MANSÃO GÓTICA {RAPHAEL SOARES}


Gravura de Gustave Doré

Nunca compreendi direito o que acontecera naquele dia. Parecia um dia comum, quando eu e mais três amigos resolvemos nos divertir um pouco contando histórias de terror, como sempre fazíamos nas férias. Dessa vez eu escolhera o lugar, uma mansão gótica que ficava próximo da casa de um amigo, recentemente conhecido, Henrique. Henrique foi uma das pessoas mais cultas que conheci na minha vida; possuía conhecimentos enciclopédicos, particularmente sobre a história nacional, além de fascinante memória, capaz de armazenar quantidades incríveis de informações como datas e nomes. Pensei: Henrique decerto conhece histórias assustadoras, portanto, seria bom levá-lo junto para nos contar assustadoras histórias daquela mansão, que por si só aparenta ter saído de uma novela de Hoffmann. Então chamei-o e rumamos nós cinco para a mansão: João, Arthur, Fred, Henrique e eu.
João provavelmente era o melhor narrador de nós. Era um grande leitor de histórias de terror e ficção científica. Conhecia e sabia discutir sobre praticamente todos os assuntos, no entanto, suas opiniões eram bastante extremas, e muitas vezes discutia mesmo estando absolutamente e claramente errado. Era considerado “a cabeça” do grupo, e provavelmente por seu comportamento arredio, beirando a antipatia; éramos seus únicos amigos.
Arthur e Fred eram irmãos; chamávamos Fred pela abreviação porque não gostava do próprio nome. Não sei porque ambos gostavam da minha companhia e da de João. Eram muito sociáveis, e bastante fortes, além de excelentes esportistas. Talvez gostavam da ideia de proteger os mais fracos. Arthur era burro como uma porta, no entanto, dentre os dois era o que mais gostava de nossas narrativas.
Nunca mais os vi. Se não me falha a memória aquela foi a última vez que contamos histórias de terror uns para os outros. Não sei o que é deles, nem se estão vivos ou onde estão.

Lembro que quando chegamos em frente à mansão procuramos um meio de entrar, já que os portões estavam trancados e pareciam muito resistentes. Nesse momento Henrique disse:
– Venham por aqui – e seguiu para a esquerda da construção e mostrou uma pequena entrada, com os vidros quebrados.
– Como conheces esse caminho? – perguntei.
Henrique nada disse. Sempre foi muito misterioso, e nunca soube praticamente nada sobre sua vida.

