“Às vezes um segredo pode se tornar um punhal enterrado na carne”
Eneida Cortázio Botelho
– Procura um médico, ou vais
morrer... – Annece.
– Já
procurei. O doutor Hipócrates vai me atender hoje à tarde – Bloch replicou. Deu
a última cusparada, abluindo a boca do azedume. Vomitara uma substância escura;
reparou fios de sangue mechando-a.
Annece
dobrava roupas. Entreviu a vomição do esposo, por sorte, se tivesse atentado em
zoom, perceberia a substância ebulir bolhas graúdas. Espocadas, barulhariam no
quarto inteiro. Bloch agiu rápido, tirou a blusa e encobriu. Buscou uma pá.
Recolheu. Jogou na lixeira externa da residência.
Enxugando,
usa o dedo indicador, o suor da testa, expressou a um gato preto que veio
sentar-se ao lado de seu pé:
– Foi
por um triz, bichano... Por um triz... – entrou.
Entrou
o gato na lixeira. Só se ouviu o miado em desespero. Minutos de quietude.
Abriu-se a tampa. O osso do animal foi arrojado longe.
No
espelho do closet, Bloch apalpa a barriga – que sobejou dela –, de um mês para
cá, cresceu-lhe um tumor, aflorado no umbigo. Tumor é modo de dizer. Parecia
uma bola de handebol, dado seu tamanho grotesco.
Bloch
teve ojeriza por aquela bolota de carne, ainda mais por saber sua origem... Sem
que Annece perceba, apanha uma faca de pão, cisca o tumor, incentivando um
denodo. Quem sabe amputasse aquilo de si, aquela bosta não lhe permitia sequer
foder. Naftalina perdera o interesse sexual – não tem culpa. Quem desejaria
transar com um homem possuidor de uma esfera rica em veias, densidade maleável,
como silicone. Não vindo coragem, deixou a faca cair na pia. Sentiu uma fisgada
no olho do tumor, e outra, e outra, e outra. Seus olhos esbugalharam, quase
grita. Não o fez porque lutava para não suscitar pulgas atrás da orelha na
esposa.
No
lugar onde fisgava, nas paredes umbigo, uma impigem. Ali, exatamente ali,
iniciou a esfera.
– Foi
aqui, esta impigem..., aqui, depois que..., esta bolota, surgiu esta bolota...
– Bloch religa o Tempo.
Os
outros caçadores, seus amigos, tinham ido dormir. Bloch polia o rifle. Ego nos
píncaros por ter alvejado três pacas e um porco-do-mato. Corujas rasgavam o ar.
Entrou em alerta o instinto matador. Armou mira na direção das árvores.
Inlocalizou as aves agourentas. Resolveu entrar na mata. A insônia não
permitiria repouso mesmo. Ia se distrair. Dia seguinte voltaria para
Anankeópole, para o trabalho, para Annece.
Caminhou
dez minutos sem sucesso. Percebia folhas se mexendo. Mas as benditas corujas
não se mostravam. Um feixe de luz atingiu sua face. Vinha detrás de troncos de
jequitibá. A luz contrastava com o negror da noite. “Que diabo é isso?”.
Assumiu cautela. Esgueirou-se. Sussurros de gente falando. Não era uma
linguagem clara. Inglês, alemão... Nem Este narrador conseguiu distinguir.
Bloch se deitou. Agora se arrastaria, para não correr risco de ser visto. Um
metro, dois, três e ploft! Algo pesado caiu em suas costas. Bloch se virou
alarmado. A coisa rolou no chão. Escorado num tronco, usou o cabo do rifle para
remexer o solo, tapete de folhas. Deu com uma coruja tesa; como se tivesse sido
empalhada. Os olhos do animal permaneciam vivos, e o trespassavam. Uma língua
olhareística, fosse um pidgin, bastaria para expressar um aviso. A coruja teria
avisado. Então, seus globos oculares se despregaram do encaixe, rolaram. Bloch
sentiu o estômago embrulhar. “Merda! Que porra é essa?”.
Os sussurros
cessaram.
