O JARDIM DENTRO DE MIM {GIROTTO BRITO}




 Como num estranho sonho, vi-me envolto em um emaranhado denso de galhos secos e folhas mortas. O luar irrompia com dificuldade por entre as árvores e o silêncio revezava com o estalar dos galhos ao sinal dos ventos amenos da primavera.
Andei cambaleante na noite, enxarcando os pés no chão que ficava mais úmido a cada passo. Os pés descalços se cortavam nas raízes, os joelhos iam ao chão, depois voltavam ao ar, e tornava a caminhar.
Mais à frente, uma clareira. Os arbustos se afastavam dando lugar a um grande jardim. Grande e belo, embora sombrio e melancólico. A lua despejava sobre a relva um brilho tristonho e as plantas, de tão secas, já não tinham cor. O silêncio pairava ferozmente sobre aquele lugar, denunciando a falta de qualquer criatura vida ao redor. Os pilares, que antes possivelmente sustentavam plantas trepadeiras, foram tomados pelo fétido musgo, e o mato esgrouvinhado sufocava as flores que outrora haviam ali. Das fendas, ervas daninhas brotavam e se espalhavam por todos os lados.
Enquanto caminhava, observando o jardim, invadia-me a inquieta sensação de já ter estado ali num outro tempo, talvez quando criança, ou numa outra vida. Imaginei aquele lugar em tempos idos, quando a grama cobria o chão lamacento e as trepadeiras cobriam as colunas exibindo as cores vivas das flores que se abriam na primavera e, pareceu-me, que havia estado ali justamente nesses tempos de beleza divinal.
De repente, meu corpo se elevou e os pés afastaram-se do chão. Uma força estranha arrastou-me lentamente para o alto e a imagem do jardim foi tomando outra forma. Do alto, de longe, vi a imagem cinzenta do jardim que sentia ter visto outrora, tomando a forma volumétrica do órgão que só do céu pude reconhecer. E, de tristeza, estremeci ao ver que as flores murchas eram, na verdade, minhas esperanças – e o jardim, meu frio e morto coração!



Baseado no poema A Garden (1917), de H. P. Lovecraft.

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HORROR NA ESCOLA {WAGNER DE LA CRUZ}



— Se apresse, menino! Vai se atrasar! [gritava Íris para o filho].

Já passava do meio-dia e Bruno ainda não estava pronto para almoçar e ir para a escola. Na verdade, ainda estava só de cuecas e metido embaixo das cobertas quando sua mãe chamou.
Na noite anterior o Telecine Cult transmitiu "O Exorcista", clássico que ele apenas ouviu falar, mas nunca havia assistido. Sempre lhe disseram que era o filme mais assustador de todos os tempos, o que despertou sua curiosidade quando viu, no final da tarde passada, que estaria em exibição.

O horário marcado era 02:25, Bruno precisou deixar o despertador ligado para não perder a hora. Assim, com a TV do quarto em volume baixo, para não atrapalhar o sono dos pais e receber um bronca, ele assistiu a obra-prima de William Friedkin sem medo, do auge dos seus nove anos. Bom, não exatamente sem medo. Ao término do filme, já passada as cinco da manhã, as cenas da possessão da garota Reagan não saiam de sua mente. Era fechar os olhos que as imagens do vômito verde, o giro da cabeça, a masturbação com o crucifixo (que ele sequer entendeu bem) ou a levitação teimavam em surgir. Claro que ninguém saberia disto, já que seria humilhante para um homem admitir que ficou com medo de um filmezinho bobo, assim pensava.

O sono só chegou muito tempo depois do Sol raiar e iluminar parcialmente o quarto do garoto. Ainda que tivesse medo de que, a qualquer instante, sua cama fosse começar a balançar, sentiu-se mais seguro sendo dia e os pais estarem acordados. Quando escutou o pai ligar o chuveiro caiu no sono quase instantaneamente. Não teve pesadelos. Na verdade, nem teve certeza se dormiu, tinha a impressão de num instante fechar os olhos e no outro ser despertado pela mãe.

Preguiçosamente, vestiu a primeira camiseta que sua mão tocou e dirigiu-se para o banheiro, semi-acordado. Lavou o rosto, escovou os dentes, urinou abundantemente (não o fazia há mais de dez horas) e tomou um banho rápido, quase frio, mais para despertar do que para higienizar-se. Após fechar o chuveiro e apertar a toalha contra os olhos ao secar-se, já se sentia mais disposto.

O cheiro da comida da mãe era delicioso. O aroma do feijão bem temperado atiçou o estômago de Bruno logo que ele saiu do quarto, já vestido para o colégio. Tinha fome. E agradecia a Deus pelo cardápio não trazer sopa de ervilhas.

* * *

Bruno estava no segundo ano. Estudava na Escola Municipal de Ensino Fundamental Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, em Novo Hamburgo, no bairro Redentora. Era um dia bonito de outubro, em plena primavera, com o Sol brilhando e uma leve brisa impedindo que o calor insuportável se instalasse.

Exatamente para aproveitar a tarde, a professora resolvera antecipar a Educação Física, que estava programada apenas para o próximo dia.

— Não é dia de ficarmos trancados na sala! [Dizia animadamente Fernanda, a mestra, que na verdade era uma estagiária e não tinha idade nem para ser mãe dos seus alunos].

Bruno gostava de futebol, mas, após dormir pouco e ter comido rapidamente no almoço, não se sentia muito animado para jogar. Mesmo assim, atendendo a pedidos dos seus colegas e, principalmente, porque Marianne, a menina que ele gostava, estava olhando, decidiu jogar um pouco. Bem pouco, na verdade, já que, cinco minutos após entrar na quadra, uma bola afortunadamente acertou seu nariz, após um colega do time adversário chutá-la forte e sem direção. Bruno caiu de costas, enquanto enxergava raios de todas as cores e formas graças a bolada. Fernanda chegou a correr para acudí-lo, mas as risadas dos colegas, juntamente com a vergonha de ter feito papel de bobo à frente da mulher da sua vida trataram de reanimá-lo imediatamente.

* * *

Nuvens começavam a se formar, escondendo o Sol. A brisa já começava a tomar forma de vento e, por precaução, Fernanda decidiu que era melhor retornarem à classe.

Mais cansado ainda, após tentar exibir-se para Marianne e ser nocauteado, passando o resto da aula emburrado, Bruno sentou-se pesadamente em seu lugar, no fundo, próximo à janela, e se pôs a conversar com Jean, seu colega e melhor amigo.

— E aí? Viu o Exorcista ontem? [perguntava Bruno]

— Pior que não. Meus pais não me deixaram ver e…

— Ah! Não mente, cagão!

— Sério, cara! Eu ia olhar, sim!