A mansão era muito interessante. Sem dúvidas qualquer história de terror seria vinte vezes mais assustadora lá. Todos pareciam mudados. João parecia bastante assustado, enquanto Arthur e Fred pareciam bastante empolgados. Henrique havia mudado completamente desde que entramos na construção, e isso me assustou bastante, mas pensei que era algum plano para construir um “clima” para a sua narrativa.
Sentamos em volta de uma antiga mesa, que me fazia lembrar de alguma forma os cavaleiros de Arthur. Interessante termos um Arthur no grupo, no entanto, sabíamos que não contaria nenhuma história. João como “presidente” do grupo decide indicar, por pura pirraça, Arthur para iniciar as narrativas.
– Vamos Arthur! Você primeiro. Comece contando alguma história assustadora.
– Obrigado. Fico por último.
Sabíamos que nada falaria. Arthur nunca narrava. Talvez não soubesse nenhuma história assustadora, exceto as que contávamos, ou se envergonhava de contar uma história, com medo de não ser tão boa ou de não saber contá-la. Como anfitrião, já que escolhi o lugar, pedi para começar.
Narrei a história de um culto ancestral demoníaco, e de uma temível maldição. Após minha história, Fred nos narrou uma história apocalíptica, que mais aparentava aventura que terror propriamente dito. Como sabem, nunca fui bom em narrar histórias, mas se havia alguém pior que eu era Fred. Talvez Arthur fosse ainda pior que nós dois.
– Agora é a minha vez, contarei uma história que nunca irão esquecer. – dizia João, e aguardávamos ansiosamente esse momento. De todos nós era o melhor narrador, e muitas vezes nos assustava muito. Na maioria das vezes, nossa diversão consistia sempre em ouvir João narrar, por isso sempre ficava ao final. Olhei para Henrique, que parecia entediado mas que provavelmente adoraria a história que João contaria; nutria esperanças de que Henrique narraria uma história ainda mais assustadora que a de João.
Não sei se era o lugar ou a história, mas quanto mais João avançava a narrativa mais assustados eu, Arthur e Fred ficávamos. A história era simples, mas o fato de envolver crianças e forças desconhecidas dava um aspecto sinistro. Ainda mais com a habilidade narrativa incomum de João. Uma verdadeira história se faz com o estilo, não com o que é narrado.
João nos contava de uma criança enferma que, quando o pai rápido cavalgava com o filho atrás de ajuda, foi interceptada por uma força sombria que a queria para si, tentando-a convencer a partir consigo. O pai nada via, e o filho ainda mais adoecia e gritava ao pai pedindo socorro contra a força maligna. O filho acaba morto nos braços do pai. Teria sido levada pela misteriosa criatura ou era apenas o delírio de um enfermo quase no fim de sua vida?
Olhei para Henrique, que parecia ainda mais entediado e um tanto decepcionado. Levantou-se e virou-se de costas para todos e disse a mim:
– Isso que chamas de história de terror, Felipe?
– Se não é assustadora por que não tentas fazer melhor? – Disse João irritado, que não permitia que falassem mal de suas histórias.
Henrique ficou ainda um tempo calado, tirando a poeira branca de um móvel antigo, e posteriormente tocou nas cortinas da janela frontal, como se estivesse tentando lembrar alguma coisa. Nunca havia visto tal expressão em seu rosto.
Após alguma hesitação, Henrique sorriu, um sorriso falso, e nos disse:
– Precisamos de música!
Olhamos um tanto surpresos com o comentário, e prosseguiu:
– Conhecem Glass? Deveriam conhecer o melhor compositor vivo! Acho que a música dele, moderna e atemporal, é a mais apropriada para essa ocasião e...
– Vai contar uma história ou não vai? – interrompeu João irritado. Henrique nada respondeu. Tirou um toca discos de sua mochila e colocou sobre um piano velho que o apoiava anteriormente. Como não percebi que havia um piano na sala?
A música começou a tocar, e soando dentro da mansão parecia feita por fantasmas. Henrique andava de um lado ao outro e falava vários “bem”, “como começo”, “hum”, “magnífico”. Parecia visivelmente perturbado, e João ao meu ouvindo perguntava de onde conhecia tal sujeito, e não respondia nada; nem ao menos saberia responder. Henrique, por fim, nos olha e diz:
– Vou contar-lhes a história dessa própria casa, história que já estou familiarizado, e que, diferente de tudo isso que ouviram hoje, essa história é a pior de todas simplesmente por ser real. Vocês devem compreender que não se deve duvidar de nenhum pequeno detalhe, ou possível incoerência. Por mais bizarro que possa parecer, tudo realmente aconteceu.
*

Essa mansão foi construída há centenas de anos atrás; para ser bem preciso, sua última pedra foi colocada em 1249. Pertencia a um duque que dominava uma área maior que a cidade que atualmente comporta o paço. No entanto, a história que vou contar é de sete gerações posteriores à do construtor.
Em 1360, aqui vivia um nobre com sua esposa. A história costuma afirmar que era bela, mas nada pode-se afirmar com clareza. A dama não podia sair, e o único retrato que gravou seu rosto há muito não existe mais. O nome do casal era Ana e Luiz.
Nesse ano de 1360 ocorreu uma tragédia na vida do casal. Ana morrera no parto de sua filha, Clara, e após isso muita coisa mudou nessa casa. Ninguém mais via Luiz sair, apenas seus servos o viam e saiam. A reclusão de Ana passara ao marido, e posteriormente seria imposto à filha.
Como era de se esperar, quando ficou jovem, Clara fugiu da mansão. O pai ficou como louco buscando-a, já estava louco há tempos, diziam alguns. Luiz encontrou sua filha em um convento dos frades menores, sob vigilância de um jovem religioso da ordem. Enfurecido, o pai agrediu vários dos religiosos, e arrastou a filha para casa. Pouco depois, Clara morre sem que se saiba a causa. Apenas uma pessoa além do pai pôde ver o corpo.

