CONTROLE {MAURO LOPES LEAL*}



            Eu lavo as mãos sujas de sangue e acredito que sou um novo homem, melhor, mais civilizado, senhor de mim em todas as coisas, até mesmo nas mínimas. Mas este sentimento dura um instante, tão ínfimo que não pode ser contado em termos de tempo, tal como o conhecemos. Então eu choro, e preciso de alguns minutos para me recompor. Sou complexo, labiríntico, eu sei, mas não posso fazer nada, pois muitas vezes pareço apenas um mero espectador de mim mesmo.
            O sangue não quer sair. Esfrego embaixo das unhas e me sinto impaciente, apesar de saber que isso sempre ocorre. Abro mais a torneira e o fluxo de água torna-se mais intenso, molhando-me o ventre rente à pia.
            Enquanto tento me limpar, tenho o péssimo hábito de olhar para o espelho, como se aguardasse algo. Algo estranho ocorre. Vejo-me, mas não a mim, e sim outra pessoa, similar, com alguns traços que me são desconhecidos. Esse outro sorri, satisfeito. Parece ter saciado uma fome de dias. Mas seus olhos, vermelhos, traduzem uma solidão inquietante que diz tanto em tão pouco tempo. Como de costume, prendo a respiração e a imagem no espelho asfixia lentamente, entretanto, ela não morre, torna-se mais sorridente e exibe dentes amarelados e pontiagudos. De alguma forma incomum eu sinto pena dessa outra pessoa que sou eu. Se pudesse abraçá-la...  mas isso é perigoso. E ridículo. Não quero contato comigo sob o risco de me perder outra vez.
            Examino as mãos. Estão precariamente limpas. Não me importo, já dormi assim várias vezes, o que me assusta, mas também fascina. Mostro ao reflexo no espelho as minhas unhas sujas e o outro bate palmas, como uma criança que acabou de receber um caro e sofisticado brinquedo.
            Desligo a luz do banheiro. Saio. O quarto está impregnado de um odor doce, enjoativo. Esse seria o momento perfeito para abrir as janelas, mas não o faço, pois temo perder este instante de satisfação diante da minha obra. Sim, sou um artista, e me considero brilhante, mas ignorado pelo grande público. Isso me aborrece, mas não a ponto de vociferar contra o mundo. Não sou tolo a este ponto. Na verdade, sou centrado e amante da boa música, das belas formas de representação.
            Alguém me chama. Olho ao redor e sei que estou sozinho. Entretanto, continuam chamando meu nome. A voz vem do banheiro, previamente trancado, por motivos que me são absolutamente conhecidos. Sinto medo. E todo meu corpo é invadido por um torpor parecido com um lento desmaio, de quem está bêbado e resiste para se manter acordado.
            Sou chamado. Agora a voz se mostra mais angustiada, o que me entristece, uma vez que sou melancólico e busco, sempre que posso, me afastar das coisas tristes e desesperadas. Penso em responder, mas tenho consciência de que estou sozinho no quarto e que, agindo de forma incondizente com tal estado, estarei em uma clara situação de delírio. Mas isso é ridículo. Sou um homem que fala quatro línguas, sei tocar piano. Em uma sexta chuvosa, compus uma pequena sonata que falava sobre bocas risonhas, ventres largos e seios delicados e sedutores.
            Tapo com as mãos sujas os ouvidos.
            Estudei nas melhores escolas. Na universidade fui um dos melhores alunos do curso. E como fui parabenizado! Ainda tenho ali, na gaveta, as medalhas que ganhei. Algumas, douradas, trazem meu nome escrito. Ah, e como a vida era melindrosa naqueles dias difíceis, porém necessários. Hoje, se quiser comprar pardais de ouro, posso fazê-lo, uma vez que conquistei um lugar na sociedade que é para poucos. Sou, portanto, rei de mim...
            A porta do banheiro abre bruscamente. Tremo. Tento me esconder perto da cama, em um ângulo incomum entre o colchão e o solo frio. Pergunto quem é. Das sobras surge uma criatura horrenda. Suas mãos, grandes e vermelhas, abrem-se em garras. Os olhos, negros, refletem um pesadelo abissal que finjo desconhecer. Do canto da boca arroxeada escorre um líquido viscoso, que se torna mais e mais abundante, criando ao redor do monstro uma grande poça repulsiva.
            Sinto-me ameaçado. Por isso avanço, na tentativa de me defender. Alcanço a garganta da coisa, que me arranha o rosto, o peito, os ombros. Sinto uma grande dor, mas não posso desistir, minha vida depende unicamente do meu esforço. Luto desesperadamente. Penso nas pessoas que amo e que dependem de mim. Não posso desistir, se o fizer sei que, de alguma forma fantástica, serei sugado para dentro da criatura, que, para meu espanto, sufoca diante da minha força.
            Sinto a vitória. Regozijo-me. Hoje, ainda não será meu dia. O monstro tomba, convulsionando. Gargalho, por alguns minutos. Sei que todo meu esforço não foi inútil. Estou eufórico e não consigo parar de rir. Fecho os olhos e prendo a respiração. Durmo.

            Acordo horas, talvez dias depois. Ao meu lado, um cadáver, frio, inerte, irreconhecível. Serei eu?


____________________________________
* Mauro Lopes Leal

Natural de Belém do Pará, é graduado em Filosofia e Letras, especializando-se em Estudos Linguísticos e Análise literária pela UEPA, bem como o mestrado em Letras pela UFPA. Seus estudos acadêmicos abordam especificamente os autores russos, trabalhando a relação entre filosofia e literatura. 

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O DESPERTAR {SAMANTHA DE SOUSA}


Um sono esquisito, quase acordada. Sofia sente algo arranhando sua barriga. Ainda sonolenta, leva a mão até a região e sente o sangue escorrendo. Antes que pudesse reagir, algo agarra-lhe pelas pernas e a arranca da cama. Garras invisíveis rasgam sua carne. Os braços, as pernas, o rosto, o corpo, tudo sangra. Sofia só consegue gritar e revirar-se de dor. Novamente algo a arrasta até a parede e na parede eleva seu corpo e a puxa até o teto que a absorve como se ela fosse um líquido. Uma poça de sangue se acumulara em sua cama, um rastro de sangue espalhava-se continuamente no chão, pela parede, desaparecendo no teto. Um vento leve entrava pela janela do quarto e movimentava a cortina. Sofia deixara a janela aberta, pois a noite estava tão quente que seria impossível dormir. 

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O CLARINETISTA {GIROTTO BRITO}



“Envolve-te o crepúsculo gelado
Que vai soturno amortalhando as vidas
Ante o repouso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.”
Trecho do poema “Velho”, de Cruz e Sousa.

