse cara é doido... – Gustavo disse balançando a cabeça.
– Doido? Ele teve foi sorte – Carlos me olhou. Fechei os olhos. – Foi misturar cerveja, cachaça com aquela porra que tu comprou! Mais um pouco e ele tinha uma overdose, o médico disse...
– Verdade...
Fiquei à espreita. Eles se calaram por um tempo. Até que Gustavo voltou a falar:
– Sabe o que o Guarda disse?
– O quê?
– Que ele tava só de short, sem carteira, sapatos, sem nada! Só conseguiu nos encontrar porque ele tava com o cartão do hotel no bolso de trás. Então eles ligaram pra lá e de lá eles me ligaram...
– Cara, eu já tinha até ido na polícia... Já tava indo num hospital quanto tu me ligou...
– Nem me fala. Mas ó, vamos entrar num acordo. A gente não vai falar nada disso pra ele, pode ser que ele morra de vergonha, sei lá...
– Não, claro. A gente fala que ele só apagou e a gente trouxe ele pra tomar um soro, alguma coisa assim.
– Isso...
Novamente silêncio. Gustavo estalou os dedos, um a um, depois continuou:
– E sabe o que foi mais sinistro?
– O que?
– O lugar onde acharam ele...
Senti um arrepio na nuca. Os flashes vieram, todos de uma vez. Teria sido real, ou só as projeções de uma mente perturbada? Pensei em abrir os olhos e revelar minha presença. Não queria mais ouvir nada. De certa forma ainda tinha esperança de que aquilo tudo não passasse imaginação... Mas fiquei quieto. Voltei a semicerrar os olhos.
– Onde? – Carlos quis saber.
Gustavo olhou em minha direção e sussurrou:
– Dentro de um cemitério antigo, já desativado. O nome é parecido com saudade –
– Soledade?
– isso! – Gustavo disse e olhou novamente em minha direção. Senti um formigamento nos pés. – Ele tava agarrado na grade do portão...