A MARCA DE CAIM {RAPHAEL SOARES}


Gravura de Gustave Doré

Eu era jovem quando o conheci. Da minha juventude inteira quase nada persiste na memória, mas lembro muito bem de tudo o que se refere a ele, embora todos me digam que tudo o que permanece na minha lembrança é mera fantasia, normal para a idade que tinha quando tudo se passou. Normal que todos que tenham “sã sua consciência” pensem assim.
Seu nome era Samuel, aparentava ser uns três a cinco anos mais velho que eu, que à época tinha doze anos. Podia, no entanto, ser bem mais velho que isso. Estava atrasado na escola, porém não possuía indícios de baixo desempenho. Ninguém nunca havia falado de seus pais, provavelmente não viviam mais, mas o deixaram em boa condição financeira. Morava no velho casarão na saída da cidade. Isso era tudo o que soube dele, e se alguém sabia algo a mais, duvido que fosse muito.
Acabara de trocar de escola, onde o conheci. Eu vinha da escola pública, e fiz o processo de seleção de bolsas para a escola particular de meu bairro. Fui o último colocado contemplado com a bolsa integral, o que foi para mim uma grande sorte: talvez meu pai não tivesse condições de pagar a metade da escola, tendo sido grande a dificuldade de arcar com o custo do material escolar, que não era barato.
No primeiro dia de aula notei-o imediatamente. Era escandalosamente invisível, de modo que prendia minha atenção. Ninguém mais o notava, ao que parece se habituaram a tê-lo como um apêndice no canto esquerdo da sala. Não falava com ninguém nem possuía qualquer amigo, e era a única coisa em que parecia ter vontade. Não demonstrava nenhum interesse pelas aulas ou pela escola, apenas ficava em sua carteira imóvel e olhando para o horizonte. Nenhum professor fazia qualquer pergunta, nem participava de qualquer atividade de natureza dinâmica, como seminários, debates ou trabalhos em grupo; raramente lia ou abria o livro. Na primeira avaliação surpreendi-me: Samuel fechara todas as provas, compensando tudo o que não fizera durante as aulas. Pensava nele como um gênio enfadado, desperdiçando sua vida em uma série de atividades escolares mecânicas, e meu fascínio sobre ele crescia cada vez mais. Não posso dizer que não continua crescendo até hoje, depois de tanto tempo.
Fui eu quem teve a iniciativa de falar com ele, mas fui violentamente rechaçado. Samuel claramente não queria falar com ninguém; não queria ter amigos. Apesar disso eu insistia. Ele me fascinava. Algo nele o fazia diferente de todos os outros.
Com o tempo, percebi que ele desistiu de fazer questão de afastar a minha presença. Talvez tenha percebido que não importava o que fizesse não conseguiria me demover da ideia de me aproximar dele. Com o tempo passou a tolerar minha presença, embora continuasse a me ignorar completamente. Até que um dia, após o almoço – almoçávamos na escola, antes de ir para nossas casas – ele segurou minha mão, repentinamente, não me permitindo sair. Disse uma única palavra: fica. Fiquei a olhá-lo por algum tempo, sem dizer nada e sem que ele me dissesse qualquer coisa. Estava sério e aparentemente aflito: parecia ter feito algo errado e queria contar para alguém. Demorou a largar meu braço, de modo que perdi o ônibus para casa, e tive de esperar aproximadamente uma hora para o próximo. Samuel nunca mais retornou à escola depois desse dia.
Ao que parece, eu fui o único que senti sua falta no outro dia. Ao chegar em casa, preocupado que algo tenha ocorrido com Samuel ouço minha família comentar a tragédia que ocorrera no dia anterior: ônibus é assaltado, deixando quatro mortos e alguns feridos. Preocupei-me logo com meu amigo, e pedi para ver a notícia. A princípio fiquei aliviado, pois Samuel não estava listado como morto ou ferido, porém minha reação seguinte foi de espanto e terror. Era o meu ônibus, e ele sabia.

