Acordei na madrugada com um gosto adocicado na boca. Tateei
no escuro à procura do interruptor, mas por algum motivo meu abajur não estava
onde deveria estar. Levantei no escuro e fui caminhando com cuidado para não
esbarrar nos móveis, arrastando os pés descalços no piso frio, mas não esbarrei
em nada: estranhamente parecia só haver a cama no quarto. Uma dor no peito se
misturava ao sono e a uma confusão mental de quem começava a se perguntar se
aquele era realmente seu quarto. Sim, era o meu quarto! Descobri quando cheguei
à parede oposta e meus dedos encontraram o interruptor no lugar onde sempre
esteve. O alívio que senti, no entanto, foi seguido pelo desânimo ao perceber
que não havia energia em casa.
Abri a porta e fui descendo a escada para pegar velas na
cozinha. Ali, na escada, um pouco da luz lunar que entrava pela vidraça do hall
clareava timidamente os degraus, o suficiente para não precisar me apoiar no
corrimão enquanto descia.
Um desconforto começava a me incomodar, um aperto no peito
sem razão aparente e o gosto estranho e doce na boca que não passava. Sempre
guardava as velas no mesmo lugar, em cima da geladeira, do lado do
liquidificador. Desci a escada e, conforme ia me aproximando da cozinha o feixe
de luz ia enfraquecendo e a escuridão tomava novamente conta de todo o
ambiente. Era uma noite quente, lembro bem, o suor escorria em minha face e
estava ofegante, não sei se pelo calor ou pelo pavor que ia crescendo em mim a
cada passo. Quando cheguei finalmente na cozinha, um susto. Meus pelos
arrepiaram-se quando tentei alcançar a geladeira e minhas mãos flutuaram diante
de mim sem nada tocar — ela não estava lá! Continuei andando pelo cômodo a
tatear pelas paredes, mas não havia nada. Geladeira, fogão, mesa, armários,
tudo havia desaparecido! A cozinha estava vazia!
Minha respiração ficou ainda mais ofegante e um sentimento
aterrorizador me perturbava. Devia estar enlouquecendo, ou era apenas um
pesadelo, tinha que ser um pesadelo. Voltei para a escada e comecei a subir com
pressa. O banheiro devia estar iluminado pela janela, assim como hall, e lá
tinha uma lanterna. Aos tropeços cheguei ao andar superior e entrei no
banheiro. Aparentemente estava tudo normal e era possível enxergar
relativamente bem lá dentro. Procurei a lanterna no armário lateral, mas estava
vazio. Abri todas as gavetas e estavam completamente limpas. O suor ia
encharcando minha camisa e a dor no meu peito aumentava a cada suspiro. Quando
passei em frente ao espelho, mesmo no breu, notei algo diferente no meu rosto.
Fui aproximando lentamente, ajustando a visão à penumbra do ambiente quando, ao
reparar meu rosto, um frio cortante pareceu penetrar-me, como estaca nos ossos.
Empalideci de horror ao ver o sangue escorrendo da minha boca.
Por algum instante inconsciente fiquei ali, parado, olhando a
imagem sombria de minha face expulsando aquele líquido agridoce, rubro-negro e
cálido que descia por meu corpo. Eu precisava de ajuda. Não me lembrava do que
tinha acontecido no dia anterior, e naquele momento acreditava ter sido dopado,
agredido e roubado. Era a única explicação para o sumiço dos móveis, para
aquele sangue e a amnésia súbita. Eu precisava reagir, pedir socorro, gritar
aos vizinhos, fazer alguma coisa, mas percebi então que não seria possível.
Meus pés não se moviam, meus braços não reagiam e em meu rosto havia apenas uma
expressão tenebrosa que eu não conseguia desfazer. Eu estava lá, de frente para
minha imagem. Olhos vidrados. Eu estava lá, mas não mais era o dono de mim.
Aqui dentro, onde existo, no âmago do que sou, fui testemunha
de tudo o que aconteceu. Vi com meus próprios olhos, embora não os pudesse
controlar, meu braço direito se erguer contra minha vontade. Meu indicador
tocou levemente o canto da minha boca, colhendo uma porção de sangue ainda não
coagulado e em seguida começou a escrever no espelho com meu próprio sangue
palavras que a penumbra não me permitiu decifrar. Não era eu, sei que não era.
Escrevo com a esquerda.
♠ ♠
♠
Acordei assustado, a luz do sol incomodava meu rosto. Ainda
com a visão embaçada comecei a olhar ao redor. Estava tudo lá. Abajur,
guarda-roupas, escrivaninha. Levantei cambaleante e passei a mão no rosto à
procura do sangue. Nada! Meu rosto estava limpo, não sentia mais o gosto do
sangue em minha boca e nem a dor no meu peito. Corri, desci a escada e fui até
a cozinha: tudo normal! Como sempre esteve. Senti um imenso alívio.
Subi a escada novamente e fui me arrumar para o
trabalho. Estava impressionado com o quanto o pesadelo havia sido real e a
lembrança do que havia sonhado ficava borbulhando em minha cabeça. Fora tudo
tão absurdamente real, a dor, as sensações, a visão, que não compreendia como
tinha sido apenas um sonho. “O imaginário nos prega peças”, pensei com um
sorriso tímido e aliviado nos lábios. Dessa vez, no entanto, eu estava
enganado. Até hoje não sei dizer o que foi real e o que foi imaginação, o que
sei é que ao entrar no banheiro naquela manhã, encontrei meu espelho rabiscado
com meu sangue. E o que não foi possível ler na escuridão da madrugada, estava
perfeitamente legível ali aos meus olhos: “Estou
aqui”.
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