É fato que a arte pode nos dar momentos de prazer extremos, cujo corpo se desliga do meio em uma espécie de hipnose consentida que nos leva a um orgasmo espiritual rápido e viciante. Esse sempre foi o poder da arte aos sentidos humanos e foi assim que sempre enxerguei os verdadeiros artistas: como produtores de sentimentos e sensações, agradáveis ou não. A arte, no entanto, pode ser bem mais que isso. Há quem diga que a música, por exemplo, nos seus delírios extremos, pode abrir os portões do céu e do inferno, assim como a literatura, a pintura e qualquer outra arte em seu apogeu. Digo isto, porque foi através da música que vivenciei na mocidade algo que por anos fiz questão de esquecer. Algo que ainda hoje relembro com certo temor e calafrio.
Foi numa das tantas aventuras de minha vida que fui morar na cidade de Bragança, no início da temporada chuvosa de 1936. Havia recebido uma carta de um amigo que há tempos não mantinha contato. Nela ele dizia estar morando numa bela e próspera cidade nas entranhas da Amazônia, onde as oportunidades eram muitas e, junto ao seu endereço, fez-me o convite para ir morar com ele. Desempregado e atolado em dívidas, achei conveniente aceitar o convite de Antônio.
Desembarquei no porto de Belém durante a madrugada e logo que amanheceu peguei o trem para Bragança. A capital era uma cidade imensa e encantadora, rodeada de água por todos os lados, com seus casarões coloniais, trilhos, bondes, zeppelins e uma paisagem das mais exóticas que já vira até ali, sem falar do trem que cortava a selva como uma tesoura a uma seda, ziguezagueando num espetáculo surreal. Não era bem aquilo que eu havia imaginado quando ainda estava em Santos.
Quatro vagões cheios de gente dos mais variados lugares. Algumas fileiras mais à frente havia um grupo de espanhóis tagarelando nervosamente, como se estivessem arrependidos do destino que estavam tomando. Logo atrás, um grupo de pessoas que carregavam grandes peneiros de farinha, todos amorenados e com aparência indígena. Dois senhores bem vestidos sentavam-se ao meu lado, do outro lado do corredor, e falavam de como poderiam ampliar o escoamento de alimentos com a construção de mais um ramal para a ferrovia. Pela janela, grandes árvores passavam continuamente, num cenário selvagem e atípico para mim. O barulho era intenso: o apito e o ronco da locomotiva, pessoas gritando ao conversar; Era ensurdecedor, mas ao mesmo tempo agradável para quem está experimentando pela primeira vez. Lembro bem quando abri a janela para observar melhor a paisagem e as centelhas da Maria Fumaça trazidas no ar entraram e marcaram minha vestimenta com pequenos sinais de queimadura. Foram cerca de dez horas de viagem até o destino. Na época, uma cidade em desenvolvimento por causa dos investimentos em produção agrícola, mas ainda um lugar esquecido do país.
Quando desci na estação, ainda antes do anoitecer, fiquei encantado com a cidade. Um clima tropical excepcionalmente agradável, bem ventilado e com uma estranha umidade no ar que fazia mesmo o sol das duas parecer ameno. A arquitetura da maioria das residências era portuguesa, algumas nitidamente espanholas, todas, no entanto, muito bonitas e excêntricas ao que eu estava acostumado a apreciar.
Diz-se que nos rostos belos é que se escondem as almas horrendas. Nos corpos angelicais é que moram os demônios. Mas não parecia ser o caso daquele lugar.
O endereço da carta me levou a uma pequena casa a cinco quarteirões da estação, uma construção antiga, de paredes cinzentas, úmidas e mofadas. Não sei definir que tipo de arquitetura era aquela, não era portuguesa, nem espanhola, mas clássica, de grandes portas e janelas com detalhes bem desenhados em suas molduras, embora bastante desgastadas pelo tempo. Do lado da porta a numeração conferia com o endereço que Antônio me enviou: Rua General Gurjão, 1099.
Bati várias vezes na porta e não fui atendido. Não havia ninguém em casa. Sentei do outro lado da rua, na sombra de uma grande castanheira e esperei. Deve estar no trabalho — pensei. Não demorou muito o sol já se punha e um velho apontou na esquina, caminhando rápido e aparentemente assustado com alguma coisa. Parou na frente da casa e começou a revirar os bolsos, então sacou um molho de chaves e abriu a grande porta que ringiu num som absurdamente agudo. Abordei-o antes que ele pudesse fechar a porta. O velho levou um susto ao me ver. Olhou para mim como quem tentava lembrar-se de algo, mas logo desviou o olhar.
— Não, aqui não mora nenhum Antônio.
— Mas o senhor conhece algum Antônio Miguel Souza Castro que more aqui nesta rua? Ele me deu esse endereço.
— Não, meu caro. Eu sempre morei nesse endereço. Desculpe-me, mas tenho que entrar. — respondeu o senhor de aparência nervosa e tomado de um furor sombrio que não pude entender.
Sem mais conversa ele bateu a porta e me deixou na rua sem saber o que fazer e para onde ir. Olhei ao redor, a rua mal iluminada se perdia na penumbra dos becos. Por alguma estranha razão as ruas estavam desertas, como se ali as pessoas temessem a escuridão. Não conhecia ninguém, nem mesmo a cidade, não sabia onde poderia encontrar uma pousada e não havia ninguém nas ruas a quem eu pudesse perguntar. Peguei minha mala e ia me dirigindo novamente à estação ferroviária para pernoitar por lá quando uma voz feminina e áspera chamou por mim.
— Ei, moço! Você não é daqui, é? Está procurando um lugar pra ficar?
— Sim, sim, senhora. Sabe onde posso encontrar uma pousada ou algo do tipo?
— Alugo quartos e tenho um aqui que você pode ficar, se quiser. Pelo menos até encontrar seu amigo.
Velha maldita, estava ouvindo minha conversa — pensei.