O MORCEGO {SAMANTHA DE SOUSA}


Era uma tarde de domingo quando lhe bati a porta. Recebera-me como a um filho que há muito não via, mas se mantinha recalcado pelo costume de mestre instrutor que nunca se permitiu perder. Lembro-me como ele era quando a idade não lhe transparecia: ainda andava ereto, tinha uma postura colossal que o tempo corroeu-lhe quase instantaneamente. Agora parecia mais uma assombração do meu pavor de outrora, que ousei buscar, que ouso tentar imitar.
Entrei, sentei numa das poltronas e fiquei a segurar meus joelhos quando ele se retirou. Meus olhos perambulavam por toda a sala. Nunca tinha visto paredes tão brancas, tão lisas, tão limpas, era uma perfeição angustiante, eu sentia vontade de fugir dali, daquela sala tão branca.
Meus olhos continuavam a passear, buscando, ao menos, uma mancha naquelas paredes, uma mancha pequenininha. Mas, para qualquer lugar que eu olhasse só havia aquela brancura impecável. Meus olhos desesperaram-se, eu precisava encontrar uma imperfeição para que encontrasse a perfeição de não ser perfeito. Meus olhos, então, fixaram-se num ponto, quase magneticamente, eram aqueles olhos que eu tanto evitava olhar. Aqueles olhos negros, pavorosos, que não podiam ser humanos, podiam pertencer a qualquer entidade mística, mas não a um homem. Sentia-me caindo num poço sem fundo, sentia-me tragado, sugado por aqueles olhos. Aquele corpo já não era o mesmo, mas aqueles olhos, eu nunca os esqueceria. Como podiam ser tão penetrantes, tão vivos, tão fixos, tão indecifráveis, tão abismais?
Sentou-se ao meu lado e começou a mostrar-me seus artigos literários. Ele tinha um comentário para cada um deles, há muito tempo se afastara das salas de aula, mas sua sabedoria só crescia, cada vez mais. Sua voz era, então, mais cavernosa como nunca fora antes. Sentia-me diante de um deus e nada sabia responder-lhe quando me perguntava. Sentia-me totalmente leigo perto dele, então eu ficava apenas parado, escutando-o, com as mãos trêmulas, evitando olhá-lo nos olhos.
Fizera um silêncio repentino, ficara a contemplar suas alvas paredes. Senti-lhe me observar e meus olhos fugiam cada vez mais, minha alma queria escapar-me do corpo. Levantou-se e falou-me, como uma trovejada, que iria buscar-me um chá. Senti minha alma voltando ao corpo.
Eu tentava ler alguns artigos, mas meus olhos começaram, novamente, a passear pela sala. Encontrei-a, finalmente, uma mancha nas cortinas. Tamanha foi a emoção de encontrar uma mancha em toda aquela alvura que eu sentira-me hipnotizado, estava fascinado, atraído, encantado com aquela mancha. Saltei da poltrona e fui até a cortina e novamente a angústia tomara conta de mim, a mancha tornara-se sombra, era apenas uma sombra.
Aquela angústia me envolvia cada vez mais, eu precisava de ar, precisava fugir daquele branco. Abri as cortinas, queria ver o asfalto, os postes, as casas, o céu, as árvores, a grama. Abri as cortinas e os vi, aqueles olhos negros, eram os olhos dele, mas numa figura muito mais pavorosa, toda a minha angústia de olhar aquelas paredes brancas sumia diante daquele ser infernal. Aqueles olhos tão negros, tão profundos me envolviam. Eu queria fugir, mas meus olhos estavam presos aos olhos daquela criatura. Eu olhava para ela e ela olhava para mim. Eu lutava insignificantemente contra aquele olhar que subia e descia e parou diante do meu.
Eu odeio morcego e odiava ainda mais aquele por ter aqueles olhos. Aquela criatura negra que pendia de uma teia, como uma teia de aranha. Ele estava de cabeça para baixo, com as asas abertas. Ele tecia a teia. Naquele momento fui tomado por um temor insano. Como podia haver, no mundo, outra criatura com aqueles olhos? Eu me sentia petrificado diante daquela imagem, eu queria ajoelhar-me e adorá-la, eu queria matá-la, eu queria morrer.
Os olhos do morcego continuavam fixos aos meus e senti-me envolvido por aquela teia. Como uma aranha envolve sua presa, o morcego envolvia-me com sua teia. Eu já não sentia meu corpo, eu já estava completamente envolto pela teia e caia no poço onde a criatura guardava seus mantimentos. Eu caia, caia, caia e nunca chegava ao fundo.
Escutei passos. O morcego soltava-se da teia. O professor se aproximava. Eu acordava. Tentei abrir a janela para expulsar a criatura e quando olhei para trás vi, novamente, aqueles olhos negros, mas não pertenciam àquela negra criatura alada, eram os olhos de um ser frágil e encurvado que carregava tremulamente uma bandeja. Voltei à janela e já não havia morcego, teia ou sombra naquele branco puríssimo.


