MULHER, VINHO E UMA VOLTA NO INFERNO {Por Felipe Cosmo}




A noite ia alta, a lua esmaecia no céu carregado. Estávamos sós no apartamento dela. Ela me olhava como se perscrutasse minha alma untada em desejo. Meu corpo todo tremia com a vontade mal contida de beijar-lhe os lábios rubros umedecidos pelo vinho rose que ela bebericava vagarosamente.
Respirei fundo enquanto contemplava aqueles olhos tão verdes como esmeraldas. Eu ruborizava ante a tentativa vã de não olhar tão fixamente para seu decote que denunciava um par de seios alvos deliciosos.
Por fim, cedi à timidez e voltei-me para olhar a cidade que se descortinava em frente à varanda. Minha taça agora quase vazia lutava para se manter em minha mão trêmula e banhada em suor.
— Qual o problema? — perguntou ela com sua voz tão suave como a harpa de Davi.
— Nada não. — respondi eu, mudando a taça de mão. — É que achei esta vista maravilhosa.
— Você prefere a vista a mim?
— De jeito nenhum.
Ela então me puxou de volta à sala e de lá fui arrastado até o quarto dela. Seu perfume era puro feromônio e me deixava ébrio de desejo.
O quarto era amplo e decorado com muitos espelhos. Mas a verdade é que não dei muita atenção aos detalhes. O vinho tinha deixado minha visão um pouco turva e eu sentia taquicardia devido à languidez de seus beijos e carícias.
Ela me jogou na cama de supetão, era uma cama tão macia como só a alcova das ninfas deve ser. Com apenas alguns movimentos de seus dedos ela desfez-se do vestido e então a beleza de seu corpo nu fez meus olhos ofuscarem. A pele tão branca e macia contrastava com seu púbis cheio e escuro.
Aquilo não podia estar acontecendo. Acho que era um sonho. Algumas horas atrás eu não era ninguém e ninguém me conhecia. E agora eu me via diante de Deus. Tirei minha roupa como pude e ela então veio pra cima de mim e selamos nossos corpos com os fluidos da libido. Transamos loucamente como dois depravados. Fogos de artifício jorravam de nossos corpos, estrelas inteiras nasciam e morriam em nosso sexo.
Até que eu mesmo morri. Juro por deus que morri. Cheguei a ver meu corpo estirado na cama, inerte e frio. Então vi um clarão tão forte que me cegou. Era ela novamente, sempre tão brilhante e cheia de luz. Ela disse:
— Agora vou levá-lo a uma jornada que você jamais sonhou nem nos seus maiores devaneios.
Ela deu meia volta e se afastou. Eu nem cheguei a pensar em nada quando meu corpo foi atraído em sua direção, como se houvesse um campo eletromagnético em volta daquela mulher. Eu nem mesmo sentia meus pés se moverem. Levitávamos os dois. Não existia gravidade nem matéria. Nossos corpos eram energia pura atravessando o éter.
Até que chegamos a um templo que tinha um pórtico imenso onde havia colunas dóricas iguais ao Partenon. Por fora tudo parecia muito amplo, mas por dentro havia apenas um corredor estreito por onde seguimos. Era escuro, mas eu conseguia entrever catacumbas com estranhos mosaicos e arabescos. Não havia sons de qualquer tipo. Foi a primeira vez que me dei conta do quanto é opressivo o silêncio absoluto.
Finalmente chegamos a um salão enorme e de repente tudo ficou iluminado como o dia, mesmo não havendo qualquer fonte de luz aparente. No meio do salão uma estranha figura dançava velozmente. Ela se contorcia e revirava num ritmo febril. Seu corpo era magro e tinha a pele bem escura e longos cabelos crespos. Possuía forma e curvas femininas. Os seios eram firmes e os quadris largos, porém, à medida que me aproximava, percebi que seu rosto e seu sexo eram masculinos. Era uma espécie de divindade mitológica africana. O silêncio opressivo de outrora dera lugar a sons sincopados de tambor, como uma música tribal.
Quando a divindade africana nos viu, eu percebi que seus olhos eram vermelhos como fogo. Ela parou imediatamente de dançar e veio em nossa direção, quando ela falou os tambores silenciaram. Tinha uma voz gutural e falou nos seguintes termos:
— O que faz aqui e por que trouxeste um ser impuro à minha morada?