 Nesse momento Henrique interrompe a narrativa. Olha para o lado, se levanta e segue em direção ao seu olhar. A música de Glass continua tocando. Henrique move uma velha cortina, e por traz dos panos se vê claramente um retrato de uma jovem muito bela. Todos nós ficamos assustados nesse momento. Mais incrível que Henrique saber precisamente o lugar onde estava tal retrato, creia-me, era o fato de estar tão preservado, como se fora pintado no dia anterior. Impressionante era o modo como Henrique olhava o retrato, como se não estivesse lá, e seu olhar atravessasse tudo, por fim, olhando o nada. O rosto mais parecia o de um defunto.
– Linda não? – Henrique falava, como se falasse para ninguém – esse é o único retrato de Clara. O pai mandou pintar logo após sua morte, e o pintor foi a única pessoa que a viu depois do acontecimento no convento.
– O que aconteceu com o pai? – perguntou João, aparentemente não mais irritado.
– Morreu uma semana depois.
– Que tragédia! – Disse por fim, um tanto aliviado, embora não soubesse o porquê de tal alívio.
– Não nos adiantemos. Além do mais, a história ainda não começou.
– NÃO??? – dissemos, os quatro, espantados.

Por fim, na semana seguinte à morte de Clara todos nessa casa morreram. O pai e todos os criados morreram no mesmo dia, se não me falha a memória, e ela algumas vezes falha, foi no dia 20 de outubro de 1374. Todos em volta comentaram sobre o caso. Alguns afirmaram que era punição divina, que iria afetar toda a região, então fugiram para longe; outros acreditavam que o duque e seus serviçais morreram de uma peste, que matou todos e rapidamente, devido a reclusão em que viviam; alguns acreditaram até em algo de ordem satânica. Os mais sensatos, claro, acreditaram que Luiz enlouquecera e matara todos os seus servos e cometera suicídio, assim como acredita-se que tenha matado a própria filha. Devido a natureza da disciplina histórica, essa última versão, a dos sensatos, é a que fica para a posteridade, e essa é a versão histórica oficial do acontecimento.
Agora, há detalhes dessa história que os historiadores não conhecem. Quando fugiu, Clara contou diversos segredos ao franciscano que a acolheu. Luiz não era só um barão excêntrico, que trancava a filha apenas como uma mania aceitável. Luiz estuprava sua filha desde os 6 anos de idade, e os estupros eram diários. Não só a estuprava, como a machucava e a humilhava diariamente; seu próprio pai. Por causa dos abusos Clara fugiu, e contou tudo ao franciscano.
Clara era uma menina tão doce. Tenho certeza que foi o maldito que a matou. Provavelmente matou todos e se matou também. Na época, todos consideraram uma praga divina ou demoníaca, e poucos se atreveram a entrar na mansão, que ficou por muitos anos fechada, até ser invadida por volta de 1600 e depois fechada novamente.
O pouco tempo de convivência de Clara com o franciscano foi o suficiente para acender uma paixão repentina e louca pela jovem sofredora. Quando o pai veio buscá-la, o religioso defendeu-a e foi por Luiz agredido. No dia seguinte invadiu a casa e foi informado por um servo que Clara estava morta. Sentiu tanta raiva que planejou matar o pai, mas não foi necessário. Uma semana depois todos estavam mortos.
No entanto, a morte de Luiz não lhe consolava. Precisava de Clara. Faria tudo para ter sua amada de volta. Contou com a única força no mundo que poderia trazê-la de volta. Pensando nisso, foi à biblioteca da ordem e consultou todos os livros ocultos que pôde. Acabou encontrando um que o marcaria para o resto da vida. 