A INVASÃO DAS MÁQUINAS {GIROTTO BRITO}



A cena que encontramos quando chegamos à beira da Lagoa Morgat foi de completa destruição. Do antigo galpão em construção restaram poucas paredes em pé, ferragens e máquinas se amontoavam retorcidas e ainda quentes, derramando óleo no chão de terra vermelha, revirada. Minha equipe fazia a vistoria do local à procura de sobreviventes ou, pelo menos, alguma informação relevante que pudesse nos servir. Há pouco mais de trinta horas, notícias assustadoras se espalhavam na internet sobre máquinas de guerra, em várias partes do mundo, que invadiam cidades e vilas, destruindo sem qualquer justificativa qualquer forma de vida que encontrassem pela frente. Eu mesmo cheguei a assistir alguns vídeos amadores postados na rede, que mostravam os ciborgues em verdadeiras cenas de guerra, embora a qualidade ruim dos vídeos não deixasse distinguir com exatidão como são essas máquinas. Os ataques aconteciam em vários países ao mesmo tempo e os governos convocaram as forças armadas para combater essa ameaça.
Dois dias à procura dessas máquinas e nenhum confronto direto com soldados tinha sido registrado até esse momento em nosso país. De alguma forma ainda desconhecida eles apareciam e devastavam cidades pequenas, ainda desprotegidas, mas tudo indica que dessa vez um grupo de soldados havia chegado no exato momento em que os ciborgues migravam para a cidade de Monsenhor Acan, interceptando-os no caminho, aqui, na beira da lagoa. Embora não haja corpos ou qualquer vestígio da presença de militares no local, os sinais de que houve aqui uma batalha são visíveis, e nos informaram por rádio, há vinte minutos, que uma equipe do esquadrão Centauro não retorna contato há mais de quatro horas.
— Comandante! Comandante! Venha ver o que encontramos. — gritou um soldado das ruínas do galpão.
Terminei de enviar uma mensagem ao centro de comando e fui até o local onde soldados se aglomeravam para ler um texto rabiscado numa das paredes que ficaram em pé. Escrito com uma lasca de carvão no reboco da parede de um cômodo que parecia ser um banheiro, o texto era mais que um diário, era o registro de tudo que havia acontecido ali.

Não sei o que vai acontecer em poucos minutos, mas acredito que não sairemos vivos daqui. Estamos, eu e meu irmão, abrigados nesse galpão enquanto uma batalha inimaginável acontece lá fora. Estávamos na lagoa, nadando como de costume, eu, meu irmão mais novo que ainda é um criança e alguns amigos que lá ficaram. Leandro, outro amigo, chegou e me chamou para virmos até este galpão. Atravessamos a lagoa nadando, e quando chegamos nessa margem percebemos movimentações entre as árvores, nos dois lados da água. Subitamente as árvores começaram a tombar e foram surgindo muitas máquinas, robôs, ou seja lá o que são essas coisas. Umas menores, quase do meu tamanho, outras enormes, como carros ou vãs. Eu corri para cá e me escondi no cômodo ao lado e fiquei espiando por trás de uma parede. As máquinas chegaram primeiro ao lado oposto da lagoa e foram matando um por um dos meus amigos que estavam lá. Eles tentaram correr, fugir, mas em vão. Fiquei desesperado, achei que meu irmão também estivesse lá, mas não, ele havia me seguido e quando percebi estava aqui perto. Corri para pegá-lo. Por detrás do galpão veio um grupo de soldados, acho que uns vinte, e começaram uma guerra dos diabos. Agarrei meu irmão e corremos para cá, entre tiros, granadas e explosões. Os robôs estavam próximos. Um soldado ajudou a gente e nos trouxe para este cômodo. Meu irmão chora sem parar, está com medo. Eu tento acalmá-lo, mas também não consigo disfarçar meu pavor. O soldado está aqui com a gente, vigiando, parece qu..
... uma máquina entrou e o matou. Consegui me livrar dela, mas estou ferido. Usei a arma do soldado, é a primeira vez que uso uma arma. Atirei várias vezes, e só tive êxito porque era uma máquina pequena e acertei um tubo em seu dorso que parece ser vital para o seu funcionamento.
As paredes da frente do galpão desmoronaram. Os tiros estão diminuindo, parece que a maioria dos soldados morreram. Não vai demorar até que nos encontrem aqui. Meu irmão dormiu, ou desmaiou, não sei. A parede já está quase sem espaço para continuar escrevendo, embora ainda tenha bastante carvão aqui para rabis...
... eles estão entrando no galpão. Parecem conversar na nossa língua. Ouvi algo como "... eliminem os corpos". Agora dizem "... daremos um novo propósito a esse mundo".
Eles estão vindo...

