SAMARA



SAMARA

***

Gostava do fígado mais que tudo. Não que os outros órgãos, as outras partes do corpo, fossem ruins. Gostava de chupar as grossas veias do coração, sim, mordicar o tecido esponjoso dos pulmões; mas o fígado, ah! o fígado... Tinha um sabor especial. Talvez fosse a consistência quase pastosa, a cor, talvez. O certo é que saboreava cada pedaço. Era como se por meio daquele órgão pudesse sentir todos os sentimentos do seu dono, todas as suas mais íntimas preocupações, seus segredos, seus medos, ah! como saboreava o medo. Por isso o fígado era sempre a última parte, um doce especial mantido longe dos olhos ávidos das crianças enxeridas, ou dos vermes da terra. Se pudesse o deixaria intacto. Mas sabia que assim ele acabaria estragando... Tinha medo disso. Medo de perder a melhor parte. Então o comia. Saboreava, melhor dizendo, imersa num estágio catatônico de puro êxtase.
Às vezes até gozava.

***

Espia o homem amarrado à cama. A boca dele vedada com supercola. Os olhos, arregalados, são a mais nítida expressão do terror. Ele respira acelerado, o peito subindo-descendo-subindo-descendo convulsivamente. Está vivo, pelo menos. Isso quase soa confortável. Soaria, se a situação envolvesse lutar pela vida, quando agarra-se a qualquer resquício de esperança. Mas não agora. Não quando se sabe que a morte é a certeza. Ele sabe que vai morrer. Mas não ainda, pelo menos. Esperança? Não. Ele sabe que não morrerá antes que ela devore parte do seu corpo. A primeira parte foi o pênis, cortado assim que ele ejaculou pela terceira vez. Ela lambia o sangue e o esperma enquanto ele se contorcia no chão de dor... Até que apagou. Quando acordou estava amarrado àquela cama, a boca completamente vedada. Ao pensar nisso, ele se contorce na tentativa inútil de escapar. Não vai escapar. Sabe disso. Sabe porque já fez as mesmas tentativas milhares de vezes antes. Sabe porque aquele cheiro forte de desinfetante quer, inutilmente, esconder o cheiro putrefato de decomposição que entranha pelas narinas. Sim, são cadáveres. Sabe disso. Sabe porque os ganchos na parede do outro lado estão sujos de sangue negro ressequido. E não eram peças de boi que estavam penduradas ali, tinha certeza. Quase podia imaginar-se ali, ainda vivo, agonizando, um enorme gancho o suspendendo pela clavícula...
Ela aproximou-se.

***

O pai dizia que ela era doente, porque, quando menina, gostava de caçar passarinhos no quintal pra depois despedaça-los nos dentes e come-los crus, o sangue escorrendo pelos cantos da boca... Não lembra exatamente a sensação de ter aquelas frágeis criaturas se debatendo inutilmente na suas mãos sujas. Mas recorda do líquido quente que jorrava das suas entranhas. Não entendia como uma coisa, assim, tão boa, poderia ser algo ruim, ou porque ela seria doente por isso... Até que um dia, já quase adolescente, enquanto o pai mais uma vez saia do banheiro fechando o zíper da calça e a deixando encolhida num canto, tremendo e dolorida, deu-se conta de que era realmente doente. Doente pelo fato de maltratar animais indefesos, que nunca lhes fizeram mal... Mas foi também nesse dia que se curou. Foi nesse dia que experimentou pela primeira vez a carne humana. E não gostou. A carne do pai era dura, ressequida; o fígado, então, era a pior parte; exalava um forte fedor de álcool, muito provavelmente o órgão perdera há muito a capacidade de desintoxicação. Talvez por isso mesmo nutria esse gosto estranho pelo órgão...

***

Ele estremeceu.
Onde aquele mostro estava escondido? Não notara. Por Deus sequer imaginava uma coisa dessas.
Como?
Ela trazia uma pequena faca. Um sorriso estranho nos lábios fechados. Os cabelos não estavam mais transados. Havia sangue ao redor da boca dela.
— E aí, benzinho? — disse.
Ele se remexeu.
Oi, coração! — ela respondeu por ele, tentando imitar uma voz masculina, mas a voz estridente dela dava um teor bizarro.
— Tá tudo bem, amor?
Tá sim! — e riu. Gargalhou.
Era louca, ele tinha certeza. Assim como tinha certeza que não poderiam ouvi-la. Ninguém poderia ouvi-la. Não ouvira outro som que não fosse a voz estridente dela! Era provável que estivessem no porão da casa, ou num quarto-cozinha-sala do terror, ou sabe-se lá onde. O certo é que o mundo parecia não existir mais...
— Sabe o que nós vamos fazer hoje, amorzinho?
[a quantos dias estava ali? nem lembrava mais...]
Não, meu amor
— Brincar! Você quer brincar comigo?
Ela riu.
Ele riu pela boca dela:
Quero!
Aproximou-se do rosto dele. Ele respirava acelerado. Pela primeira vez pôde olhar novamente no fundo dos olhos dela, completamente negros. Não dissera que a escuridão daqueles olhos tinham um mistério a ser explorado? Por um momento ele viu o negro da íris se expandindo pela parte branca dos olhos, como raízes crescendo em selvageria... As raízes romperam os olhos e se derramaram pela face dela... Até que os olhos dele se arregalaram. Piscou. Ela sorria, um sorriso sangrento, os olhos negros, a mão empurrando a faca pelo flanco esquerdo dele, lentamente...
— Você gostou de me foder, amor?
Ah, amor, gostei sim, você é uma vadiazinha
— Não me chame de vadia! — e a faca entrou mais fundo. Ele se contorceu. Ela sorriu. — Tá melhor assim?
Tá sim...
E a escuridão veio. A dor foi embora.