— Aham, sei… Tava é com medinho, seu viado! Eu olhei todo e…

— Meninos… [interrompia a professora] Abram seus livros, agora é hora do conto.

— Viadinho… [disse Bruno para Jean, quase inaudível, com um sorriso de canto de boca]

A hora do conto, para Bruno, era tédio puro. Nunca gostou muito de ler, nem mesmo quadrinhos. Se ler já era chato, dizia, imagina alguém ler para você! E a história de hoje era João e Maria, um conto que ele já ouvira umas quinhentas vezes e que achava muito infantil. Mesmo assim, resolveu acompanhar a professora Fernanda no seu Livro de Contos, um calhamaço com cinquenta histórias que os alunos receberam no início do ano letivo.

A chuva começava a cair, de imediato Bruno bocejou, mas seguiu acompanhando a fábula. Quando João e Maria encontraram a casa de doces na floresta, Bruno embaralhou a vista e quase não distinguiu as letras do texto. Quando João ofereceu um graveto para a Bruxa tocar, no lugar de seu dedinho, Bruno cochilou sobre o livro.

Acordou de sobressalto, com o barulho do granizo batendo no vidro da janela. De olhos arregalados, percebeu que estava sozinho na sala, que estava com muito frio e que já anoitecera…

* * *

Quanto saiu do banho e vestiu-se para ir à escola, usava apenas uma calça jeans e uma camiseta gola polo, e saíra reclamando do calor.

— Leva uma blusa, pois esfria de tarde! [disse-lhe a mãe].

Bruno não lhe deu ouvidos, como era de praxe. Desta vez, porém, arrependia-se. O termômetro da sala, que a tarde registrava 25°, agora marcava 5°. Um frio atípico para a estação.

Com os braços cruzados sobre o abdômem, caminhou até a porta, rezando para que não estivesse trancada. Um arrepio correu pelo pescoço quando tocou a maçaneta, sentindo todos os pêlos do corpo se eriçarem, mas, felizmente, estava destrancada.

O frio fora da sala era estranhamente menos intenso. Porém, o corredor estava às escuras, bem como toda a escola. Pelo que o garoto lembrava, o interruptor se localizava em uma pilastra próxima à escada, há uns cinquenta passos de onde ele estava, segundo suas contas. Não queria passar a noite alí, mas, principalmente, não queria permanecer no escuro.

Aguardou seus olhos acostumarem com a penumbra e, guiando-se pela parede, saiu para o corredor. Mentalmente ia contando os passos, quase não respirando de tensão, ouvindo o barulho do granizo no telhado.

Vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove…. O frio retornava com força. Agora ele podia ver nuvens de ar a cada respirada. Quase pensou em voltar correndo para a sala de aula, mas agora estava mais perto do interruptor, então decidiu acelerar o passo, quase correr.

Quarenta, quarenta e um, quaren… seus pés pisaram em algo molhado e viscoso. Mal teve tempo de registrar isto, pois vislumbrou a pilastra quase ao alcance das mãos. Deixando o apoio da parede, Bruno correu onde se lembrava que ficava a chave de energia. Seus dedos tocaram imediatamente as teclas e fez-se a luz!

Com o corredor perfeitamente iluminado, Bruno teve um hiato de cinco segundos de uma tranquilidade razoável, até registrar uma poça de sangue a menos de dez metros de onde ele estava. Seus olhos se voltaram primeiro para as pegadas rubras que seus tênis deixaram pelo caminho, e em seguida para o teto, sobre a poça, de onde pendia o corpo do senhor Mauro, o zelador da escola. Estava nu, pendurado pelos pés através de uma corda fixada em um suporte de uma das luminárias. Uma perfuração no centro do peito e o rosto completamente vermelho, com um semblante de sofrimento, davam a ideia de que sangrara até morrer.

As pernas de Bruno fraquejaram, seu estômago se contorceu, querendo expulsar o almoço. Inclinou-se sob o parapeito e, segurando-se nas barras, vomitou. O som ecoava na escola vazia. Pálido, ainda tremendo, contornou a poça e correu para o andar de baixo.

* * *

O térreo estava iluminado somente pelas luzes do segundo andar. O hall de entrada da escola tinha uma porta dupla de um vidro transparente, dando direto para o pátio principal. Bruno correu direto para lá, e forçou uma das folhas. Sem sucesso. A porta, além de trancada a chave, possuia uma corrente unindo os puxadores, do lado de fora, com aros grossos, e um cadeado.

Desesperado, jogou-se contra o vidro, que devolveu o mesmo impacto, atirando-lhe ao chão. Um trovão ribombou no pátio, sobre uma das traves de madeira da quadra de futebol. O fogo imediatamente começou a consumir as goleiras. Com dificuldade, Bruno levantou-se, apoiando o corpo nos pesados vasos de planta que ali haviam. Devido ao breu da noite, não havia percebido algo nas traves que, agora, devido ao fogo, podia ver melhor: Professora Fernanda, sem roupas, pendurada pelo pescoço em uma corda no meio do travessão e com as mãos amarradas às costas tremulava ao ritmo do vento.

Bruno ficou em estado de choque. Estático, permaneceu olhando fixamente para o pátio, com os olhos arregalados e a boca aberta. Só saiu do transe quando o fogo consumiu a corda e Fernanda, com os cabelos em chamas, caiu no chão de concreto. Ele precisava sair dalí, tinha de achar uma saída, não queria ficar preso naquela escola.

Sem ação, lembrou-se dos banheiros, que ficavam bem próximos da entrada. Cada compartimento possuia uma janelinha. Ele teria de tentar. Disparou na direção dos sanitários mesmo quase sem visibilidade, com a adrenalina em alta. Nem percebia que chorava até as lágrimas salgadas chegarem à sua boca.

* * *

Meio trôpego, Bruno deu com o nariz na porta do banheiro masculino. Testara a maçaneta insistentemente, quase a arrancando da fechadura, mas nada acontecia. Frustrado, escostou a testa na madeira e começou a chorar copiosamente, deixando-se deslizar até o chão enquanto soluçava.

Foi em meio às lágrimas que, olhando para a escada que conduzia ao segundo andar, vagamente iluminada, um movimento chamou-lhe a atenção: envolto em algo que parecia uma toga com capuz, um Ser praticamente deslizava rumo ao andar de baixo através dos degraus. Lentamente, o Ser virou a cabeça na direção de Bruno. Um par de olhos estrábicos, de um violeta vivo, fitaram o garoto. Da fenda negra abaixo do nariz, bem evidente devido a pele pálida, um largo sorriso com dentes disformes e amarelados surgiu. A coisa apontou um dedo para Bruno:

— Você… [a voz era quase um ronronado de um gato] Quero você…

A bexiga do menino soltou-se nesta hora. Nem percebeu o mijo quente escorrer por entre as pernas. A sua mente de garoto não havia lhe sugerido tentar o banheiro feminino. Era algo errado, proibido. Mas Bruno não mais importava-se com bons modos e, antes da criatura entrar na curva da escadaria, testou a porta do sanitário das meninas. Quase gargalhou ao achá-la destrancada.