 — Agradeço, minha senhora. Eu estava mesmo procurando um lugar para pernoitar.
— Venha, então. Acompanhe-me.
O quarto em questão ficava ao lado da casa do velho, colado parede com parede. Era um quarto pequeno e úmido, com cheiro de mofo, uma cama, um armário e uma pequena escrivaninha. O banheiro ficava do lado de fora e era comum a todos os hóspedes, embora parecesse não haver outros hóspedes.
Tomei um banho e voltei para o quarto. Não demorou a senhora bateu na porta trazendo uma refeição e um copo d’água.
— Pode me chamar de Judite, senhor. Como devo chama-lo?
— Jonas, pode me chamar de Jonas.
— Jonas de quê?
— Jonas Xavier.
— Pois bem, trouxe seu jantar. Não se preocupe que não irei cobrar por ele. Já comeu Maniçoba alguma vez na as vida?
— Não, nunca.
— Então irá comer hoje. Deixarei aqui na escrivaninha. Tenha uma boa noite.
Dizendo isso, a senhora Judite, que aparentava cerca de quarenta anos, saiu do quarto e encostou a porta.
A tal Maniçoba era uma comida verde-escura, de cheiro forte e aparência nada amistosa. Relutei por algum tempo a experimentar, mas a fome era tamanha que tive que abandonar qualquer preconceito ou frescura. Terminei de comer, deitei na cama sob o mosquiteiro empoeirado e adormeci.
Ainda hoje não sei dizer se eu estava acordado ou se fora apenas um sonho obscuro e perturbador. Lembro apenas que acordei na madrugada com o som de um clarinete a tocar uma estranha de sedutora música. Algo como uma sonata, melancólica, de certa forma deprimente e em alguns momentos doentia. Fiquei ali, inerte, de ouvidos atentos na música que adentrava a escuridão daquele quarto úmido. Levantei lentamente e fui me aproximando da parede, o som foi ficando mais forte, até que minha orelha encostou-se à parede fria. Vinha de lá, exatamente da casa ao lado, da casa do velho.
Aquela estranha música me atormentava e minha inquietação se tornou ainda maior quando lembrei que Antônio também era clarinetista. Seria muita coincidência. Cada nota, cada refrão, cada pausa me dava calafrios. E como se já não fosse o bastante, de repente, num pequeno trecho, reconheço um velho adagio que Antônio sempre tocava em seus ensaios. Aquilo foi como uma estaca em meus ossos. Era ele! Só podia ser ele!
Vesti a calça com pressa, coloquei meus óculos e abri a porta para ir à casa ao lado. Num susto ainda maior, quase caí de costas ao ver ali, em meio à penumbra do luar da madrugada, Judite em pé à minha porta.
— Isso não são horas para andar por essas ruas, senhor Jonas.
Demorei alguns segundos para recuperar as forças, minhas mãos estavam geladas e trêmulas.
— Sei disso, senhora. Mas ouvi uma música que pareceu muito com o que meu amigo Antônio tocava e acredito que ele esteja na casa ao lado.
— Isso não é possível, senhor. Aqui ao lado mora o velho Tião e eu não escutei música alguma.
— Como assim? Estava tocando até agora a pouco!
— Não houve música nenhuma. Seu Tião é pescador, só sabe pescar, nunca tocou nenhum tipo de instrumento.
— A senhora deve estar enganada, eu...
— Sem mais, senhor. Cuido desta pensão e não permito que os hóspedes fiquem perambulando nas ruas pela madrugada. Se quiser continuar aqui trate de voltar para o seu quarto! — respondeu a mulher já com um tom alterado.
Não tive opção senão voltar para o quarto e me deitar. Naquela noite não ouvi mais nenhuma música.
No dia seguinte, procurei por toda a vizinhança qualquer sinal da existência de Antônio naquela cidade, mas ninguém jamais ouviu qualquer coisa sobre ele. Simplesmente não havia um clarinetista sequer por aquelas bandas. Fui também à Escola Monsenhor Mâncio Ribeiro, que diziam ser a melhor escola da cidade, onde, em carta, Antônio me prometeu o emprego, mas lá também ninguém o conhecia. Voltei para a pensão já no entardecer, quando o sol formava um bonito espetáculo no horizonte além do rio. Sentei no banquinho em baixo da castanheira e fiquei esperando o velho Tião aparecer.
Era impressionante como os habitantes da cidade temiam a noite. Durante o dia as pessoas se amontoavam nas calçadas transitando de um lugar para outro, aos montes, e conversavam nas esquinas, gritavam oferecendo produtos, carregavam os vagões do trem com frutas, verduras e quinquilharias. Mas quando a noite ia chegando todos misteriosamente se escondiam em suas casas. A rua estava novamente deserta e o último, além de mim, que vi caminhar pela calçada foi o velho Tião, que saiu de um beco com pressa, como quem deseja chegar logo em casa, ou como quem está sendo perseguido por alguém. De um salto apressei-me para alcançá-lo.
— Senhor! Senhor! Preciso falar.
O homem pareceu me ignorar a princípio, mas quando viu minha persistência virou-se e me encarou com olhar severo.
— Não tenho nada para falar com você!
— Desculpe-me, senhor, a intromissão. Como disse ontem, estou à procura de um amigo e, durante a madrugada, acabei ouvindo uma música que me pareceu ter sido tocada pelo próprio, aí da sua casa. Por isso peço encarecidamente que, se o conhece, diga-me onde posso encontrá-lo.
O velho olhou para os lados observando se não havia alguém além de nós e começou a revirar os bolsos à procura da chave.
— O senhor não vai me dizer nada?!
Quando disse isso, subitamente o velho agarrou-me o braço com uma força impensável para alguém daquela idade.
— Saia dessa cidade! Está me ouvindo? Esqueça aquela maldita carta e saia dessa cidade!
Com um empurrão ele me soltou e entrou em sua casa. Fiquei sem ação, ali, calado, observando a imensa porta de madeira fechada à minha frente. Como ele poderia saber da carta? Com certeza ele conheceu Antônio, não havia outra explicação.