— Não é mais sua morada — respondeu minha companheira. E sacando um pequeno punhal de aço reluzente, atravessou o peito da hermafrodita. Não pude ver o que se passou depois, visto que no instante seguinte estávamos no corredor por onde entráramos minutos antes.
Subimos uma escada com estreitos degraus. Não sei quanto tempo se passou, mas subimos muito, era uma escada imensa. No entanto, por algum motivo não fiquei cansado, nem mesmo ofegante. Então chegamos a uma masmorra escura e sombria onde existia apenas uma cela, suas grades eram de ouro maciço e lá dentro havia um imenso macaco acorrentado pelos tornozelos com correntes de ferro. Quando nos viu, o macaco ficou agitado e se mexia de um lado para o outro até onde as correntes permitiam.
Minha companheira abriu a cela com uma chave também feita de ouro (esses objetos pareciam simplesmente se materializar em suas mãos). Com a mesma chave ela libertou o macaco das correntes que o oprimiam. Ele pulou em seus braços e ela o tirou da cela carregando-o em seu colo como um bebê. Antes de sairmos da masmorra eu a peguei pelo braço e finalmente perguntei:
— Por que estamos fazendo tudo isso? Onde estamos? E o que significam todas essas coisa?
Ela olhou-me com aqueles olhos de esmeralda e respondeu com uma voz tão maviosa quanto os sons de um saltério:
— Entendo que sua mente esteja turva como a noite. Suas perguntas serão respondidas no seu devido tempo, mas agora precisamos sair daqui.
Descemos a escada e saímos do templo. De repente nos vimos levitando acima de um mar revolto com tempestades e trovões ameaçadores no céu noturno. Nada se via no horizonte, apenas água e nuvens carregadas.
Então um túnel de luz surgiu à nossa frente e seguimos por ele. Num piscar de olhos a paisagem mudou. Não sei dizer onde estávamos, mas parecia ser um deserto em chamas. Labaredas lambiam nossos pés, mas não sentíamos dor. Uma fumaça negra no céu tornava tudo escuro e cobria os raios de sol. Podíamos apenas vislumbrar a claridade por trás do breu.
À nossa volta, pessoas destroçadas gemiam num lamento de dor lancinante. Tudo ao redor era tormento. Percebi que estávamos acima de uma pilha de corpos carbonizados. Em alguns lugares era possível ver membros dilacerados e corpos putrefatos banhados em sangue. Eu sentia um forte odor de carniça. No céu coberto de fumaça voavam animais imensos e mitológicos que sibilavam ininterruptamente.
Subitamente, cortando o céu em chamas e montados em cavalos alados, surgiram seres luminosos que pareciam arcanjos. Eram sete ao todo e todos eles empunhavam lanças de luz dourada. Um deles se aproximou de minha companheira e atravessou-lhe o corpo com sua lança. O macaco que momentos antes havia se desvencilhado de seus braços transformou-se num dragão de vinte pés de altura, em sua cabeça um diadema reluzia e saía fogo de suas narinas e boca. Os arcanjos sobrevoavam ao redor dele e tentavam espetá-lo com suas lanças.

Depois disso não vi mais nada. Um torpor apoderou-se de minha mente e minha visão ficou embaçada até que apaguei. Acordei com a luz do sol socando meu rosto. Tentei levantar, mas minha cabeça doía. Minhas roupas estavam puídas e eu segurava uma garrafa de Duelo na mão. Atrás de mim ouvi risadas histéricas de mulheres. Virei-me para olhar e vi três rameiras que gargalhavam à entrada do cabaré.