Encostou-a sabendo ser inútil, já que não tinha a chave, mas não se preocupava com isto. Precisava ser rápido, podia sentir o farfalhar da toga nos degraus da escada há menos de trinta metros. Aliviou-se ao achar a tomada e ter o cômodo inteiramente iluminado.

O banheiro feminino tinha três compartimentos, e, instintivamente, dirigiu-se ao central. Ao abrir a porta sentiu uma nova onda de horror: Jean estava sentado, com as calças abaixadas. O colega de Bruno fôra decapitado, e só foi reconhecido pelo amigo graças a camiseta da banda Oasis, que usava frequentemente, agora ensopada de sangue. Tornando a cena ainda mais bizarra, Jean segurava em suas mãos, na frente da virilha, a cabeça de Marianne, que mantinha a boca escancarada em um eterno O e os olhos abertos sem vida e sem íris.

Pela primeira vez na noite Bruno gritou, e cambaleou de costas até encostar na parede, afastando-se daquele cenário aterrador. O ar parecia impregnado com o cheiro pesado de sangue. Um gosto de bile subiu à garganta do rapaz quando escutou passos vindo do exterior do banheiro.

Impelido pelo medo, entrou no compartimento central, e puxou o amigo morto para o lado, a fim de subir no vaso. Ao deslocar Jean, o defunto derrubou a cabeça de Marianne. O barulho foi semelhante ao que se ouve ao atirar um peixe sobre uma tábua de madeira. A janela abriu sem dificuldade no exato instante em que a porta rangia ao ser aberta lentamente. Bruno subiu na caixa descarga, escorregadia devido ao sangue, e içou-se pela pequena abertura acima. Em três segundos estava do lado de fora, estatelado na relva, de costas para cima. Virou-se a tempo de ver o rosto pálido do Ser na janelinha, ainda a lhe sorrir.

A chuva era fria, as roupas estavam empapadas, Bruno tremia e batia queixo. Levantou-se e caminhou em direção ao portão da escola. Um cheiro de carne de porco assada chegou ao seu nariz ao passar próximo do corpo fumegante da professora. Ela havia caído de lado, e não era mais do que um esqueleto envolto em pele negra ressecada, mas com os olhos estranhamente vivos a fitar o garoto.

O granizo castigava-lhe o corpo franzino. Estava exausto, machucado pela queda, chocado com tudo que havia passado, mas resistia à entrega bravamente. Precisava sair daquele inferno e buscar ajuda. Estava a menos de dez metros do portão quando uma pedra de gelo do tamanho de uma bola de pingue-pongue o acertou no supercílio, o derrubando de joelhos.

Com a visão turva, levou uma das mãos ao machucado e se assustou quando as pontas dos dedos se mancharam de sangue. Do SEU sangue. Apoiando um braço no solo, levantou-se novamente e deu dois passos até que uma nova pedra de gelo, desta vez quase do tamanho do um punho fechado, atingiu-o na face, jogando-o no chão lamacento. Um gosto ferroso de sangue inundou sua boca enquanto a chuva de granizo ganhava força, judiando-o por inteiro.

Mesmo no frio sentia o corpo arder nos locais em que era atingido. Num ato de desespero levou as mãos ao rosto para se proteger. Parecia que todo o granizo do mundo havia o escolhido para alvo. Ao virar-se de barriga para baixo instintivamente, a fim de proteger os órgãos vitais, uma última pedra atingiu-o na nuca. Bruno perdeu os sentidos em meio a tempestade, enquanto uma poça de sangue aquoso formava-se ao redor de seu corpo.

* * *

Um barulho contínuo trouxe-o de volta. Estava deitado em uma cama branca, num quarto branco, com uma pessoa de branco à sua frente. Tinha dificuldade para abrir os olhos, que estavam bem inchados, mas, ao vislumbrar a mãe sentada na poltrona a seu lado, quase fez o globo pular da cavidade.

A mãe foi até ele e o abraçou levemente enquanto chorava silenciosamente, evitando forçá-lo muito.

— Eu… [Dizia Bruno, quase sussurrando] eu tô vivo? Mãe?

— Sim, filho! Sim! [Íris começava a chorar mais alto] Deus é bom!

— Mas… mas como me acharam?

A mãe olhou para o doutor, que lhe devolveu o olhar, meio embascado, piscando através dos óculos de lentes esmaecidas.

— A diretora ligou, filho. Você bateu com a cabeça na quadra jogando bola, lembra?

— Eu? Quando?

— Há dois dias, Bruno. [Respondeu o médico, por baixo da máscara cirúrgica] Desde então você apenas dormiu, até agora.

A cabeça de Bruno voltou a doer, sentiu o mundo girando. Sua mãe segurava seu pulso.

— Tudo bem. [continuou o doutor] É uma reação natural de quem sofre algum trauma no crânio. É melhor deixá-lo descansar mais um pouco, dona Íris.

A mãe acomodou-o no travesseiro. Um sorriso brotou no rosto de Bruno. Agora percebia que estava nu, provavelmente devia ter urinado nas roupas e na cama e foi preciso trocá-lo, mas era uma humilhação que poderia suportar.

— O que foi, filho? Por que o riso?

— Nada não mãe, um negócio que sonhei, só isso.

— Deve ter sido um sonho e tanto. [Disse o médico] Você dormiu por quase dois dias inteiros. Dormindo você se recuperaria mais rápido.

Bruno viu o médico introduzir uma seringa no frasco de soro que estava conectado ao seu corpo.

— O que é isto, doutor?! [perguntou o rapaz]

— Ah. É um negocinho para você dormir mais um pouco. Ainda não está bem, bem. Mais um dia de recuperação e já vai poder voltar até a namorar. [o doutor piscou para Íris, e um sorriso de alívio surgiu no rosto da mãe, em meio às lágrimas incessantes]

Íris abraçou o filho uma vez mais. Sua testa já não estava febril, o que aliviou ainda mais a mulher.

— Eu vou ao banheiro lavar os olhos filho. Já, já eu volto.

Após um beijo no rosto, a mãe de Bruno deixou-o só com o médico. O menino já sentia a sonolência lhe dominar enquanto seus olhos percorriam o quarto de hospital. Um instante mais tarde, seu olhar parou em seus tênis, colocados sobre a roupa dobrada que usava quando foi a escola na última vez, em cima de uma cadeira. Na sola, Bruno notou manchas vermelhas, como se ele houvesse pisoteado em beterrabas cozidas.