***

            Lembrava vagamente do som de um piano (ou talvez fosse um toca-discos).
Não, não tinham piano, nem toca-discos, nada. Ouvia do quintal. A vizinha que morava ali, uma professora há muito aposentada, tocava (ou ouvia).
E ela ouvia, atentamente, as melodias, cada nota...
É a melhor lembrança que tem daquela época. O som... As tardes... O cheiro de café. Naquela época ainda tomavam café às tardes. A mãe ainda não havia partido com o irmão menor.

***

Ele acorda, mas os olhos estão por demais pesados para abri-los. Permanece assim. A respiração lenta, doida. No silêncio uma torneira pinga. O pingar é lento, como se cada gota lutasse para se manter presa à torneira. O som é pesado, o líquido parece grosso. E está em algum lugar ao longe
pinga ploc-ploc-plo...oc
tão perto, está tão perto... Ele pode sentir. Sim, sentir, não apenas ouvir. Ele sente os pingos, sente a torneira.
Abre os olhos.
No chão uma poça de sangue vai aumentando a cada gota de sangue que se esvai. Uma tira de carne desaparecera dali.
Chora. Mas não vai adiantar, sabe disso.  
Para de chorar. Apura os ouvidos. Conhece aquele som, as melodias. Chopin?
Ela abre a porta. O celular na mão toca a sinfonia. Ele arregala os olhos, antecipa o pior. É o pior, sabe disso; o olhar vago dela diz que é o fim. Ele fecha os olhos. Só deseja que seja rápido. Mas o pensamento que vai ser devorado o aflige...
O som é interrompido bruscamente. Ele levanta a cabeça. Ela colocou fones de ouvido. Feito uma boneca sem expressão sai pela cômodo como se estivesse valsando, os braços abertos abraçam um ser imaginário. O demônio, ele pensa. Ela não ouve ele se debatendo. Não ouve nada. Vai até a parede oposta. Confere se um dos ganchos está bem seguro, chega a se pendurar num deles. Não cede. Está firme. Aguenta. Para por um momento como se avaliasse as opções. Vai até a mesa e pega uma grande faca de açougueiro — o cabo, antes branco, agora é rubro e negro, onde o sangue há muito coagulou. Vira-se para ele. Sorri.

***
[Dois meses depois.]

O homem checa o relógio. 20h:40min.  Passa as mãos nos olhos. Afrouxa a gravata. Precisa de ar. Precisa de um cigarro, de uma cerveja gelada. Precisa foder. Batem à porta:
— Doutor — a secretária mete a cara pela abertura — a reunião amanhã com o presidente do sindicato vai ser às nove, mas não poderei vir, tenho uma consulta, algum problema?
Ele avalia a secretária. Pondera dizer a ela que não haveria problema, contanto que ela o aliviasse ali mesmo, em cima da mesa, o escritório já não estava vazio mesmo? Olha pela janela.  A avenida em frente estava surpreendentemente pouco movimentada.
— Doutor?
— Ah, sim, claro; pode deixar. Obrigado, Dani, pode ir. Boa noite.
Ela se despede e vai embora.
Custava ter jogado o charme de sempre? Não funcionara das outras vezes?
Apaga as luzes e desce.
Precisava relaxar. A esposa não era uma opção. Precisava de uma coisa... diferente.
Atravessa a rua, destrava o carro, entra. Liga o veículo e abaixa o vidro. Do outro lado, na parada de ônibus, uma moça solitária espera por um coletivo. Ele pondera. Sorri. Aproxima-se.
— Boa noite, senhorita, aceita uma carona? É perigoso esperar ônibus por aqui uma hora dessas, ainda mais sozinha...
Ela tira os fones de ouvido e sorri acanhada. Avalia as opções. Levanta-se e entra no caro timidamente.
— Alberto — ele diz estendendo a mão.
— Samara... — ela responde, tímida.
— Muito prazer, Samara; o que você estava ouvindo, posso saber?
Ela sorri, dessa vez um sorriso completo:
— Chopin.



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