                                                           ***


Felipe Cosmo Graduando do curso de Cinema e Audiovisual. Nasceu em Belém do Pará, em 1988. Viciado em Literatura e Cinema. Escreveu e dirigiu três curtas-metragens, entre eles “Trágico Inverossímil” e “Garota da Beira do Rio”, além de escrever poesia e contos

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PASSEIO NOTURNO





É com muito receio com que venho tomar de um lápis e algumas folhas de papel em branco para tentar descrever uma grande tragédia que aconteceu comigo há muito tempo... Não sei se terei condições físicas e emocionais para isso. Meus dedos já não seguram com firmeza o lápis e a idade avançada faz com que minhas mãos tremam constantemente, ainda mais quando volto a pensar nesse assunto. Digo pensar, por que nunca falei dele pra ninguém, sempre tive medo. Agora mesmo não sei se estou agindo certo ao fazer isso. Toda vez que penso no que aconteceu passo noites em claro assustado com pesadelos, ainda hoje depois de tanto tempo. Sempre tenho a estranha sensação de estar sendo vigiado, e de vez em quando pareço ver aqueles mesmo olhos a me observarem da escuridão imensa da noite na hora de dormir. Talvez seja só uma impressão infantil, ou uma peça pregada pelo inconsciente. O certo é que não sou louco, a insanidade certamente ainda não bateu à minha porta, não sei até quando...
Lembro-me perfeitamente daquela noite. Era uma noite escura e sem estrelas, aquela. Uma enorme lua cheia ofuscava-se por traz de densas nuvens negras, e estava tão frio que uma fina camada de neblina subia do rio, indo espalhar-se rente ao cais.
Poucas pessoas haviam se aventurado a sair de casa naquela noite de quinta-feira. Eu, talvez por intervenção do destino ou por mera falta de sorte, fui um desses infelizes aventureiros. Não que fosse dado a passeios noturnos, pouco saia desacompanhado de casa. Limitava-me a ler romances policiais durante as noites frias, como aquela, e em retratar naturezas mortas em telas, muitas das quais ainda hoje decoram as paredes de minha sala de estar, sem falar nas tantas que atravessaram o oceano e foram parar nas mãos de amantes da boa e genuína obra de arte. Às vezes, durante o verão, quando um belo sol despertava o dia, convidava uns amigos e íamos pescar num rio de águas tranquilas, próximo à entrada de nossa pequena cidade. Raríssimas vezes fazíamos isso nos dias de inverno. Eram sempre dias monótonos e tristes; as coisas viviam encharcadas e a prevenção contra um resfriado impedia-me de fazer certas coisas fora de casa num dia ruim, e até hoje não consigo entender por qual motivo deixei esposa e filhos em casa e saí, sozinho, naquela noite, a vagar sem rumo pelas ruas da cidade.
Quando percebi já havia chegado na praça, do outro lado da cidade, em frente a uma igreja centenária manchada por infiltrações na fachada. Não sei como, mas sentia como se algo estivesse prestes a acontecer.
Andei até o trapiche e pedi uma cerveja. Encostei-me à amurada do cais, de costas para o rio e de frente para a praça, os braços cruzados, a cerveja na mão. Fiquei ali, esperando sem saber exatamente o que por mais de uma hora. Já passava das onze horas e a praça esvaziava-se muito rápido de seus poucos visitantes. Um menino corria atrás de um gato branco listrado de cinza e com uma mancha preta ao redor do olho esquerdo. O gato parou e ficou me olhando por um longo tempo, fitando-me com os olhos semicerrados, depois foi embora. Três homens bebericavam cerveja num barzinho próximo enquanto conversavam animadamente, e um casal de namorados se abraçava num banco à minha frente sob a luz amarelada de um poste. Fiquei a observar o casal por trás das grossas lentes dos meus óculos. A moça, uma morena de cabelos longos e encaracolados, olhos negros sob finas sobrancelhas perfeitamente modeladas ao seu singular e delicado rosto, os lábios levemente avermelhados. O rapaz tinha uma boa aparência, modos distintos e vestia-se da forma mais elegante já vista, demonstrava ser uma pessoa a quem dinheiro não faltava. Olhou-me com um ar de desconfiança quando a moça fez um sinal com a cabeça de que eu estava observando-os. Percebi e mudei a direção do olhar. Coloquei as mãos nos bolsos laterais da minha calça e saí caminhando vagarosamente do meu posto. Já havia bebido seis cervejas. No meio do caminho olhei novamente para trás, mas o banco estava vazio e não havia nem sinal do casal.
Contornei o lado esquerdo da praça e parei sob uma árvore, sentando em um banco de concreto. O vento frio que vinha do rio congelava-me as entranhas, e não seria surpresa se em pouco tempo desabasse um tremendo aguaceiro daquele negro céu.