Aflito, mas sem forças, olhou para o doutor, parado aos pés da sua cama, com uma segunda ampola nas mâos. O médico baixou a máscara e sorriu, exibindo seus dentes amarelados e podres, e aproximou-se de Bruno. Através dos óculos, o garoto viu com incredulidade e terror os olhos vesgos cor de violeta. Então falou, abaixando o rosto próximo o bastante para que seu paciente sentisse o hálito putrefato:

— Bons sonhos, menino. Descanse em paz.


Depois disto, o mundo de Bruno foi tomado pelas trevas.


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Wagner De La Cruz (Tramandaí, 03/08/1988) é um escritor e compositor gaúcho. Inicialmente autor de contos eróticos, publicou seu primeiro romance, "A Defensora", um drama político, em 2015. Em 2016 aventurou-se no mundo do terror com o conto "Horror na Escola". É casado e vive em Imbé, famosa praia do Rio Grande do Sul.

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O LIVRO AMALDIÇOADO DE EDGAR ALLAN POE {ELIAS ABNER}





Terça-feira, 6h00.
Não queria levantar naquela manhã. Se pudesse passaria o dia inteiro na cama. O despertador tocou duas vezes seguidas antes que criasse coragem e resolvesse levantar.
Passos arrastados afastam roupas e meias do caminho. A água fria do chuveiro dói na pele como espinhos pontiagudos. No espelho, a imagem de uma mulher velha. Imensas olheiras atestam mais uma noite sem dormir. Já eram várias naquela semana.
Não passou batom, apenas penteou os cabelos com os dedos e os amarrou com um elástico. Foi trabalhar.
Trabalhar, força do hábito. Naquele dia, e nos tantos anteriores, não consideraria chamar aquilo de trabalho, ou, se considerasse, na certa se envergonharia. Nunca sentira tanta vergonha de exercer a profissão que amara desde sempre.
Sentada atrás da escrivaninha, limita-se a corrigir, muito vagamente, trabalhos de concordância verbo-nominal passados na última semana e que cairiam na prova dali há pouco mais de um mês. Os alunos, que há algum tempo vinham notando a ausência da professora, aos poucos vão saindo da sala, um por um, sem que ela percebesse – ou sem que quisesse perceber. Quando ela se dá conta, a sala está vazia, silenciosa, apenas o ventilador do teto produzindo um som leve de peças gastas pela ferrugem do tempo. Fica um tempo olhando para o vazio da sala. E do vazio, nota uma penumbra se formando nos cantos, como uma sombra disforme se expandido. Sussurros baixinhos ecoam pelas paredes... Sente uma presença. Olha para o fundo da sala. Vê um objeto preto em cima de uma carteira. Estreita os olhos. O objeto se mexe e ela consegue enxergar que era um gato. Ele está de costas, parecia alheio àquilo tudo, a cauda serpenteando no ar. Mas, como se se percebesse descoberto, gira a cabeça em sua direção. No lugar onde ficava o olho esquerdo, apenas uma órbita vazia, sinistra; do outro lado, um olho de um amarelo forte a encarava. O gato fica assim por alguns instantes, parado, avaliando. Então eriça os pelos das costas, e como se estivesse com muita – muita! – raiva arreganha os dentes ferozmente e salta em sua direção.
Acordou com a sirene anunciando o fim da última aula. 11h45.
No banheiro privativo dos professores, fuma um cigarro escondida. Não ousa olhar para o espelho, temendo que o reflexo mostre mais que a sua imagem cansada...
Alguns amigos próximos haviam questionado o que estaria acontecendo. Estaria doente? Ela sempre desconversava. Cansaço, dizia apenas. Fazia algumas semanas estava assim, cansada, um esgotamento mais que físico. Era como se a alma estivesse esgotada... Pediram que fosse consultar um médico. Recusara. Precisava ficar em casa, respondia. Terminar de ler um livro...

* * *


  Três semanas atrás

Aquele dia começara como qualquer outro, nada de excepcional. Acordou às 6, como sempre. Trabalhou até o meio dia. À tarde, aulas de boxe na academia. Depois pegou o carro e decidiu passar numa grande livraria que acabara de ser inaugurada no Centro. Era uma leitora voraz, tinha verdadeira compulsão por livros. Mas havia tantos em casa, presentes do último natal, coisa de algumas semanas, que ainda estavam no plástico, esperando... Não tinha importância. Precisava de livros. Tê-los à mão era suficiente... Inebriava-se com o cheiro do papel, com o som das páginas viradas. Considerava um livro quase uma Entidade do Sagrado. Dobrar as folhas, marca-las?, considerava uma afronta. Riscá-lo, então? Sacrilégio! 
Estacionou o carro e entrou na livraria, três andares com os mais modernos lançamentos literários dividindo espaço com Cd’s e DVD’s. Vasculhou tudo, mas – o que parecia soar quase impossível – não encontrou nada que lhe agradasse. Saiu. Do outro lado da rua viu um pequeno sebo. Nunca o notara ali, quase escondido entre um prédio de advocacia e uma farmácia. Atravessou a rua e entrou. Precisava de livros. Não necessariamente novos. Na realidade, sempre gostara dos de segunda mão. Dizia haver certa magia em manusear um livro usado, assim, gasto. Era como se pudesse sentir o que outros leitores sentiram, como se isso, de certa forma, os tornassem íntimos. 
O atendente, um rapaz jovem, de barbicha e camisa do Pink Floyd, levantou os olhos de uma revista em quadrinhos que lia e deu um meio sorriso. Ela encaminhou-se pelos corredores apertados e um tanto bagunçados. Os livros pareciam ter sido amontoados de qualquer forma, sem seguir um padrão ou critério literário. Cada vez que dobrava um corredor novo o cheiro de mofo era sufocante, como se aquilo ali não fosse limpo há anos! Passou em uma prateleira mais de uma vez e, quando estava desistindo, viu a edição de luxo – em capa dura vermelha de bordas douradas – de um livro que parecia muito antigo. Uma bíblia estava por cima dele. Puxou-o de baixo. E então sentiu um forte arrepio na nuca, um vento derrubou alguns livros no chão. Ficou assustada e olhou em direção à saída, imaginando que o vento entrara pela porta aberta.
Histórias Extraordinárias: Edgar Allan Poe, lê o título na capa já muito gasta.
Folheia o livro. Estava todo – completamente – rabiscado. De imediato sentiu repulsa pelas suas condições físicas, um verdadeiro horror estava diante dos seus olhos. Chamou alguns palavrões e amaldiçoou quem quer que tenha feito aquilo! Apesar disso sentiu uma forte atração pelo livro, quase uma conexão imediata. Não saberia explicar. Decidiu comprá-lo. Assim, pelo menos, outros leitores não teriam a mesma sensação ao se deparar com aquela coisa.
O jovem atendente achou estranho, pois o livro não contava no registro. Era provável que o pai – que estava começando a informatizar – ainda não o tivesse registrado, mas nem no livro de registro estava contando. Era estranho. Mesmo assim vendeu.  