Voltei para o quarto da pensão. Judite já me esperava com um olhar reprovativo e uma bandeja com o jantar e um copo d’água.
— Espero que tenha gostado da Maniçoba. Hoje trouxe Sopa de Turú para você experimentar. Tenha uma boa noite e lembre-se: nada de ficar saindo na madrugada, não é seguro. — disse e saiu encostando a porta atrás de si.
A sopa não era ruim, e o Turú, apesar da aparência nojenta e viscosa, típica de todo anelídeo, tinha um sabor peculiar e bom.
Naquela noite eu não quis dormir. Decidi esperar até que a música começasse — se é que iria começar. Talvez fosse loucura minha, ou um pesadelo — não sei bem —, apenas sentei, abri um livro e comecei a ler alguns poemas. O tempo já não contava mais. Perdi-me em versos, parágrafos, devaneios e ansiedade. A música não surgia, nenhuma melodia atravessava aquelas paredes centenárias. Ora ou outra as pálpebras se fechavam e num instante se abriam, o corpo estava cansado. Olhei para o relógio, lembro bem, estava parado. Não sei se por falta de corda ou se o próprio tempo havia se rendido ao cansaço. Lá fora um silêncio opressor, torturador, que fazia daquele cômodo um quarto-sepulcro, uma lápide para uma morte noturna e breve.
Despertei num susto. Havia cochilado. Lá estava ela, a inquietante melodia. Ainda baixinho, mas nítida aos meus ouvidos apurados. Levantei e encostei novamente o ouvido na parede. A mesma música, as mesmas notas, as mesmas pausas. Era Antônio! Só podia ser ele.
Não arrisquei sair pela porta da frente, Judite poderia estar lá como na noite anterior. Abri a janela dos fundos e saltei e, antes que eu pudesse me dar conta do que havia feito, já tinha pulado o muro e estava no quintal dos fundos da casa vizinha. Estava escuro, sem luar, sem vento. Uma noite quente e abafada. O quintal era sujo e cheio de entulho. Móveis velhos, livros rasgados, e objetos indistinguíveis se espalhavam no chão de terra batida. Aproximei-me da porta, a música parecia cada vez mais alta e intensa, como que se pudesse sentir minha aproximação, de tal modo que ao tocar a maçaneta as notas pareciam ser tocadas em um frenesi aterrorizante. Respirei fundo e girei a maçaneta. Estava destrancada! Surpreendentemente aberta.
Entrei no cômodo escuro e fui seguindo a música e uma fraca luz que parecia dançar ao som da melodia. Lá estava, de costas para mim, sentado numa cadeira. A luz vinha de uma lamparina sobre uma mesa de canto e o quarto, apesar da penumbra, podia se ver, possuía apenas uma cama, a cadeira e a mesinha.
O clarinete gritava sem parar aquela música agourenta e os dedos pareciam desumanamente flexíveis e ágeis. O suor escorria pelo seu pescoço e, até onde eu podia ver, por parte do rosto. Dei alguns passos na direção do velho para poder me explicar, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa a música subitamente cessou. Um silêncio cortante ganhou toda a casa por um insignificante período de tempo, quebrado então pelo tic-tac do meu relógio que estranhamente voltou a funcionar. Era três e quinze da madrugada. Pensei em voltar antes que fosse notado, mas já não era mais possível.
— Eu disse que era para ir embora dessa cidade — soou a voz fraca e rouca do velho sentado na cadeira.
— Desculpe-me, senhor, eu sei que não tenho o direito de invadir sua ca...
— Eu disse que era para ir embora! — interrompeu o velho com um grito aterrorizante — Não vês que estou tentando te livrar dessa maldição?!
— Que maldição? Só quero encontrar meu amigo e sei que o senhor sabe onde ele está. Achei que era ele tocando esse clarinete, mas vejo que me enganei. Só quero saber onde ele está.
— Você não entende — dizia num sussurro quase inaldível—. Se ficar aqui, se tornará como eu: um amaldiçoado! Um prisioneiro desta cidade de almas perdidas.
— Senhor, não sei do que está falan...
Antes que eu pudesse terminar minha frase, o velho Tião levou o instrumento aos lábios e começou a soprar. Uma nota atrás da outra e a melodia foi tomando novamente aquela forma sombria, frenética e assustadora. O velho olhou para mim e, para meu desespero, seu rosto foi tomando estranhas formas, desfigurando-se, remodelando horrivelmente cada traço, cada feição. Os cabelos grisalhos e compridos escureciam e diminuíam conforme os dedos se moviam sobre os orifícios do instrumento, as rugas se moveram elasticamente de modo que eu não as via mais, o contorno dos olhos clarearam e as retinas mudaram do preto para um castanho-esverdeado. À minha frente, com o clarinete nas mãos, não havia mais um velho e tísico pescador, mas o jovem e altivo clarinetista: Antônio!
Horrorizado com aquela metamorfose horrenda e inesperada, cambaleei para trás na escuridão, esbarrando na mesa da cozinha. Aquela música impressionante continuava e parecia romper meus tímpanos. Horrorizado, gritei, mas meus gritos eram abafados pelo som esmagador daquele instrumento.
Os olhos de Antônio pareciam vidrados, observavam o nada, como em hipnose ou possessão. Tateei no escuro tentando encontrar o rumo da saída, tropecei numa cadeira e caí. Por algum instante fiquei ali, estendido no chão, tonto. Quando recuperei os sentidos, vi o relógio à frente do meu rosto: novamente parado! Levantei num salto e corri sem pensar para onde. Pulei o muro e corri pelas ruas estreitas, becos, calçadas com paralelepípedos, ainda na escura madrugada, entre casarios cinzentos e silenciosos. O som da melodia foi ficando para trás, diminuindo a cada pernada. O horror foi tamanho que mesmo sem saber para onde estava correndo as pernas me levaram até a velha estação ferroviária.
No amanhecer do dia tomei o primeiro trem rumo à Belém e de lá voltei para minha cidade apenas com os documentos e o dinheiro que carregava nos bolsos.