O texto termina aí. Impossível não ficar emocionado lendo um relato como esse e imaginar pelo que passaram esses irmãos. Provavelmente foram mortos, mas deixaram um importante relato sobre o que havia acontecido ali.
— Comandante, estão te chamando no rádio. É de Monsenhor Acan. — disse o Cabo Fernandes me trazendo o aparelho.
— As notícias não são boas, comandante, — falava ofegante um informante pelo rádio — a cidade foi tomada, as máquinas apareceram e saíram arrebentando tudo. A maioria dos nossos homens estão mortos e os que sobreviveram estão escondidos. Nossas armas foram inúteis. Abatemos no máximo oito deles, mas perdemos uns duzentos homens para isso.
— Calma, soldado! Tenha calma. Estou com poucos homens aqui, mas vamos para aí ajudar. Qual a sua localização?
— ...
— Soldados?
— ...
— Soldado, qual a sua localização?
— ...
Não houve resposta. Juntei meus homens e expliquei-lhes a situação. Estavam todos apavorados. Não foram treinados para combater esse tipo de inimigo. Na verdade, sequer foram treinados para uma guerra. A situação do país sempre foi tão tranquila que os treinamentos de combate de muitos esquadrões resumiam-se a aparar a grama dos quartéis e provas de tiro ao alvo uma ou duas vezes por mês. Raramente havia algum treinamento especial que exigisse mais que isso e, quando havia, poucos eram selecionados para participar. Eu estava entre esses poucos. Encorajei-os. Nossas mulheres, nossos filhos, nossos amigos... todos dependiam de nós. Éramos a esperança para aqueles que ainda não tinham sido mortos.
Em meia hora já estávamos nos carros, chegando em Monsenhor Acan. No caminho, carros pareciam virados do avesso, retorcidos. Tivemos que descer e seguir a pé, pois a estrada estava completamente interditada por árvores tomadas, carros capotados — muitos em chamas —, motos caídas, bicicletas abandonadas e a maioria das casas completamente destruídas. Nenhuma pessoa nas ruas, absolutamente nenhuma. Nem viva, nem morta. Uma situação inimaginável. Uma realidade distópica. Percorremos os escombros, mas nada, nenhuma alma parecia ter escapado ao ataque e não conseguíamos imaginar como conseguiram fazer sumir tanta gente.
De repente, no horizonte, avistamos uma movimentação longínqua que despertou um brilho súbito nos olhos dos homens que estavam comigo. Forçamos nossas visões para tentar reconhecer o que era. Alguns chegaram a afirmar que eram as pessoas retornando para a cidade. Os homens se levantaram e chegaram a esboçar, por alguns segundos, uma ponta de alegria. Mas em vão. Não demorou para que percebêssemos que não eram humanos, eram máquinas, de todos os tipos. Alguns soldados começaram a correr na direção contrária, mas pararam. Estávamos cercados.
Se ainda existia ânimo e esperança entre meus homens, se fora naquele momento. Todos sentaram, choraram e rezaram por si e por suas famílias. Inclusive eu.