* * *

            Terça-feira, 13h00.
Depois de colocar o carro na garagem, entra em casa e tranca a porta. Larga a bolsa com materiais escolares num canto; os sapatos ficam pelo caminho enquanto caminha. As cortinas que estavam fechadas permanecem fechadas. Um único ponto de claridade vinha do balancim do banheiro social. Fecha a porta do banheiro. Penumbra total. E mofo, um cheiro forte de pano velho que há muito não era lavado. Senta-se na poltrona que, em outra época, usava todas as tardes para tomar café e ler seus livros preferidos. Na mesinha ao lado, algumas xícaras amontoadas ainda conservam um líquido viscoso do que antes fora café. Moscas voam, pousam. Numa mancha preta de café derramado, formigas trabalham incansavelmente tentando sugar o açúcar. Não notara quando ficara assim, tão desleixada.
Quer um cigarro. A última carteira está vazia. Procura no cinzeiro cheio. Entre tantos tocos encontra um cigarro pela metade, quase inteiro. Acende-o. Traga. Olhos fechados. Fumaça para o teto.
Abre os olhos.
Num canto da estante, está o livro.
Não quer pegá-lo. Não quer lê-lo. Não quer!
Os olhos vacilam. Quer chorar.
Luta ferozmente contra a compulsão que faz as mãos abrirem e fecharem furiosamente, como se estivesse em abstinência de alguma droga. E está. Ou melhor, está tentando se abster. Mas sabe, sabe, que não consegue. Por mais que lute, se esforce... não consegue. O corpo para de tremer, as mãos se aquietam. Abre os olhos. Olha para o livro. Ele sussurra.
Pega-o.

* * *

No dia em que comprara o livro acontecera algo estranho. 
Sentou-se à poltrona com uma xícara de café, alguns biscoitos integrais e um livro de Virginia Woolf à mão. (O livro de Poe ficara na sacola.) Antes de começar a ler o livro, o telefone toca. Foi atender. Ao voltar, deparou-se com o livro de Poe aberto na mesinha, e nem sinal do outro livro. Achou apenas estranho. Podia jurar que tinha pegado outro livro! Ou não?
Tomou o livro nas mãos, observando cada detalhe. Parecia uma obra bastante... singular. Em tantos anos de leitora voraz nunca havia se deparado com um livro tão bem acabado, apesar de velho, parecia que tinha sido feito sob medida, com acabamento à mão. Foi olhar a edição. Não havia. Teria sido feito à mão? As páginas todas estavam rabiscadas, como se fosse um diário, ou o caderno de algum adolescente rebelde. Perguntas soltas, sem nexo; outras direcionadas, como se a pergunta anterior fosse respondida e levasse à seguinte. E assim as perguntas/respostas iam enchendo os espaços vazios de cada folha, cada margem, às vezes dentro do texto. Ficou imaginado quem poderia ter feito aquilo, parecia um verdadeiro sacrilégio. Mas o que lhe chamara a atenção era o fato de que havia notado tantos rabiscos assim....
 Na página em que se iniciava O gato preto havia uma frase riscada, mas a pessoa que a escrevera (ou outra pessoa) riscara com tanta força que a ponta da caneta atravessara duas outras páginas. Era impossível saber o que havia ali em baixo; mas notara que, do riscado, a tinta azul escorrera pela página como se fosse sangue saindo de um corte profundo...
Fechou o livro de súbito. Já passava das nove horas da noite e nem notara. Mesmo fechado, quase conseguia ler as frases riscadas no livro, como vozes em sussurros.

* * *

O primeiro pesadelo foi por volta das três da madrugada.
Acordara com um grito de socorro. Era uma mulher, mas não lembra onde estava, nem quem seria, apenas que estava prestes a morrer e que gritava por ajuda. Permaneceu deitada na cama, a respiração acelerada, e um medo, um medo profundo. Parecia ouvir sussurros ao longe, como vozes abafadas por paredes, como se fossem de outras casas, choros. Seriam mesmo? O corpo todo estava arrepiado. As mãos tremiam. Os sussurros agora parecem mais forte, como se estivessem mais perto. Pareciam dezenas de vozes diferentes, homens e mulheres, todos lamentando, chorando. De onde estariam vindo?
Apesar do medo, resolveu que ia verificar.
Acendeu a lanterna do celular. Tentou sair da cama sem fazer barulho. A mão que carregava o celular tremia, o corpo todo tremia, as pernas vacilavam. A porta do quarto rangeu quando foi aberta, e as vozes silenciaram, como se estivessem esperando alguma coisa; e logo em seguida retornaram; mais fortes, mais perto. Vinham da sala. A lanterna do celular iluminava objetos soltos pelo caminho criando sombras distorcidas, fantasmagóricas. A sala estava vazia; mas as vozes continuavam. Foi se aproximando da poltrona de onde as vozes pareciam vir. Em cima da mesinha estava apenas o livro. As vozes, os lamentos e sussurros, pareciam vir dele!
Levou a mão à boca para evitar o grito. Ficou paralisada por alguns minutos, sem qualquer reação. Depois criou coragem e abriu lentamente o livro. Os rascunhos mudavam de lugar. Iam aparecendo no livro de acordo com as vozes e os sussurros; uns apagavam e logo outros surgiam, manchas de sangue também pareciam surgir do meio das folhas...
Deu um passo para trás. Foi quando sentiu alguma coisa se enroscando nos seus pés, alguma coisa peluda. O coração disparou. Ficou imóvel, só as pernas tremendo incontrolavelmente. Então virou vagarosamente a lanterna do celular para a coisa. Deparou-se com um enorme gato preto, mas estava tão magro que os ossos do corpo saltavam. Ele olhava fixamente em sua direção. E na luz da lanterna, uma órbita vazia a encarava; a outra exibia um olho amarelado, como uma enorme brasa. O gato mostrou os dentes afiadíssimos e foi eriçando os pelos da costa. De súbito pulou em direção à luz da lanterna.

Acordou com o celular despertando. 6h00.