♠ ♠

Eis as horríveis lembranças que trago comigo, de um amigo aprisionado nas entranhas de uma cidade amaldiçoada, de um corpo que só consegue voltar a si ao som daquela música infernal.

Ainda hoje, no entanto, penso como poderia tudo aquilo ter acontecido e tento entender o motivo de meu amigo ter me enviado aquela carta. Depois de tanto tempo começo a duvidar de minhas próprias convicções, de minha memória e até de minha lucidez. Talvez eu mesmo ainda estivesse lá, aprisionado, se Antônio não me dissesse a tempo que eu deveria ir embora. Talvez eu mesmo fosse hoje mais uma alma atormentada ao som daquele frenético clarinete. Malditas lembranças! Maldita melodia que não sai da minha cabeça!

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MÚSICA DOS ANJOS {RAPHAEL SOARES}


Gravura de Gustave Doré

Seus pais queriam pôr-lhe o nome de Vitória, mas logo que nascera escolheram outro nome: Angélica. O nome não fora escolhido à toa, pois a menina era um belo e indefeso anjinho. A casa era pequena, um pequeno quarto com banheiro e uma sala que servia de cozinha, mas os pais teriam condição de criar sua filha e ampliar o lar aos poucos. Primeiro um quarto, depois uma cozinha.
Durante seus primeiros anos, a pequena Angélica fora criada com todo o cuidado, sempre bem limpa, vestida e afagada pelos pais. Em alguns momentos superprotegida, mas nada que a própria menina não quisesse. Angélica, como o anjo que era, vivia num verdadeiro Éden de tranquilidade, e pouco lhe faltava. Porém, calada, sempre desejara uma coisa: um irmãozinho que lhe fizesse companhia, que brincasse com ela, para que a vida fosse ainda mais perfeita; embora nunca tenha pedido aos pais, pedia ao “pai do céu”, como costumava chamar em suas orações, que lhe atendesse tal desejo pequenino.
Demorou vários anos, mas o desejo de Angélica fora atendido. Quando tinha doze anos veio a notícia de que teria um irmão mais novo, e era muita alegria para todos. Felizes comemorações e chás foram feitos para aguardar o novo morador daquela casa, que já não era mais tão pequena e poderia ter mais um visitante. Meses depois a confirmação de que seria um menino. Teriam de preparar um novo quarto para a menina, já que não é habitual que uma moça nessa idade compartilhe o quarto com um rapaz.
Os últimos meses de gravidez foram de uma grande tensão, tensão que a frágil menina sequer poderia imaginar, e por isso não pôde perceber. Nasceu o menino, e foi uma comoção geral, e toda a família chorou. Deram-lhe o nome de Augusto, e as coisas nunca mais seriam as mesmas desde então.
Angélica mudara para o novo quarto, nos fundos da casa. Devido a pressa em concluir a obra do quarto da menina, aproveitaram a paredes do lado e dos fundos, e o quarto ficou ligado à casa por um banheiro apenas. Como um apêndice à casa ficaram Angélica e seu quarto. Toda a sua vida fora e estava no centro daquele ambiente, e agora era relegada a um canto traseiro, enquanto o novo habitante tomava o seu lugar. A menina vira o irmão apenas uma vez, e não lhe foi permitido chegar muito perto. Não sabia o quê e o porquê, mas seu irmão era, de algum modo, muito diferente de si; engraçado, esquisito, dava medo. Não sabia.
A chegada do novo morador não afetara a vida de Angélica somente. A casa inteira estava mudada, mais sombria. Sempre que a menina se aproximava do centro da casa podia ouvir as inúmeras brigas entre os pais. Nunca vivera em um ambiente hostil como aquele, carregada de ofensas e acusações, e como sempre acontecia cada vez que se aproximava do coração da residência, pensou que era por sua culpa que tal se sucedia, então passou a se isolar cada vez mais em seu quarto, onde não ouvia sequer ruido de queixas, saindo apenas quando os pais iam com o irmão em uma das numerosas visitas ao médico. Quando estava na sala, só, era um silêncio, que nem de longe lembrava a abundância de sons da sua infância. Fora expulsa do Éden, e não era mais capaz de colher a alegria com as mãos.
Mas um segundo fato mudou a sua vida. Do silêncio do seu quarto, subitamente, ouviu longas notas de flauta, e logo depois uma canção. De onde viera? Viera acaso do céu? Sabia que não. Sabia que tal som vinha dos fundos de seu quarto. Talvez o vizinho fizera o mesmo que seus pais, construindo um cômodo colado ao muro. Não importava, aquela música parecia vir de instrumentos angelicais. A menina só queria que ela não parasse nunca. Porém, sobreveio o silêncio, e Angélica chorou.
Em pouco tempo a menina percebeu uma regularidade matemática que movia a música e seu executor, e a vida na casa era igualmente regular. No centro da casa as brigas e ofensas, o cuidado com o menino oculto e as idas ao hospital. No quarto da menina a música da flauta, entremeada de silêncio. Era aquela música sua única alegria, e sua maior tristeza, e nunca vira que ser, anjo ou demônio, tocava para ela.
Certo dia, Angélica tomou uma resolução. Os pais saíram e a música tocou, como era hábito. A menina saiu de casa sozinha e foi, pela primeira vez, à casa do vizinho de trás. Era uma casa verde e simples. Deu dois toques na campainha. Gritou de dentro uma voz anunciando que já atenderia, e logo um homem alto e jovem abriu a porta, com uma flauta em punho, perguntando com quem a jovem queria falar. A menina ficou alguns instantes em silêncio, congelada, enquanto o homem aguardava alguma reação.
Angélica desferiu três facadas no homem e correu.