Recomposto,
Bloch cruzou o limiar entre o conhecido e o desconhecido. Enxergou o que muitos
ufólogos só conhecem em teoria: uma nave espacial, embaixo dela, figuras
humanoides encapuzadas em torno de um altar. Formação circular, não era
possível ver o que faziam. Bloch ignorou ser um óvni – dedução deste narrador
–, pensou se tratar de algum treinamento da Força Área. Observou que havia uma
alternância entre eles. Um entrava no meio da roda, o outro saía, depois
regressava.
A
curiosidade, assassina de felinos, coçou-lhe a mente. Descobriria o que faziam
os homens encapuzados. Pé a pé, pé a pé, pé a pé. Ocultou-se atrás de uma
pedra. Espionou. Avistou sobre o altar – um retângulo luminoso – uma mulher
nua, desacordada, sendo violada por um dos homens encapuzados. Homens? Tirado o
ornamento, estava despido, e não, senhores! Não detinha aparência humana!
Salvo, a corpostrutura. No mais: tinha pequenos chifres espalhados ao longo do
que poderia ser a coluna vertebral; uma cabeça sem olhos, sem nariz, ou boca;
mãos duplas, com dedos alongados, visguentos, cobertos de escamas. Tinham
cauda. Esta cauda passava-lhe por baixo das pernas, se introduzia na vagina da
mulher. O movimento que fazia era similar ao humano: vai-e-vém, vai-e-vém,
vém-e-vai vém-e-vai. Ela vertia sangue por virilhas arroxeadas.
O
estupor de Bloch acabou sendo sua desgraça. Sentiu a cabeça girar, antecedência
de desmaio. Apertou instintivamente o rifle. Deflagrou sem querer. Bam!A
besteira estava feita. Flagraram-no, os homens encapuzados.
Não
desmaiou. O tiro devolveu-lhe o tino. Impulsão para fugir. Nem viu como foi
atado pelos braços, meio que os alienígenas – ou homens encapuzados, se assim o
leitor se afetuou – se teletransportaram. Este narrador, perplexo, está
limitado em sua narração. Sei tanto quanto Bloch sobre o modo que eles utilizaram
para locomoção de um lugar ao outro. Quando dei conta, estava nosso personagem
como está: neutralizado ao pé do retângulo.
Que
farão com ele, estes óvnis?
Um,
transparecendo aspecto de mandatário, tomou a voz e comunicou algo lá em sua
língua; um chiado de rádio fora de sintonia.
O
violador se retirou da mulher. Um grupo carregou-a para outro lugar. Sumiu.
Dois deles ergueram Bloch e o deitaram no altar, em posição de bruços.
Bloch
em vão berrava palavrões, súplicas, e se debatia. O alienígena-líder impôs as
mãos sobre ele, paralisou-o (igual a coruja caída do céu). Seus olhos tinham
consciência do entorno. Sentiu quando lhe arrancaram as vestes. Prenúncio. Não
podia ser... Não podia... Bizarro! O violador se aprumou – garanhão das
galáxias. Este narrador assistiu a cauda crescer, girar como lâmina de
furadeira, escorrer, e penetrar o ânus de Bloch. Arriei as pálpebras sob o
custo de ficar sem ter o que narrar.
Abri
minha visão e eles tinham ido. Bloch mantinha os olhos abertos – morto, quem lhe
obsequiará um passar de mãos que o libertem desta existência-gaiola? – na
direção deste narrador. Todo narrador é invisível para personagens, por isso,
me enxergou não. Quis ajudá-lo, as leis naturais da teoria narrativa me
impediram (“fodam-se os teóricos e seus postulados acadêmicos!”, vociferei para
mim mesmo, na solidão de minha companhia). Presenciei o corpo de Bloch
retornando ao seu domínio. Ele se assentou. Cabisbaixo. O que ocorrera consigo?
Violentado por alienígenas. Esta realidade soou como título de filme trash: “em
cartaz: o homem estuprado por aliens”. Inexistia uma maneira menos vexatória de
divulgar isso com os amigos caçadores, com Annece, com o mundo. Imaginemos
Bloch a contar “Gente, tive o cú arrombado por seres de outro planeta!”. Além
da incredulidade, sobrariam pilhérias e sacaneamentos. “Melhor guardar só pra
mim”, ponderou.