* * *

Não sabe explicar como passou aquele mês. Sente como se não tivesse realmente vivido aqueles dias, ou como se tivesse tido apenas uma sobrevida, como se vivesse dentro de um eterno pesadelo.
Os amigos notaram de imediato a diferença. Largara a vida social, não saía mais, não se cuidava, largara as aulas de boxe que tanto amava, deixara até de ir nas rodas de literatura que ela mesma havia incentivado na escola. Parece que está morta, diziam os amigos, não estamos te reconhecendo... Ela dizia estar apenas cansada, muita coisa pra fazer. Na realidade, tinha muita coisa pra ler.
Há semanas notara que os rascunhos do livro pareciam não ter fim, e que ela nunca conseguiria terminar de ler tudo. Todos os dias eles mudavam, e às vezes era se como falassem entre si, como se estivessem conversando. Perguntava-se quem eram aquelas pessoas, ou que, de fato, era aquilo. Quando deu por si, estava com uma caneta na mão, escrevendo alucinadamente nas páginas do livro. Passava horas inteiras rabiscando. Rabiscava perguntas, e os outros rabiscos sussurravam respostas. As conversas duravam horas, às vezes dias inteiros. Ouviu que todas aquelas pessoas haviam morrido, ou melhor, se matado; e todas, no final, diziam a mesma coisa:
Mate-se!
* * *

Terça-feira, alguma hora da madrugada.
Mate-se...
Por várias vezes pensou nisso. Se jogar do viaduto, tomar veneno, cortar os pulsos. Naquela madrugada, na mais longa ideia sobre o assunto, pendurou uma forca no quarto. Subiu na cama. Experimentou colocar o laço no pescoço. Sentiu uma sensação estranha. Olhou-se no espelho do guarda-roupa. Viu seu reflexo enforcado. Os membros roxos, o rosto em agonia de uma respiração que não viera. No reflexo, os ponteiros do relógio na parede do outro lado corriam rapidamente, como se estivessem descontrolados. O tempo parecia descontrolado. Dia e noite alternavam-se em questão de segundos. Dias, semanas, meses e anos passaram rapidamente. O corpo apodreceu antes que fosse achado.
De súbito tirou o laço do pescoço. O corpo todo tremia.
Tomou a decisão que deveria ter tomado há muito tempo: ia devolver o livro.

* * *

            Algum dia, alguma hora.
Na garagem o carro criava poeira, os pneus secos. Não precisava de carro. Precisava andar. Atravessou a cidade a pé. Foi até à livraria.  Não percebera que ela havia mudado tanto em tão pouco tempo. O atendente, um senhor de meia idade com uma farta barba e uma camisa do Pink Floyd, nem ligou quando a porta abriu e ela entrou. Também não ligou quando ela perguntou se poderia devolver o livro, nem queria saber do dinheiro, só queria se livrar daquela coisa. Ele levantou os olhos, e como se olhasse vagamente para o nada, apenas suspirou.
Com raiva da total falta de receptividade do atendente, foi procurar um local para deixar o livro. Nos fundos da loja, na mesma estante de onde o tirara, encontrou o mesmo lugar. Estava vazio. Naquele momento lhe veio a ideia que deveria ter tido antes: deveria tê-lo queimado, ao invés de devolvê-lo. Queimado, talvez aquele pesadelo, ou maldição, não sabia, acabasse. Mas talvez fosse isso mesmo: pesadelo. Fruto da sua imaginação. Não achava que aquelas vozes fossem reais. Estaria ficando maluca? Não, essa coisa de livro amaldiçoado não existia, era coisa da sua cabeça. Queimar um livro, assim, clássico como aquele, que passara de geração em geração! Seria um sacrilégio. Fizera bem em não tê-lo queimado. O devolveu ao seu lugar de antes. Foi olhar outros livros, talvez um sobre religião. Uma bíblia, quem sabe?
As possibilidades eram tantas...
Sorriu e olhou em volta, as centenas de livros, as gerações ali, quase conseguia sentir o cheiro de cada dono, cada época... Seguia pelos corredores, os dedos passando pelas lombadas dos livros como se, de repente, descobrisse-se liberta. Mas então o sorriso morreu nos lábios quando viu um jovem rapaz, de aparência um tanto gótica, ir em direção à estante em que o livro de Poe estava. Ficou olhando para ter certeza de que ele não iria nem passar perto daquele livro. Mas ele foi justamente em sua direção, como se estivesse atraído por ele. Ela arregalou os olhos. Aquilo não poderia acontecer.
— Não! — gritou mas o rapaz não ouviu, e foi em direção ao livro.
Assim que ele tirou o livro da prateleira ela tentou pegá-lo de volta. Mas, como se tocasse o ar, sua mão passou direto, não chegou a tocar o livro, muito menos o rapaz. Ele porém, sentiu os cabelos do corpo arrepiarem. Fez o sinal da cruz e, olhando assustado para todos os lados sem ver ninguém, levantou-se, colocou o livro debaixo do braço e foi ao caixa pagar.



[A imagem original veio de: http://www.duofox.com.br/o-gato-preto-mitologia-e-misticismo-na-obra-de-edgar-allan-poe/]


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MANSÃO GÓTICA {RAPHAEL SOARES}


Gravura de Gustave Doré

Nunca compreendi direito o que acontecera naquele dia. Parecia um dia comum, quando eu e mais três amigos resolvemos nos divertir um pouco contando histórias de terror, como sempre fazíamos nas férias. Dessa vez eu escolhera o lugar, uma mansão gótica que ficava próximo da casa de um amigo, recentemente conhecido, Henrique. Henrique foi uma das pessoas mais cultas que conheci na minha vida; possuía conhecimentos enciclopédicos, particularmente sobre a história nacional, além de fascinante memória, capaz de armazenar quantidades incríveis de informações como datas e nomes. Pensei: Henrique decerto conhece histórias assustadoras, portanto, seria bom levá-lo junto para nos contar assustadoras histórias daquela mansão, que por si só aparenta ter saído de uma novela de Hoffmann. Então chamei-o e rumamos nós cinco para a mansão: João, Arthur, Fred, Henrique e eu.
João provavelmente era o melhor narrador de nós. Era um grande leitor de histórias de terror e ficção científica. Conhecia e sabia discutir sobre praticamente todos os assuntos, no entanto, suas opiniões eram bastante extremas, e muitas vezes discutia mesmo estando absolutamente e claramente errado. Era considerado “a cabeça” do grupo, e provavelmente por seu comportamento arredio, beirando a antipatia; éramos seus únicos amigos.
Arthur e Fred eram irmãos; chamávamos Fred pela abreviação porque não gostava do próprio nome. Não sei porque ambos gostavam da minha companhia e da de João. Eram muito sociáveis, e bastante fortes, além de excelentes esportistas. Talvez gostavam da ideia de proteger os mais fracos. Arthur era burro como uma porta, no entanto, dentre os dois era o que mais gostava de nossas narrativas.
Nunca mais os vi. Se não me falha a memória aquela foi a última vez que contamos histórias de terror uns para os outros. Não sei o que é deles, nem se estão vivos ou onde estão.