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A ESTRADA {ELIAS ABNER}



Um fato sobre mim: nunca fui um homem de medos. Vi – ou ouvi – pouca coisa nessa minha vida que me fez experimentar tão infantil sentimento. Medo. Pra mim sempre foi coisa de crianças, ou de mulheres. Sim, porque nosso pai não aceitava que filho homem seu borrasse as calças por qualquer coisinha... Por isso dormíamos todos no escuro, sempre; e, no escuro, eu apertava bem os olhos na inútil tentativa de não enxergar a escuridão reinante para além das minhas pálpebras. Pro nosso pai, homem tinha que aguentar firme, sempre, acontecesse o que acontecesse. Talvez por isso o que vou relatar agora eu tenha guardado há alguns anos, com receio de abalar a minha reputação de homem destemido cultivada – ou melhor, imposta – ao longo desses quase cinquenta anos.
Eram quase cinco e meia da manhã quando o ônibus encostou na beira da rodovia e desci apenas com uma mochila nas costas. Ainda estava bastante escuro, e, fora o ônibus que se distanciava, não havia qualquer movimento, ou sinal de vida. Estava sozinho. Arrumei os óculos e encaminhei-me para um pequeno abrigo improvisado ao lado da rodovia, estrategicamente erguido na confluência entre a rodovia e uma estrada de terra, formando um pequeno trevo. Sentei-me num tosco banco de madeira. O telhado de palha há muito gasto deixava que aqui e ali se visualizasse partes do céu estrelado. E ali, sozinho no meio do nada, esperei por um mototáxi. A rodovia seguia direto para o litoral, cerca de trinta quilômetros; mas o local para onde eu iria ficava a quase 15 quilômetros por aquela estrada de terra, sem qualquer iluminação. Estava sentado de costas para ela, virei-me; até onde pude ver, a estrada seguia quase em linha reta e depois fazia uma curva, desaparecendo por trás de um denso arvoredo.
O que é que estou fazendo aqui?, perguntei-me consultando o relógio apenas para constatar que o ponteiro parecia estar tão cansado quanto eu. Fechei os olhos e passei as mãos no rosto para espantar o sono.
Havia sido convocado para ser mesário naquelas eleições justamente para aquele lugar, cujo nome – mesmo agora – não gosto nem de mencionar e do qual sequer ouvira falar. Pelas informações que colhi antes de viajar, soube que a tal vila, de pouco mais de 40 casas, era bem pacata, com um igarapé imenso pelo qual era possível até navegar num pequeno barco. Por conta disso havia me animado em ir pra lá. Todavia, nas atuais condições em que me encontrava, sozinho naquele lugar, comecei a repensar na loucura em que havia me metido. Pensei em Amanda e em Julia, nossa filhinha de dois anos apenas, seguras no nosso apartamento minúsculo, muito provavelmente dormindo àquela hora. Olhei pro céu estrelado. Fiz um sinal da cruz na altura do peito. E esperei. 
Passado um tempo, ouvi um barulho em direção à estrada de terra. Olhei de imediato por cima do ombro. Um homem, aparentava ser idoso, vinha caminhando. Na hora fiquei receoso, confesso. Mas o homem vinha a passos lentos, e parecia inofensivo. Deu bom dia.
— Bom dia — respondi, mesmo tendo plena certeza que ainda era noite.
O homem se sentou em outro banco à minha frente, o rosto meio oculto nas sombras.
Ele não cheirava nada bem. Imaginei que deveria ser algum mendigo, ou um andarilho, comuns nessas estradas. Mas ele falou que estava indo pra cidade, receber sua aposentadoria. Assim, presumi que o fedor deveria ser por falta de asseio, ou causado pelo esforço de andar os 15 quilômetros, pois dissera vir da tal vila para a qual eu estava me dirigindo.
— O senhor não tem medo de andar sozinho, uma hora dessas, por uma estrada escura assim?
Ele passou a mão no pescoço, como se alguma coisa lhe comprimisse a garganta. Tossiu.
— Medo... — disse depois de cuspir no chão. — Já tive, mas hoje não...
Fiquei calado.
— O senhor não é daqui não, né? — Ele perguntou. — Não tem medo de ficar aqui sozinho?
Mexi-me no banco.
— Tô aqui a trabalho... — respondi. — E pra falar a verdade, não tenho medo não; tenho receio, já que não conheço essas bandas... mas medo não. Aliás, nunca tive medo, de nada.
Ele pigarreou e uma lufada de vento trouxe aquele nada agradável cheiro direto às minhas narinas. Virei o rosto tentando disfarçar.
— Ah, se o senhor morasse pra cá ia pensar diferente...
Fiquei interessado.
— Como assim?
— Essa estrada, meu rapaz, não é fácil... Não é pra qualquer um não.
Olhei pra estrada.
— Mas porquê? — quis saber.
— Antigamente, antes de chegar pra cá esses carros e moto-sei-lá-o-quê, o povo só vinha em grupo de dez ou mais, geralmente nessa hora da manhã pra pegar o ônibus que acabou de passar... Tudo indo pra cidade fazer compra, receber pagamento, essas coisa...
— Mas porquê em grupo, tinha muito bandido por essas bandas?
O velho riu.
— Bandido? Nem bandido se atrevia a andar por aqui, seu moço...
Engoli. Olhei novamente para a estrada. Ele continuou:
— Eram outras... “coisas” — fez as aspas com os dedos —, entende?
Balancei a cabeça. Não entendia.
— Visagem, assombração, essas coisa, entende?
Eu não entendia. Ridículo ele falar uma coisa dessas.
— Besteira, isso não existe — disse rindo. Só podei ser coisa de interior mesmo...
— O senhor fala isso porque não passou pelo que eu passei... — o velho disse, passando a mão novamente na garganta.
Recostou-se no banco.
— Numa vez fiquei foi aperreado nessa estrada aí...
Com a curiosidade aumentando, apoiei o queixo nas mãos. O velho continuou:
— ... O pessoal sempre saía às sexta-feira, lá pelas quatro da madrugada. Mas eu tinha uma consulta na quinta, não dava pra faltar. Então tive que vir de lá sozinho, aliás, só eu e Deus, umas três e meia da madrugada, já pensou? Mas eu já tinha feito isso outras vez, não tinha nada a temer. Era o que eu esperava... — o homem tossiu e cuspiu no chão, depois limpou a garganta. — E tava eu andando tranquilamente, assim, sabe, um pouco apreensivo mas tranquilo; até que já quase na metade do caminho, passando o velho cemitério que fica perto do rio Mearim, o senhor conhece o rio Mearim? — fiz que não com a cabeça — Ah é, o senhor não é daqui... Pois então, passando o cemitério tive a impressão de que de dentro do mato alguma coisa me observava...
Me endireitei no banco.