            Esse foi, sem sombra de dúvida, o único pressagio, dentro os tantos que me vieram inconciliáveis à mente, que induziu-me a repensar aquele passeio nada proveitoso, levantar daquele banco e tomar o caminho de volta para casa. Levantei-me, mais ainda assim hesitante se deveria ou não prosseguir. Queria outra cerveja... Comprei e tomei o caminho de casa.
            O ponteiro do meu relógio de pulso marcava quinze para a meia noite. O horário e o clima melancólico da cidade já quase de toda adormecida e mal iluminada enchiam-me de receio, e me fizeram apressar ainda mais os passos. Não que eu tivesse medo, medo mesmo talvez não fosse. Neste mundo pouquíssimas coisas faziam-me experimentar esse sentimento tão infantil, e o sobrenatural e aterrorizante que, como ouvia falar, chegava com a noite, não era uma delas. Na verdade nunca fui demasiado crente em fenômenos sobrenaturais do tipo que existiam para aterrorizar as pessoas. Quando criança, meu avô sempre contava as mais horripilantes histórias de visagens, feiticeiras e lobisomens; eu ouvia tudo, muito atento, e quando ia dormir ficava imaginando todas aquelas figuras espreitando da escuridão noturna para dentro do único lugar da nossa casa que adormecia com as luzes acesas, o meu quarto. Às vezes não conseguia pregar o olho. Cada som no exterior, mínimo que fosse, fazia meu coração disparar e o meu rosto suar desesperadamente. O tempo passou, e o que eu ouvia assustado passei a ouvir sério; não mais acreditava nessas bobagens, mas procurava julgá-las, sempre apontado as “falhas” das histórias, mentiras descaradas, absurdas mesmo. Não sei porquê, mas naquele instante em que voltava para casa comecei a relembrar de muitas dessas histórias: fantasmas, feiticeiras, lobisomens, sempre associados com as madrugadas e cemitérios sombrios; e como que para completar a minha total infelicidade e responder aos meus pensamentos, via surgir, na esquina seguinte, o cemitério da cidade.           
Fitei-o atônito. Nem havia notado a rua em que estava andando, pareceu-me que havia sido levado por ali por alguma coisa incomum e não pelo mero acaso, e a simples ideia de passar pela frente dele àquela hora veio-me como um choque, refreando-me por instantes.
Queria voltar (e até hoje me pergunto por que não voltei) e contornar pela outra rua, no entanto o orgulho de ser tido como uma pessoa de coragem convenceu-me a seguir em frente, mesmo a contragosto. Então engoli em seco e segui.
O portão de ferro com as grades corroídas estava parcialmente aberto, e na medida em que o vento forçava-o, as dobradiças rangiam num som estridente e irritante, terminando numa forte batida contra o muro, e isso continuamente, pois ventava bastante e parecia que já ia chover.
Por sobre o muro irregular apareciam o topo de cruzes enegrecidas e de lápides com estatuetas de anjos com as asas e as mãos voltadas para cima, como em posição de subida. Estiquei o pescoço para olhar por cima do muro, e naquele lugar sinistro e sombrio nada se movia, nem som algum se ouvia, tudo estava mergulhado num silencio perturbador que só foi interrompido pelo voou de uma coruja para uma árvore no outro lado da rua com um rato no bico.
O caminho central que começava a partir do portão era estreito e muito comprido, meus olhos seguiram por ele, indo parar numa pequena capela caiada de branco e coberta por ervas. Tinha ouvido histórias sinistras daquele lugar, inclusive a de que, trancada nas profundezas daquele lugar, ficava o caixão de um homem que havia sido muito mal em vida e que a terra se recusava a decompor suas entranhas. O homem secara, e segundo contava o meu avô, algumas pessoas juravam que o corpo mudava de posição...
Sempre achei essa história ridícula. Mas quando me virei de volta à rua ouvi um estalo vindo de lá, parecido como de uma fechadura. Voltei-me novamente para a capela, com o coração já um pouco disparado; mas por ali tudo continuava inerte como antes.