Lembro que quando chegamos em frente à mansão procuramos um meio de entrar, já que os portões estavam trancados e pareciam muito resistentes. Nesse momento Henrique disse:
– Venham por aqui – e seguiu para a esquerda da construção e mostrou uma pequena entrada, com os vidros quebrados.
– Como conheces esse caminho? – perguntei.
Henrique nada disse. Sempre foi muito misterioso, e nunca soube praticamente nada sobre sua vida.

A mansão era muito interessante. Sem dúvidas qualquer história de terror seria vinte vezes mais assustadora lá. Todos pareciam mudados. João parecia bastante assustado, enquanto Arthur e Fred pareciam bastante empolgados. Henrique havia mudado completamente desde que entramos na construção, e isso me assustou bastante, mas pensei que era algum plano para construir um “clima” para a sua narrativa.
Sentamos em volta de uma antiga mesa, que me fazia lembrar de alguma forma os cavaleiros de Arthur. Interessante termos um Arthur no grupo, no entanto, sabíamos que não contaria nenhuma história. João como “presidente” do grupo decide indicar, por pura pirraça, Arthur para iniciar as narrativas.
– Vamos Arthur! Você primeiro. Comece contando alguma história assustadora.
– Obrigado. Fico por último.
Sabíamos que nada falaria. Arthur nunca narrava. Talvez não soubesse nenhuma história assustadora, exceto as que contávamos, ou se envergonhava de contar uma história, com medo de não ser tão boa ou de não saber contá-la. Como anfitrião, já que escolhi o lugar, pedi para começar.
Narrei a história de um culto ancestral demoníaco, e de uma temível maldição. Após minha história, Fred nos narrou uma história apocalíptica, que mais aparentava aventura que terror propriamente dito. Como sabem, nunca fui bom em narrar histórias, mas se havia alguém pior que eu era Fred. Talvez Arthur fosse ainda pior que nós dois.
– Agora é a minha vez, contarei uma história que nunca irão esquecer. – dizia João, e aguardávamos ansiosamente esse momento. De todos nós era o melhor narrador, e muitas vezes nos assustava muito. Na maioria das vezes, nossa diversão consistia sempre em ouvir João narrar, por isso sempre ficava ao final. Olhei para Henrique, que parecia entediado mas que provavelmente adoraria a história que João contaria; nutria esperanças de que Henrique narraria uma história ainda mais assustadora que a de João.
Não sei se era o lugar ou a história, mas quanto mais João avançava a narrativa mais assustados eu, Arthur e Fred ficávamos. A história era simples, mas o fato de envolver crianças e forças desconhecidas dava um aspecto sinistro. Ainda mais com a habilidade narrativa incomum de João. Uma verdadeira história se faz com o estilo, não com o que é narrado.
João nos contava de uma criança enferma que, quando o pai rápido cavalgava com o filho atrás de ajuda, foi interceptada por uma força sombria que a queria para si, tentando-a convencer a partir consigo. O pai nada via, e o filho ainda mais adoecia e gritava ao pai pedindo socorro contra a força maligna. O filho acaba morto nos braços do pai. Teria sido levada pela misteriosa criatura ou era apenas o delírio de um enfermo quase no fim de sua vida?
Olhei para Henrique, que parecia ainda mais entediado e um tanto decepcionado. Levantou-se e virou-se de costas para todos e disse a mim:
– Isso que chamas de história de terror, Felipe?
– Se não é assustadora por que não tentas fazer melhor? – Disse João irritado, que não permitia que falassem mal de suas histórias.
Henrique ficou ainda um tempo calado, tirando a poeira branca de um móvel antigo, e posteriormente tocou nas cortinas da janela frontal, como se estivesse tentando lembrar alguma coisa. Nunca havia visto tal expressão em seu rosto.
Após alguma hesitação, Henrique sorriu, um sorriso falso, e nos disse:
– Precisamos de música!
Olhamos um tanto surpresos com o comentário, e prosseguiu:
– Conhecem Glass? Deveriam conhecer o melhor compositor vivo! Acho que a música dele, moderna e atemporal, é a mais apropriada para essa ocasião e...
– Vai contar uma história ou não vai? – interrompeu João irritado. Henrique nada respondeu. Tirou um toca discos de sua mochila e colocou sobre um piano velho que o apoiava anteriormente. Como não percebi que havia um piano na sala?
A música começou a tocar, e soando dentro da mansão parecia feita por fantasmas. Henrique andava de um lado ao outro e falava vários “bem”, “como começo”, “hum”, “magnífico”. Parecia visivelmente perturbado, e João ao meu ouvindo perguntava de onde conhecia tal sujeito, e não respondia nada; nem ao menos saberia responder. Henrique, por fim, nos olha e diz:
– Vou contar-lhes a história dessa própria casa, história que já estou familiarizado, e que, diferente de tudo isso que ouviram hoje, essa história é a pior de todas simplesmente por ser real. Vocês devem compreender que não se deve duvidar de nenhum pequeno detalhe, ou possível incoerência. Por mais bizarro que possa parecer, tudo realmente aconteceu.
*

Essa mansão foi construída há centenas de anos atrás; para ser bem preciso, sua última pedra foi colocada em 1249. Pertencia a um duque que dominava uma área maior que a cidade que atualmente comporta o paço. No entanto, a história que vou contar é de sete gerações posteriores à do construtor.
Em 1360, aqui vivia um nobre com sua esposa. A história costuma afirmar que era bela, mas nada pode-se afirmar com clareza. A dama não podia sair, e o único retrato que gravou seu rosto há muito não existe mais. O nome do casal era Ana e Luiz.
Nesse ano de 1360 ocorreu uma tragédia na vida do casal. Ana morrera no parto de sua filha, Clara, e após isso muita coisa mudou nessa casa. Ninguém mais via Luiz sair, apenas seus servos o viam e saiam. A reclusão de Ana passara ao marido, e posteriormente seria imposto à filha.
Como era de se esperar, quando ficou jovem, Clara fugiu da mansão. O pai ficou como louco buscando-a, já estava louco há tempos, diziam alguns. Luiz encontrou sua filha em um convento dos frades menores, sob vigilância de um jovem religioso da ordem. Enfurecido, o pai agrediu vários dos religiosos, e arrastou a filha para casa. Pouco depois, Clara morre sem que se saiba a causa. Apenas uma pessoa além do pai pôde ver o corpo.

