4 FOLHAS SOLTAS {RAPHAEL SOARES}

Gravura de Gustave Doré


Sua captura foi pacífica. Já éramos aguardados. Em sua casa encontramos catorze carteiras de identidade, doze delas pertenciam a mulheres adultas, mas duas eram de meninas de onze e doze anos, respectivamente. Falta confirmar se todas as identidades batem com as vítimas identificadas, e se há vítimas que ainda não foram identificadas entre elas. Após vasculhar toda a casa encontramos apenas essas quatro folhas. Os cadernos originais foram destruídos ou estão escondidos. Não há razão para crer que essas folhas foram escolhidas por motivo especial: o caderno original delas provavelmente era pequeno, de 96 folhas, de cor preta e com a brochura costurada (como outros três cadernos encontrados em branco na residência). Podem ter caído devido as folhas do lado oposto terem sido arrancadas, pois as encontramos separadas e em lugares que não aparentam ter sido propositalmente escondidas. Enviamos na ordem que nos pareceu mais lógica, mas não sabemos se pertenciam ao mesmo caderno ou a cadernos diferentes. Como se pode ver, os versos estão em branco. Todas as evidências estão sendo encaminhadas junto com estas quatro folhas e o nosso relatório final.


 Fonte usada: Honey Script, by Dieter Steffmann

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ESTOU AQUI {GIROTTO BRITO}


Acordei na madrugada com um gosto adocicado na boca. Tateei no escuro à procura do interruptor, mas por algum motivo meu abajur não estava onde deveria estar. Levantei no escuro e fui caminhando com cuidado para não esbarrar nos móveis, arrastando os pés descalços no piso frio, mas não esbarrei em nada: estranhamente parecia só haver a cama no quarto. Uma dor no peito se misturava ao sono e a uma confusão mental de quem começava a se perguntar se aquele era realmente seu quarto. Sim, era o meu quarto! Descobri quando cheguei à parede oposta e meus dedos encontraram o interruptor no lugar onde sempre esteve. O alívio que senti, no entanto, foi seguido pelo desânimo ao perceber que não havia energia em casa.
Abri a porta e fui descendo a escada para pegar velas na cozinha. Ali, na escada, um pouco da luz lunar que entrava pela vidraça do hall clareava timidamente os degraus, o suficiente para não precisar me apoiar no corrimão enquanto descia.
Um desconforto começava a me incomodar, um aperto no peito sem razão aparente e o gosto estranho e doce na boca que não passava. Sempre guardava as velas no mesmo lugar, em cima da geladeira, do lado do liquidificador. Desci a escada e, conforme ia me aproximando da cozinha o feixe de luz ia enfraquecendo e a escuridão tomava novamente conta de todo o ambiente. Era uma noite quente, lembro bem, o suor escorria em minha face e estava ofegante, não sei se pelo calor ou pelo pavor que ia crescendo em mim a cada passo. Quando cheguei finalmente na cozinha, um susto. Meus pelos arrepiaram-se quando tentei alcançar a geladeira e minhas mãos flutuaram diante de mim sem nada tocar — ela não estava lá! Continuei andando pelo cômodo a tatear pelas paredes, mas não havia nada. Geladeira, fogão, mesa, armários, tudo havia desaparecido! A cozinha estava vazia!
Minha respiração ficou ainda mais ofegante e um sentimento aterrorizador me perturbava. Devia estar enlouquecendo, ou era apenas um pesadelo, tinha que ser um pesadelo. Voltei para a escada e comecei a subir com pressa. O banheiro devia estar iluminado pela janela, assim como hall, e lá tinha uma lanterna. Aos tropeços cheguei ao andar superior e entrei no banheiro. Aparentemente estava tudo normal e era possível enxergar relativamente bem lá dentro. Procurei a lanterna no armário lateral, mas estava vazio. Abri todas as gavetas e estavam completamente limpas. O suor ia encharcando minha camisa e a dor no meu peito aumentava a cada suspiro. Quando passei em frente ao espelho, mesmo no breu, notei algo diferente no meu rosto. Fui aproximando lentamente, ajustando a visão à penumbra do ambiente quando, ao reparar meu rosto, um frio cortante pareceu penetrar-me, como estaca nos ossos. Empalideci de horror ao ver o sangue escorrendo da minha boca.
Por algum instante inconsciente fiquei ali, parado, olhando a imagem sombria de minha face expulsando aquele líquido agridoce, rubro-negro e cálido que descia por meu corpo. Eu precisava de ajuda. Não me lembrava do que tinha acontecido no dia anterior, e naquele momento acreditava ter sido dopado, agredido e roubado. Era a única explicação para o sumiço dos móveis, para aquele sangue e a amnésia súbita. Eu precisava reagir, pedir socorro, gritar aos vizinhos, fazer alguma coisa, mas percebi então que não seria possível. Meus pés não se moviam, meus braços não reagiam e em meu rosto havia apenas uma expressão tenebrosa que eu não conseguia desfazer. Eu estava lá, de frente para minha imagem. Olhos vidrados. Eu estava lá, mas não mais era o dono de mim.
Aqui dentro, onde existo, no âmago do que sou, fui testemunha de tudo o que aconteceu. Vi com meus próprios olhos, embora não os pudesse controlar, meu braço direito se erguer contra minha vontade. Meu indicador tocou levemente o canto da minha boca, colhendo uma porção de sangue ainda não coagulado e em seguida começou a escrever no espelho com meu próprio sangue palavras que a penumbra não me permitiu decifrar. Não era eu, sei que não era. Escrevo com a esquerda.


Acordei assustado, a luz do sol incomodava meu rosto. Ainda com a visão embaçada comecei a olhar ao redor. Estava tudo lá. Abajur, guarda-roupas, escrivaninha. Levantei cambaleante e passei a mão no rosto à procura do sangue. Nada! Meu rosto estava limpo, não sentia mais o gosto do sangue em minha boca e nem a dor no meu peito. Corri, desci a escada e fui até a cozinha: tudo normal! Como sempre esteve. Senti um imenso alívio.
Subi a escada novamente e fui me arrumar para o trabalho. Estava impressionado com o quanto o pesadelo havia sido real e a lembrança do que havia sonhado ficava borbulhando em minha cabeça. Fora tudo tão absurdamente real, a dor, as sensações, a visão, que não compreendia como tinha sido apenas um sonho. “O imaginário nos prega peças”, pensei com um sorriso tímido e aliviado nos lábios. Dessa vez, no entanto, eu estava enganado. Até hoje não sei dizer o que foi real e o que foi imaginação, o que sei é que ao entrar no banheiro naquela manhã, encontrei meu espelho rabiscado com meu sangue. E o que não foi possível ler na escuridão da madrugada, estava perfeitamente legível ali aos meus olhos: “Estou aqui”.