A música parou de tocar, e Henrique parou de narrar. O silêncio tornou-se perturbador, e nossa curiosidade, unida a um medo bizarro nos manteve em silencio por mais algum tempo. Henrique olhou de um lado para outro, com uma expressão estranha. Levantou-se e começou a andar, como que buscando algo. Nenhum de nós teve coragem de perguntar o que Henrique estava fazendo.
– Aqui! – disse Henrique finalmente, quebrando o silêncio. – Eis aqui! – e volta à mesa trazendo um grosso volume. Aparentava ser um livro muito antigo, anterior à imprensa. A capa era uma obra de arte sombria, e as páginas do livro eram feitas de folhas de madeira.
Henrique botou o livro sobre a mesa, e pudemos identificar grandes letras escritas no alfabeto gótico, que na época não podíamos identificar, mas hoje sei que se trata de um livro chamado Zwang der Hölle. Todos ficamos absolutamente aterrorizados. Até que ponto isso era apenas uma brincadeira para fazer uma história de terror? Henrique planejara essa cena para nos assustar de verdade? Mas como? Chamei-o praticamente no momento que vínhamos. Não era possível que Henrique tenha planejado qualquer coisa. Definitivamente, isso não era possível.

Esse foi o livro que o jovem franciscano encontrou, e que serviria para trazer sua amada novamente. Então o franciscano pôs-se a ler todo o tomo, e descobriu diversos segredos das forças infernais, e descobriu um ritual capaz de trazer Clara novamente ao mundo dos vivos. Preparou-se então.
Ainda teve de esperar alguns dias. A lua precisava estar em posição favorável. Tudo precisava ocorrer no momento e do modo especificados no livro. Estava pronto a desafiar suas crenças pela mulher amada.
Chegara o dia fatídico, e o jovem precisava apenas da hora certa. Estava munido de materiais para o ritual macabro, além deste livro. Sabia o feitiço de cor, mas nada poderia dar errado, então trazia o livro consigo, para seguir perfeitamente as instruções. Chegara a meia noite, e pôs-se a recitar o feitiço. Leu a última palavra de invocação, e o feitiço estava acabado. Nada aconteceu.
Desapontado, já se preparava para voltar, quando algo inesperado aconteceu. Parecia um terremoto, e esse tremor que fez várias das rachaduras que se podem ver na mansão. Narrava Henrique, apontando várias ranhuras nas paredes. Alguns dos objetos da sala se moviam, como se estivessem flutuando. Talheres, pratos, castiçais e espelhos rodeavam o espaço, e nesse espaço uma forte luz surgiu, que ofuscou completamente o franciscano.
Quando a luz sumiu, pode ver um ser vestido em trapos brancos. Era Clara, assim como não era. Clara, antigamente tão bela e viva, estava pálida e morta. Não se movia, e estranhamente parecia mais morta que se ainda estivesse em cova. O franciscano olhou-a coberto de lágrimas nos olhos, e nesse momento Clara deu um passo a frente, um passo pesado, quase sem sair do lugar. O jovem, em seu desespero correu e abraçou a criatura que estava a sua frente. Os dois se olharam profundamente e nada falaram. 

Henrique parou subitamente de narrar, fechou o livro a sua frente e guardou seu toca discos na mochila. Estávamos tão surpresos que não podíamos falar nada. Quando Henrique estava pronto a ir embora, João teve coragem e perguntou:
– O que aconteceu depois?
– Isso possui alguma importância?
Nenhum de nós soube responder a pergunta. Henrique estava saindo.
– Como é que você sabe essa história com tantos detalhes? – Perguntou por fim Fred, impulsivo. Henrique apenas virou a cabeça, com olhar vazio, e ainda de costas disse sem ouvir resposta:
– Já fui franciscano – e saiu.

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