Continuei a andar pisando bem devagar, com os ouvidos atentos a qualquer estalo parecido, porém como resposta só ouvia o cricrilar dos grilos nas moitas de capim ao redor da rua e o coaxar distantes de sapos. Um pouco mais à frente findava a quadra do cemitério; respirei fundo, aliviado, como se tivesse acabado de sair ileso de uma difícil prova que me fora severamente imposta.  Mais à diante olhei para o cemitério pela última vez, já sem qualquer receio aparente, acreditando ter provado que todas as histórias que me contavam quando menino não passavam de meras invenções fantasiosas e sem qualquer fundamento real. No entanto, vi-me às voltas com todas essas questões naquele momento. Aquela noite poderia ser escura como fosse, mas tive a forte impressão de ter visto uma sombra em pé, parada junto ao portão e olhando fixamente para mim. Assim que semicerrei os olhos para tentar ver melhor, a sombra já não estava mais lá.
Fiquei profundamente confuso e as garras frias do medo pareciam querer se apoderar das minhas pernas, mas novamente fiquei pensando e tentando me persuadir de que aquilo nada mais fora do que fruto de minha sutil imaginação. Avancei o caminho a passos largos, com os olhos fixados no chão de piçarra à minha frente, até chegar à avenida principal. Esta estaria igualmente deserta como as demais, se não fosse por um bombonzeiro que cruzou comigo voltando do trabalho e sumiu por uma rua estreita.
A avenida estava bem iluminada. Voltei a andar devagar pela calçada, tentando aproveitar cada pedaço iluminado, na esperança de esquecer a atmosfera lúgubre de que acabara de sair e a visão que, mesmo não tendo certeza de sua veracidade, tivera minutos antes. Começou a chover, uma chuva fina e constante. Converti à direita na primeira esquina que surgiu, agora acelerando os passo para não chegar em casa encharcado e o vento frio da chuva – eu acho – fez-me arrepiar dos pés à cabeça e o coração aumentar os batimentos. Cruzei os braços tentando esquentar as mãos sob as axilas e olhando ligeiramente de um lado para outro da rua.
As coisas pareciam estar mudando comigo de forma muito estranha, e pela primeira vez desde há muito, como vim a lembrar, comecei a sentir medo da imensidão da noite e dos seus habitantes. Não entendia como um simples vento frio, tão comum quando começava a chover, havia-me feito experimentar outra sensação, uma sensação de mais puro medo, de terror mesmo.
Imaginei ser algum tipo de sinal, e estava certo, como depois fui descobrir. O que veio depois dele, porém, mudaria para sempre a minha vida e me faria tratá-la como algo quase insignificante.
Então aconteceu.
Escutei da primeira vez, mas não dei atenção, pensando ser apenas o meu inconsciente tentando me amedrontar. Da segunda vez, porém, ouvi nitidamente o som, assim mesmo quis fazer-me de surdo e convencer-me de nada ter ouvido, apenas apressei ainda mais os passos já vacilantes. Porém... da terceira vez, aquele uivo que começou agudo e foi morrendo num rosnar agonizante talhou-me a alma por inteiro, e eu, mesmo contra a vontade, parei de andar virei-me, vagarosamente, para ver de onde vinha aquele som aterrorizante.
Como já disse antes, volto a repetir: nunca acreditei em fenômenos sobrenaturais, mas a coisa para a qual acabara de olhar deixou-me com os olhos arregalados e a boca tremendo sem conseguir gesticular palavra, e fez-me em segundos rever todos os meus conceitos acerca de tão incrédulo assunto. Eu estava a uma quadra de distância do cemitério, e desse ponto podia ver o muro irregular dos fundos dele, descendo verticalmente seguindo a inclinação da rua. A estranha figura estava lá, próxima a encruzilhada junto ao cemitério.
O ar condensado formava uma fina e quase invisível camada de névoa ao seu redor, e em contraste com ela surgia, assim como pude no momento distinguir, a figura sinistra de um grande cão preto, com as enormes e compridas orelhas parecendo dois chifres pontiagudos apontando para cima. Chamar de assustador uma figura que me fez dar um salto para trás e me imobilizar de medo já é o suficiente para que se tenha uma noção de como ficara o meu estado de espírito naquele momento. Porém não fora apenas o sinistro cachorro que horrorizou-me a alma, mas sim a forma como ele vinha andando: sobre as duas patas traseiras, em pé, como um homem enorme. Deveria ter, no mínimo, uns dois metros e meio de altura devido a largura de seus passos. Para meu terror, a figura parou de andar e, olhando-me fixamente, começou a rosnar, depois inclinou a boca para cima e saltou mais um daqueles terríveis uivos, voltando-se em seguida para mim.