— Sabe a sensação de que tão te observado? — não respondi. — Pois eu podia jurar, seu moço, que eu tava sendo observado. Mas eu era corajoso, como o senhor; não me intimidei, não, nem corri nem nada. Primeiro que estava no meio do trajeto, longe lá da vila e aqui da parada. Se corresse, seria ruim; se ficasse, né... Resolvi ficar, aliás, continuar a viagem. Poderia ser algum animal, uma onça, muito comum naquele tempo... Era uma noite estrelada como esta e a lua tava alta no céu. Conseguia enxergar bastante a estrada à minha frente por que naquele tempo era de areia, e não de piçarra como agora... Lá do mato, um farfalhar indicava que alguma coisa, além de me observar, parecia que tava me seguindo. Fiz o sinal da cruz e continuei o meu caminho. De repente alguma coisa foi jogada do mato até à estrada. A coisa que eu não fazia ideia do que era caiu a alguns metros na minha frente. Ah, seu moço, na hora um arrepio levantou os cabelos da minha nuca! Eu era corajoso, te juro, mas quem disse que olhei pra’quela coisa? Tava louco! Olhei não! Custasse o que custasse, eu não ia olhar, mas jeito maneira... Não mesmo! Mas ia ter que olhar, né, já que tava no meu caminho. Segui a diante. Tentei olhar pra frente, pro fim da estrada. Não deu. À medida que me aproximava os olhos eram atraídos para aquela “coisa” ali, sei lá, coisa do cão! A uns dois metros não aguentei mais e baixei os olhos... Sabe o que era, seu moço? — percebi que havia segurado a respiração. — Era uma mão, uma mão de gente, assim, ó, com os dedo e tudo!
— Uma mão? — percebi minha voz um tanto embargada.
O homem fez que sim com a cabeça, passando a mão na garganta mais uma vez.
— Uma mão! Pense num desespero que me deu. As perna começaram a tremer que nem vara verde na correnteza, a cabeça pareceu ficar des’tamanho, inchando que nem balão... Segui, andando bem mais apressado. Pra minha desgraça, seu moço, mais à frente outra coisa foi jogada. E sabe o que era? Uma perna! E assim foi. Um braço, um pé, uma coxa... Eu só ia desviando, olhando de canto do olho, já quase correndo. E sabe o que é pior? Eu não olhei pra traz nenhuma vez, mas tinha a certeza de que o corpo tava se montando...
Não apenas os meus olhos estavam arregalados, mas a minha respiração estava levemente alterada; uma estranha atmosfera pareceu baixar naquele momento.
— Só faltava uma coisa — o velho continuou —: a cabeça... Fiz várias orações em pensamento, o sinal da cruz... Então, mais na frente... a cabeça caiu. Caiu assim, com um baque abafado, molhado de sangue, parece... E ela veio rolando, rolando, e parou na minha frente, nos meus pé. Eu parei com o susto, quase caí. Arregalei os olho; a respiração assim, ó, entrecortada. A cabeça mantinha os olho fechado, a boca contorcida numa expressão de dor, sei lá, crueldade aquilo. Não quis olhar pro mato pra ver se alguém, ou alguma coisa, tava mesmo lá, me observando, seguindo; fiquei imaginando que ia ter o mesmo destino... Foi então que ouvi o barulho de passos atrás de mim. Ah, seu moço... eu fechei os olhos, temendo olhar pra ver quem ou o que era. Então o barulho parou. Voltei a abrir os olhos. Eu estava tremendo! Olhei novamente pra cabeça no chão. Seus olhos tavam abertos, e piscando, seu moço!, pra mim! Foi quando uma mão tocou no meu ombro...  
Eu estava simplesmente paralisado. Sem qualquer reação.
— M-mas o que acontece-ceu? — perguntei, e um arrepio subiu pela espinha, parando na nuca.
O homem passou a mão na garganta. Tossiu.
— O que aconteceu? — escarrou e cuspiu. — E eu corri; corri com toda a força que ainda me restava!
O homem se calou e abaixou a cabeça. Eu também resolvi ficar calado, impressionado que estava com aquele relato.
— Já tinha ouvido sobre essa aparição — o homem voltou a falar e eu levei um baita susto —, mas nunca tinha dado crédito. Diziam que era o fantasma de um senhor que foi brutalmente assassinado naquela estrada e esquartejado...
Meus olhos continuavam arregalados.
— Já imaginou o senhor nessa situação? — ele perguntou.
— Nunca... — respondi apreensivo, mas não querendo parecer medroso. — Mas mesmo assim isso foi há muito tempo, não é? Hoje em dia as coisas mudaram...
— Verdade... — ele respondeu pensativo. — Mas tem coisas que não mudam assim, tão rápido...
O homem abaixou a cabeça e começou a coçar freneticamente o pescoço. Senti uma sensação estranha, como se estivesse sendo observado por todos os lados... Uma atmosfera pesada caiu. O céu não estava tão estrelado como antes, e a escuridão ali parecia quase palpável... Olhei pro homem e me deu pena. Ele continuava a coçar a garganta de cabeça baixa, os gestos mais lentos, bem mais lentos, como em câmera lenta. Quando levantou a cabeça notei, pelo facho tênue de uma luz que passou por um dos rasgos da cobertura, que o seu rosto se contorcia penosamente, e havia um pequeno corte em seu pescoço, logo abaixo do pomo de Adão. O homem levantou mais a cabeça e um esguicho de sangue saiu do corte. Meu olhos se arregalaram mais ainda, como se fosse possível. A cada movimento, o corte se abria mais e mais, o sangue esguichando em abundância. A primeira ideia que me veio à mente foi correr. Mas me vi paralisado. Não conseguia articular palavra alguma. O rosto do homem se contorcendo em agonia... Até que a cabeça dele tombou de lado, e, como se fosse puxada, veio rolando até os meus pés. O corpo inteiro se fez em pedaços e um fedor insuportável infestou o local. Gritei, e apenas um som abafado, gutural, saiu da minha garganta. Meus movimentos também pareciam estar em câmera lenta, como se cada articulação rangesse, estralando os ossos. Caí do banco. De costas, fui me arrastando penosamente sem saber o que fazer ou pra onde ir enquanto via os pedaços do corpo começarem a procurar seus pares, um zumbido no ar, como dezenas de vozes distantes falando coisas incompreensíveis... Era o meu fim! O que quer que fosse acontecer eu tinha certeza que não sairia vivo. Pensei em Amanda e Julia: meu coração ficou apertado. Pensei no meu pai. A coragem dele em nada me serviria naquele momento... Os olhos do homem se reviravam nas órbitas fundas, as mãos aracnídeas se arrastando em minha direção... Eu me arrastando de costas sem conseguir pensar em mais nada que não fosse sair dali. Mas seria impossível. Tentei gritar por ajuda mais uma vez e só um monte de baba caiu da minha boca escancarada, minha língua parecia ter aumentado quase um metro e eu não conseguia mantê-la dentro da boca... E o corpo já quase totalmente montado... Faltava apenas um braço que se contorcia em minha direção pelo chão e a cabeça cujos olhos estavam cravados em mim e cuja boca sussurrava coisas que eu não entendia... O corpo veio se arrastando em minha direção... Eu me arrastando tentando inutilmente fugir... Foi então que uma forte luz brilhou às minhas costas e eu me virei imaginando o sol nascendo. Minha visão foi ofuscada e fechei os olhos. Ouvi o barulho de um motor se aproximando. Abri os olhos embaçados pela falta dos óculos – caído em algum lugar. Um vulto de camisa amarela encostou e desligou os faróis da moto.
— Bom dia, patrão, esperando corrida?
Eu não conseguia falar. Não conseguia nem me levantar. Virei-me desesperadamente para ver o corpo, mas ele havia sumido.