–
Bloch – vozearia dos caçadores que deram pela falta dele – que tu faz aí nesse
chão, cara? E que sangue é esse? Tu tá ferido, sumano?
–
Hã... É... Vim atrás de um porco do mato. Patetando, escorreguei e bati nesta
pedra...
–
Será necessária uma cirurgia para remoção, Sr. Bloch – Dr. Hipócrates
manuscrevia um formulário – não entendo este tumor. Não consta registro de
coisa igual na literatura médica. Não é câncer, já fizemos exames. É como se a
própria carne tivesse tomado a decisão de avolumar.
– Por
favor, doutor. Tire essa coisa da minha barriga! Quero meu físico de volta.
Sinto saudade até mesmo da minha barriguinha de cerveja.
As
palavras de Bloch causaram risos no Dr. Hipócrates. Este levantou da cadeira, e
se dirigiu ao frigobar para pegar água. Calculava mentalmente a data para a
operação.
–
Aiiiiiiiiiiiii!
Bloch
se esgoelando de dor, desaba ao chão. Contorce-se com fisgadas, melhor, facadas
no olho do tumor. Dr. Hipócrates se apressa em socorrê-lo. Há um reviro no
interior do tumor. Algo se esforça para perfurar a pele. Cada estocada é vista
como a ponta de uma lança. O médico não sabe o que fazer. Tenta alcançar o
telefone. Mas é encoberto por uma gosma negra, oriunda da esfera, que explodiu.
Bloch está morto.
Dr.
Hipócrates quer se limpar. A gosma se impregna. Invade-lhe olhos, boca,
ouvidos, nariz, em um minuto, ceifa-o.
A
gosma se amontoa. Erigi-se uma espécie de cone giratório. Desenha o formato
humano. E este formato imita a feição de Bloch. Um clone exsurge da substância
alienígena. Forma de vida inteligente, pois tratou de pôr em si as roupas do
defunto.
Impôs
as mãos sobre os restos mortais de ambos e os desintegrou.
–
Bloch – Annece comentou na hora do jantar, observando o marido – você tá bem?
–
Sim, terráquea...
–
Pergunto por que desde que chegou não para de me chamar “terráquea”. Que foi?
Virou extraterrestre? – ensaiou um riso, não sendo acompanhada, fechou a cara.
Reclamaria da falta de modos do marido – tira a cabeça de dentro do prato!
Bloch,
melhor, o alienígena, estava com a face inteira enfiada na sopa, ajeita o
pescoço, e encara-a com um olhar oblíquo e dissimulado.
A
história encerra aqui e assim. Este narrador pede desculpas a você, leitor, é
consabido que sou limitado ao escritor; alforriado, convertendo-me numa
abstração sem pele. Ele determinou o encerro. Tal quando você, encontro-me
repleto de incógnitas. Por exemplo, o que pretende o alien fingindo ser Bloch?
O filho da puta do escritor não quis me segredar. Verberou que um dia qualquer
(dando na telha) conceberá uma continuação, ou não. É exótico, o cara! Bem,
lanço-me à minha própria imaginação, a título de cogitação, e penso: a troca
entre Bloch e o alien se deu como parte de um projeto maior, clichê, de subjugo
da raça humana. Aliens estão se infiltrando em nosso meio. Um dia, proclamarão
um extermínio. Fica mais fácil, já adaptados aos nossos cotidianos e destros no
manuseio e bloqueio de nosso arsenal bélico. A priori, a moça violada era o
único experimento do dia, mas Bloch achou de ir atrás da coruja... – quiçá, a
coruja o tenha atraído.
Dou
razão a Ellen Parr quando sentenciou “A cura para o tédio é a curiosidade. Não
existe cura para a curiosidade”.
Sem
cura, Bloch acabou com as pregas esfaceladas, a barriga escancarada, a vida
substituída, e alienigenizado...
Eles
existem, leitor, os ET’s, e habitam simulacros humanos. Qualquer um é suspeito
de ser um alien... Inclusive tu, leitor...
[Após
esta última frase, o narrador não foi mais visto. Em face do que, eu, o
escritor, indago: terá sido abduzido por saber demais?]
[Findada
a indagação acima, o escritor não foi mais visto]