Senti as pernas se aquecerem rapidamente, quando percebi havia mijado nas calças. Virei-me e me pus a correr o mais rápido que consegui. Enquanto isso a chuva começava a aumentar rapidamente.
Quando já estava um pouco afastado, dei uma rápida olhada para trás. Para minha desgraça a criatura vinha correndo furiosamente, com as quatro patas no chão, em minha direção. O terror instalado em mim aumentou sobremaneira, muito além do que eu pensava suportar. Meu corpo já não atendendo os comandos da minha mente febril começou a ficar cada vez mais pesado e a minha respiração tornou-se quase impossível. Na loucura do momento pensei em gritar e tentar pedir socorro, e talvez se o tivesse feito teria acordado toda a vizinhança com o meu desespero, no entanto meus lábios adormeceram de forma tão assustadora que comecei a pensar que estava caminhando de encontro com a morte, e aquela criatura, que parecia ser a própria morte em pessoa, seria a sua condutora. Naquele instante compreendi que um fim desastroso me aguardava e eu não tinha como evitar. Morreria de qualquer forma. Com esse pensamento olhei para frente. A rua parecia ficar cada vez mais distante, como se eu estivesse sendo puxado lentamente para trás. Até que as luzes foram se apagando, uma a uma, até o final da rua, e uma escuridão sufocante tomou conta da minha vista. Minhas pernas enfraqueceram e eu caí, semimorto, no chão enlameado.
Fiquei prostrado ali, imóvel, com o coração já não batendo tão forte e sentindo um frio mortífero percorrer cada músculo do meu corpo inerte. Não conseguia falar nem ver nada, mas conseguia ouvir bem tudo o que acontecia ao meu redor. Imaginei que estava na minha cama, dormindo, e tendo um horrível pesadelo. Ouvia os grilos ali próximos, deveriam estar em baixo da janela do meu quarto; mas não conseguia compreender que estava dormindo, não conseguia mover um dedo sequer. Foi quando ouvi uma pisada forte e constante, e percebi que a criatura dos meus pesadelos não havia me abandonado no mundo do inconsciente e agora aproximava-se lentamente de mim. E eu ali, sem poder pedir ajuda, sem poder me defender...
Ouvia a água estalar enquanto a criatura andava e percebi quando parou, bem próximo de onde eu estava. Senti o ar quente e um forte cheiro de ovo podre que saia de suas narinas enquanto farejava-me dos pés à cabeça. Não chegou a tocar-me, mas pelo forte som que fazia ao respirar pesadamente imagino que ficara a poucos centímetros de mim.
Depois disso desfaleci e não faço a mínima ideia do que pode ter acontecido depois. Quando voltei a mim, estava caído ao lado de uma poça d’água, a chuva já havia parado. Levantei-me vagarosamente olhando de um lado para outro, mas sem encontrar nada de comprometedor. Estava confuso e quase não acreditava no que tinha acontecido.
           A cidade continuava deserta e silenciosa como antes, e parecia que realmente nada de estranho havia acontecido. A lua estava alta no céu e as estrelas brilhavam fortemente, como se não houvesse chovido. Mas a terra molhada mostrava-me que havia chovido sim, mas que parara há um bom tempo. Dei alguns passos sacudindo a lama da minha roupa e percebi que havia uma garrafa de cerveja vazia no local onde eu estava caído. Distraído com isso tropecei num buraco e cai de volta ao chão. Comecei a rir de mim mesmo e do meu descuido. Mas o meu riso transformou-se num gemido melancólico que morreu na minha garganta quando vi, ao tirar o pé do buraco, que para minha desgraça havia tropeçado dentro de uma enorme pegada, incrustada na piçarra endurecida. Parecia ser a pegada de algum cachorro e seria se não fosse por uma estranha peculiaridade, pois em nenhum lugar do mundo haveria um cachorro que deixasse uma pegada daquele tamanho... Uma pegada que era monstruosamente maior do que a minha mão aberta.

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