O mototaxista apenas riu e me ajudou a levantar.

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O TEMPO {MAURO LOPES LEAL*}


O arcebispo da cidade de B., como de costume, abençoou a multidão de fieis, assinalando o fim da cerimônia. Recebeu, como de praxe, parabenizações pelas belas palavras de ânimo com as quais costumava adornar a sua homilia. Após alguns apertos de mão e uma dezena de fotos, retirou-se para descansar na imensa casa que ficava aos fundos da igreja. Estava exausto e havia dado orientações de que não queria mais ser importunado. Sua secretária, uma velhinha de uns sessenta anos, inclinou a cabeça.
O religioso, já no seu quarto, trocou de roupa, tomou um demorado banho. Enquanto se enxugava, refletia sobre a possibilidade de ainda jantar outra vez, mas o pernil não estava do seu agrado, o que rendeu momentos de aborrecimento para si horas antes. Odiava alimentar-se mal, pois seu humor tornava-se instável nesses momentos e, por vezes, até mesmo grosseiro para com as demais pessoas, algo que não era do seu agrado, mas culpava seu organismo por semelhante comportamento. Olhou no relógio, era quase meia noite. Achou melhor não comer nada, pois poderia ter pesadelos durante a noite, outra coisa que o aborrecia constantemente. Apreciava noites de sono calmas e revigorantes, principalmente as de chuva.
Ajoelhou-se, como de costume, diante de um ícone e começou a rezar. Enquanto repetia maquinalmente as orações, lembrou-se de que havia esquecido de mandar comprarem cigarros. Tinha dois na sua carteira, o que era quase desastroso, pois costumava acordar de madrugada para fumar, coisa que fazia duas ou três vezes durante a noite. “Ave-maria, cheia de graça...”. Escutou atrás de si uma forte respiração. Assustou-se e o ar faltou-lhe aos pulmões momentaneamente. Engoliu seco. Voltou-se abruptamente. A um canto do quarto, sentado em uma das três poltronas de couro, um idoso, vestido elegantemente, fitava-o com avidez. “Boa noite, senhor arcebispo”. Sua voz era grave, mas pausada, como se não tivesse pressa alguma em se expressar. Saudou o religioso com um gesto positivo de cabeça.
O religioso, com o olhar fixo no estranho que ocupava seu quarto, ergueu-se de forma impressionante, em um movimento brusco que não condizia com o seu avantajado porte físico e ventre protuberante. “O que queres? Dinheiro? Jóias?”. Sua voz, apesar de firme, traia-o com um leve tremor. O outro cruzou as pernas e exibiu um elegante par de sapatos pretos. Retirou do bolso um charuto, cheirou-o com parcimônia. “O que eu quero? Pergunta curiosa. Eu quero aquilo que é meu”.  Apanhou ao lado da poltrona uma magnífica pasta, abriu-a e retirou de dentro um papel bastante envelhecido. Agitou-o no ar.
“Isso é... é impossível! Algo deve estar errado. A data... há algum equívoco, certamente”. O estranho ancião sorriu. Passou, na vasta cabeleira grisalha, a cumprida mão, cujos dedos estavam adornados com anéis de ouro e prata. Acendeu seu charuto e deu duas baforadas, em seguida percorreu o quarto com o olhar. Fitou o teto, o chão de mármore, os quadros, a rica mobília. Chamou sua atenção o crucifixo de ouro acima da cabeceira da cama do arcebispo. Pigarreou, como se preparando para dizer alguma coisa, mas continuou em silêncio, olhando em torno, como que procurando algo que não saberia dizer com precisão. Em seus gestos havia nobreza e altivez autênticas, e nada em si parecia desnecessário, como se tudo em sua pessoa fosse imprescindível.
“A questão é o tempo, senhor arcebispo. O tempo é eterno inimigo do homem, não eu. Reflita comigo: ao serem concebidos, os homens iniciam uma interminável disputa contra o tempo, que por sua vez é inflexível, pois avança, poderoso, indiferente às colunas majestosas do Partenon ou aos traços sublimes e melancólicos da Pietá. É essa impiedosa postura do tempo, por assim dizer, que angustia o homem, este, por seu turno, torna-se, sem perceber, escravo desse tempo. Na luxuriante vida ou no remexer das latas de lixo, o homem vive, ou sobrevive, sob o estigma da finitude da existência. Sabendo que sua efetividade no mundo é breve, um sopro, ele quer desfrutar, ao máximo das potencialidades, tudo aquilo que é bom, belo ou prazeroso, não importa o que seja preciso fazer para alcançar semelhantes... doçuras. Há os que corrompem, os que matam, os que furtam, mas, pessoalmente, eis aqui um segredo meu que confesso com certo pudor, mas também ironia, prefiro aqueles que, em nome de um entidade superior, nutrem-se da fé alheia para a satisfação de desejos, digamos, particulares. Não estou aqui para julgar ninguém, o senhor bem sabe, na verdade incentivo esse desejo insaciável do homem em desfrutar daquilo que lhe é natural, o que me torna, em muitos casos, uma figura injustiçada. Sim, eis o termo exato, uma vez que, o senhor há de concordar comigo, nada sou além de um simples mensageiro. Se o homem não fosse um ser de veleidades exacerbadas e infindas, certamente eu não estaria aqui, minha existência seria nula”. O ancião parou para dar mais uma baforada em seu charuto, para em seguida repousá-lo com bastante calma em um cinzeiro próximo.
“Contudo, apesar de meu apreço ao homem, estou aqui na condição de executor, não, esse é um termo robusto demais. Digamos que sou um atravessador, uma espécie de barqueiro, um tipo singular de Caronte, bem mais alinhado”. Com gestos vivos, o ancião arrumou a gola da sobrecasaca. “Mas veja, o relógio na parede marca meia noite em ponto. Hoje, portanto, é 05 de janeiro de 1998. Logo, conforme este papel, deixe-me confirmar de novo, sim exato, conforme este documento, o senhor arcebispo deve acompanhar-me...”.
Diante daquelas palavras, o eclesiástico foi tomado por uma postura combativa. Armou-se com algum dos objetos religiosos que adornavam o seu quarto e apontou-o para o outro. “Espírito imundo” bradou com fúria “ordeno-te que retornes às abissais entranhas das quais surgistes!” Destemido, avançou. Em seu olhar havia uma espécie de esperança desesperada. Sabia que muita coisa estava sendo decidida ali, na sua alcova e que provavelmente a sua própria vida estava em jogo. Muitas coisas passavam pela sua mente, lembranças terríveis, mas não havia tempo para arrependimentos. Uma luta estava sendo travada e ele não podia esmorecer. Bradou outra vez as palavras anteriores, com mais ênfase e firmeza.
Ouviu-se uma forte e inumana gargalhada que ecoou por toda a casa. Os cães da vizinhança começaram a latir. No andar de baixo, ouviram-se rumores, talvez a velha secretária tenha acordado.
“Não me tome por um dos seus seguidores, homenzinho”. O ancião ergueu-se lentamente e só então percebeu-se o quanto ele era alto e corpulento. Com passos precisos, caminhou em direção ao arcebispo. Seu rosto ia desfigurando-se aos poucos, ao ponto de, após alguns instantes, tornar-se completamente horrendo. “O seu tempo, senhor arcebispo, extinguiu-se. Como eu sei disso? Eu sou o tempo!”. Uma grande sombra nasceu das costas do monstruoso ser e avançou sobre o religioso, adentrando-lhe pelas narinas, ouvidos, boca. O pobre homem debatia-se, sentindo um frio intenso invadir violentamente seu corpo. Um vazio extremo preenchia sua alma. Tentou ainda pronunciar alguma coisa, mas era impossível. Já não era mais senhor de si e tudo o que podia fazer era testemunhar a sua absoluta corrupção física e espiritual enquanto que, diante dos seus olhos, homens desesperançosos, mulheres desesperadas, crianças maltrapilhas, esqueléticas, enfermas, dançavam em um movimentar freneticamente convulsivo. Quem eram? O arcebispo sabia quem eram cada uma delas, reconheceu-as e, se não fosse a intensa dor que sentia, teria chorado. 

            A velha secretária bateu à porta do quarto. “Senhor arcebispo?”. Forçou-a. Chamou mais duas vezes e obteve como resposta um grito humano, intenso inicialmente, depois como que sumindo para regiões remotas. Procurando com dificuldades a chave certa em um molho grosso, a pobre mulher abriu, trêmula, a porta, para encontrar o quarto vazio e com um forte cheiro que lembrava cigarros, mas mais forte.

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* Mauro Lopes Leal

Natural de Belém do Pará, é graduado em Filosofia e Letras, especializando-se em Estudos Linguísticos e Análise literária pela UEPA, bem como o mestrado em Letras pela UFPA. Seus estudos acadêmicos abordam especificamente os autores russos, trabalhando a relação entre filosofia e literatura. 

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