 Nesse momento Henrique interrompe a narrativa. Olha para o lado, se levanta e segue em direção ao seu olhar. A música de Glass continua tocando. Henrique move uma velha cortina, e por traz dos panos se vê claramente um retrato de uma jovem muito bela. Todos nós ficamos assustados nesse momento. Mais incrível que Henrique saber precisamente o lugar onde estava tal retrato, creia-me, era o fato de estar tão preservado, como se fora pintado no dia anterior. Impressionante era o modo como Henrique olhava o retrato, como se não estivesse lá, e seu olhar atravessasse tudo, por fim, olhando o nada. O rosto mais parecia o de um defunto.
– Linda não? – Henrique falava, como se falasse para ninguém – esse é o único retrato de Clara. O pai mandou pintar logo após sua morte, e o pintor foi a única pessoa que a viu depois do acontecimento no convento.
– O que aconteceu com o pai? – perguntou João, aparentemente não mais irritado.
– Morreu uma semana depois.
– Que tragédia! – Disse por fim, um tanto aliviado, embora não soubesse o porquê de tal alívio.
– Não nos adiantemos. Além do mais, a história ainda não começou.
– NÃO??? – dissemos, os quatro, espantados.

Por fim, na semana seguinte à morte de Clara todos nessa casa morreram. O pai e todos os criados morreram no mesmo dia, se não me falha a memória, e ela algumas vezes falha, foi no dia 20 de outubro de 1374. Todos em volta comentaram sobre o caso. Alguns afirmaram que era punição divina, que iria afetar toda a região, então fugiram para longe; outros acreditavam que o duque e seus serviçais morreram de uma peste, que matou todos e rapidamente, devido a reclusão em que viviam; alguns acreditaram até em algo de ordem satânica. Os mais sensatos, claro, acreditaram que Luiz enlouquecera e matara todos os seus servos e cometera suicídio, assim como acredita-se que tenha matado a própria filha. Devido a natureza da disciplina histórica, essa última versão, a dos sensatos, é a que fica para a posteridade, e essa é a versão histórica oficial do acontecimento.
Agora, há detalhes dessa história que os historiadores não conhecem. Quando fugiu, Clara contou diversos segredos ao franciscano que a acolheu. Luiz não era só um barão excêntrico, que trancava a filha apenas como uma mania aceitável. Luiz estuprava sua filha desde os 6 anos de idade, e os estupros eram diários. Não só a estuprava, como a machucava e a humilhava diariamente; seu próprio pai. Por causa dos abusos Clara fugiu, e contou tudo ao franciscano.
Clara era uma menina tão doce. Tenho certeza que foi o maldito que a matou. Provavelmente matou todos e se matou também. Na época, todos consideraram uma praga divina ou demoníaca, e poucos se atreveram a entrar na mansão, que ficou por muitos anos fechada, até ser invadida por volta de 1600 e depois fechada novamente.
O pouco tempo de convivência de Clara com o franciscano foi o suficiente para acender uma paixão repentina e louca pela jovem sofredora. Quando o pai veio buscá-la, o religioso defendeu-a e foi por Luiz agredido. No dia seguinte invadiu a casa e foi informado por um servo que Clara estava morta. Sentiu tanta raiva que planejou matar o pai, mas não foi necessário. Uma semana depois todos estavam mortos.
No entanto, a morte de Luiz não lhe consolava. Precisava de Clara. Faria tudo para ter sua amada de volta. Contou com a única força no mundo que poderia trazê-la de volta. Pensando nisso, foi à biblioteca da ordem e consultou todos os livros ocultos que pôde. Acabou encontrando um que o marcaria para o resto da vida. 

A música parou de tocar, e Henrique parou de narrar. O silêncio tornou-se perturbador, e nossa curiosidade, unida a um medo bizarro nos manteve em silencio por mais algum tempo. Henrique olhou de um lado para outro, com uma expressão estranha. Levantou-se e começou a andar, como que buscando algo. Nenhum de nós teve coragem de perguntar o que Henrique estava fazendo.
– Aqui! – disse Henrique finalmente, quebrando o silêncio. – Eis aqui! – e volta à mesa trazendo um grosso volume. Aparentava ser um livro muito antigo, anterior à imprensa. A capa era uma obra de arte sombria, e as páginas do livro eram feitas de folhas de madeira.
Henrique botou o livro sobre a mesa, e pudemos identificar grandes letras escritas no alfabeto gótico, que na época não podíamos identificar, mas hoje sei que se trata de um livro chamado Zwang der Hölle. Todos ficamos absolutamente aterrorizados. Até que ponto isso era apenas uma brincadeira para fazer uma história de terror? Henrique planejara essa cena para nos assustar de verdade? Mas como? Chamei-o praticamente no momento que vínhamos. Não era possível que Henrique tenha planejado qualquer coisa. Definitivamente, isso não era possível.

Esse foi o livro que o jovem franciscano encontrou, e que serviria para trazer sua amada novamente. Então o franciscano pôs-se a ler todo o tomo, e descobriu diversos segredos das forças infernais, e descobriu um ritual capaz de trazer Clara novamente ao mundo dos vivos. Preparou-se então.
Ainda teve de esperar alguns dias. A lua precisava estar em posição favorável. Tudo precisava ocorrer no momento e do modo especificados no livro. Estava pronto a desafiar suas crenças pela mulher amada.
Chegara o dia fatídico, e o jovem precisava apenas da hora certa. Estava munido de materiais para o ritual macabro, além deste livro. Sabia o feitiço de cor, mas nada poderia dar errado, então trazia o livro consigo, para seguir perfeitamente as instruções. Chegara a meia noite, e pôs-se a recitar o feitiço. Leu a última palavra de invocação, e o feitiço estava acabado. Nada aconteceu.
Desapontado, já se preparava para voltar, quando algo inesperado aconteceu. Parecia um terremoto, e esse tremor que fez várias das rachaduras que se podem ver na mansão. Narrava Henrique, apontando várias ranhuras nas paredes. Alguns dos objetos da sala se moviam, como se estivessem flutuando. Talheres, pratos, castiçais e espelhos rodeavam o espaço, e nesse espaço uma forte luz surgiu, que ofuscou completamente o franciscano.
Quando a luz sumiu, pode ver um ser vestido em trapos brancos. Era Clara, assim como não era. Clara, antigamente tão bela e viva, estava pálida e morta. Não se movia, e estranhamente parecia mais morta que se ainda estivesse em cova. O franciscano olhou-a coberto de lágrimas nos olhos, e nesse momento Clara deu um passo a frente, um passo pesado, quase sem sair do lugar. O jovem, em seu desespero correu e abraçou a criatura que estava a sua frente. Os dois se olharam profundamente e nada falaram. 

Henrique parou subitamente de narrar, fechou o livro a sua frente e guardou seu toca discos na mochila. Estávamos tão surpresos que não podíamos falar nada. Quando Henrique estava pronto a ir embora, João teve coragem e perguntou:
– O que aconteceu depois?
– Isso possui alguma importância?
Nenhum de nós soube responder a pergunta. Henrique estava saindo.
– Como é que você sabe essa história com tantos detalhes? – Perguntou por fim Fred, impulsivo. Henrique apenas virou a cabeça, com olhar vazio, e ainda de costas disse sem ouvir resposta:
– Já fui franciscano – e saiu.

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