HISTÓRIA DE PENSÃO {RAPHAEL SOARES}


Gravura de Gustave Doré

Não tenho muitas lembranças de Altamira, quando estive lá por alguns meses no ano de 2009 prestando um serviço para a Norte Energia. Desembarquei na cidade no final do ano, em uma das mais cansativas e duras viagens terrestres que já fiz na vida, saindo de Marabá. Um frisson se instalara em decorrência da possível construção da usina, e uns diziam que Altamira se tornaria a Nova Belém, expectativa essa que, para o azar dos moradores e de todos os que foram viver na cidade em busca de um futuro de riquezas, nunca se concretizou. Foi para mim, de fato, decepcionante perceber que a maior cidade do mundo (ou o que eu achava ser na época, já que acabara de cair duas posições nesse ranking) era tão simples, e de certo modo tão descuidada. Ouvi dizer, um dia desses, que melhorara pouco em comparação com o grande aumento populacional que teve nesses últimos anos.
Instalei-me imediatamente em uma pensão simples, em que funcionava um bar e restaurante na parte de baixo na frente, com os quartos nos fundos e no segundo andar. Apesar do bar, o ambiente era relativamente tranquilo, sem muito barulho; de resto, ficaria apenas uma semana, de fato, na cidade, pois logo em seguida partiria pelo rio Xingu. Durante essa semana uma coisa me chamou muita atenção, que foi a onipresença de uma pessoa, minha principal lembrança de toda essa aventura, nessa pensão: um senhor, aparentando seus 80 anos, que estava lá logo quando o estabelecimento abria para beber um pouco e saia só quando fechava. Não falava com ninguém, ninguém se aproximava, nem criava qualquer confusão durante a semana inteira.
Após terminar o que havia ido fazer, retornei a Altamira e ainda o vi. Perguntei ao dono da pensão, um senhor aparentando seus 50 anos, quem era aquele homem que estava lá presente sempre. A resposta foi curta e simples: um homem triste e trágico, que faz o mesmo sempre desde que abri a pensão, se quiser saber a história dele vá e pergunte para ele. Foi o que fiz.
Por um tempo relutei se contaria essa história em primeira ou terceira pessoa, não sendo eu um literato nem capaz de memorizar plenamente todo o grosso da narrativa. Optei em escrever em primeira pessoa, pelo caráter sentimental e trágico dessa história, porém já alertando aos leitores que nem está embelezada pelo estilo nem é a transcrição fiel do que ouvi do homem, o que me seria completamente impossível hoje, exceto se o tivesse em minha frente para ditar-me as palavras. Também por questões éticas vou manter seu nome em sigilo, chamando-o apenas pela letra J.
Quando me aproximei dele, não fui recebido com rispidez como sua aparência e a resposta do dono da pensão me fizeram supor. Ele foi tranquilo e educado.
 – De onde vens, rapaz? – perguntou.
 – De Marabá. – respondi.
– Hum. O que vieste fazer aqui? Estudar na universidade, tentar ganhar dinheiro?
– Vim prestar um serviço, para a usina que vão construir.
E essa foi praticamente toda a nossa conversa. Ele soltou um “hum, que bom” e voltou a beber como se eu nunca tivesse falado com ele. Tentei perguntar o porquê de ele estar sempre lá, todos os dias, o dia inteiro. Por um tempo achei que ele não iria me responder, e quando eu estava próximo de ir embora o velho terminou o copo e perguntou se não queria ouvir sua história. Acenei com a cabeça e o homem narrou-me a história que segue:


A HISTÓRIA DO VELHO MAIS OU MENOS COMO ME FOI NARRADA
Meu nome é J. e nasci em fevereiro de 1949 em São Luís. Embora seja natural do Maranhão, vim para o Pará muito pequeno, de modo que nada lembro de nada que se refira a minha cidade natal. Meu pai também não gostava de falar do passado; o pouco que soube é que fora um homem de algumas posses em São Luís: uma boa casa e um comércio, mas por problemas com a família vendeu tudo e partiu para Belém com os quatro filhos e a irmã mais nova. Meus irmãos eram três, o mais velho seguido de duas mulheres, e eu era o filho mais novo.
Passamos poucos anos em Belém, dois ou três, quando, em 1955 meu pai novamente vendeu tudo o que conquistara e comprou algumas terras aqui em Altamira, porém extremamente longe do centro urbano. Lembro muito vagamente desse primeiro momento da infância, em que vivíamos despreocupados, correndo pelos campos enquanto meu pai vivia a trabalhar, arar e cuidar dos poucos animais que possuía. E trabalhava muito, e sabia melhor do que ninguém produzir riquezas a partir do seu esforço e sua inteligência rústica. Rapidamente víamos, em meio às brincadeiras e correrias, subitamente nosso mundo se expandir, a fazenda ficar cada vez maior, cada vez com mais animais e mais pessoas trabalhando ao nosso redor e nossa vida ficando cada vez mais confortável.
Ninguém da minha família nunca foi muito interessada em política. Não é como hoje, que todos falam de tudo, mas nem se importam com as implicações da política em suas próprias vidas e muito menos têm a empatia de se importar com as implicações práticas na vida do outro. Para nós era isso o que importava, e por isso a ausência de qualquer preocupação com os rumos políticos do Brasil. Antigamente, e principalmente no esquecimento em que sempre vivemos, nada que acontecia para o sul nos importava, simplesmente porque nada nos afetava. Os políticos nos ignoravam, e nós ignorávamos os políticos, e tentávamos viver sem nem nos dar conta de que eles existiam e de que nos deviam auxílio. Tudo isso mudou em 1964, quando meu pai soube da eleição (na medida em que a instauração de um presidente após um golpe contra outro pode ser chamada de eleição) de Castelo Branco.
Acredito que Castelo Branco foi o primeiro nome político que eu e meus irmãos ouvimos em casa desde sempre. Nosso pai ao saber que o militar era o novo presidente ficou eufórico de felicidade. Lembro muito bem de seu rosto quando comentava que “finalmente as coisas mudariam”, e que “o Brasil estava livre da ameaça comunista”. Não sabia de onde vinha tanto ânimo por causa de uma notícia como essa, não imaginava como um único homem tão distante poderia mudar a vida de todos no outro lado do mundo (do mundo-Brasil), e nem tinha a mínima ideia do que seria uma “ameaça comunista”, de modo que imediatamente dei pouca importância para o acontecimento e para o nome. Meu pai, no entanto, estava seguro de que as coisas mudariam.
E mudaram.
No ano seguinte meu pai conseguiu um grande montante de dinheiro, e aplicou imediatamente em suas terras, crescendo como nunca: ampliou a fazenda em uma proporção, para mim, na época, gigantesca e nos vimos subitamente cercados de inúmeros empregados.
Meu pai não era um homem ruim. Tratávamos bem todos os que trabalhavam em nossas terras. Todos moravam nos terrenos do pai, em instalações descentes. Não eram humilhados, eram bem alimentados e meu pai permitia que as crianças vivessem por lá. As crianças estudavam o básico também, com professores vindos de fora, como nós, pois vivíamos longe de qualquer possibilidade de uma escola regular. Muitas crianças e jovens decidiam trabalhar com o pai logo que tivessem condições para o trabalho, para ajudar seus próprios pais e deixar o meu ainda mais próspero. Na época isso era tudo o que conseguia apreender daquela realidade que começava a ver surgir diante dos meus olhos, e não me dava conta de que, apesar do tratamento humano que todos dávamos aos empregados havia um grande abismo que nos separava desses outros seres humanos. Havia uma discrepância agressiva no nosso nível para o deles, nas nossas posses para a deles, e nos nossos deveres para com os deles. Os empregados iam para a fazenda escapar da pobreza e da fome, e talvez prosperar, porém iam ao trabalho e, apesar de não passarem fome, receberem um abrigo (que não era próprio, mas nosso), serem vestidos e bem tratados, eram indiretamente reféns de tudo aquilo. O que recebiam não dava para pagar seu alimento, suas roupas, as ferramentas de trabalho e a moradia que lhes eram emprestadas, de modo que viviam em dívida branca com meu pai. Eram livres para partir, mas aonde iriam? Para a fome, a miséria, o relento? O regime de meu pai é hoje chamado de trabalho escravo, mas na época era simplesmente o trabalho. Num mundo completamente feudal como o do interior de Altamira da década de 60 não havia espaço para a noção de dignidade do trabalho ou escravidão, apenas a do trabalho. E com tudo isso, e com as poucas opções de escolha desses pobres homens, meu pai era uma das melhores, pois havia nele um pingo de dignidade que faltava a muitos dos seus (os que não eram os pobres). Meu pai não era um homem ruim.
Em meio a esse crescimento, meu pai pensou e planejou o futuro dos filhos. Seu primogênito, meu irmão, aprenderia com ele a cuidar da fazenda, e eu iria para o sul estudar, pois ele queria também um filho advogado. Com o tempo arrumaria maridos para as minhas irmãs, pois elas não deveriam nem cuidar da fazenda, nem estudar com outros rapazes, de modo que lhes restava a administração de um lar. Minha tia já não morava mais conosco desde que chegamos a Altamira, pois casara em Belém com um chefe de embarcação.
Estudei durante vários anos com ótimos professores, vindos de Belém, e alguns de meus amigos da fazenda, os filhos dos trabalhadores, me faziam companhia nos estudos, embora via-os gradativamente entrando no trabalho rural, enquanto meu destino seria estudar em São Paulo, para onde fui em 1973.
A vida na cidade grande foi uma grande revolução na minha vida e na minha cabeça. Tudo que havia visto, vivido e pensado até então tornava-se insustentável naquele mundo, que era de uma complexidade aterradora em “crise” e “milagres”. A presença dos militares era marcante na cidade, mas era ainda maior dentro das universidades, que talvez eram maior ameaça.
Nos meus primeiros meses na universidade sofri uma grande conversão. Se para meu pai e para nossa vida na fazenda o presidente da República (seria república?) era um anjo da guarda intercedendo por nós, lá virara o anticristo. A “ameaça comunista” tornara-se simplesmente esperança. Não vale a pena explicar detalhadamente os motivos da minha conversão, basta apenas dizer que foi o reflexo da minha experiência naquele lugar. Para nós, era a única alternativa para termos um mundo justo (diferente do mundo da fazenda, da cidade na época e mesmo o mundo de hoje), e nós e todos os outros teríamos de pagar o preço que fosse pela justiça.
Porém as coisas não eram simples. Não éramos organizados, ao contrário de nosso inimigo. Uns dentre nós preferiam a guerrilha para combater os militares e a propriedade privada, outros a construção de um exército efetivo para revirar o país em um caos construtivo, e outros (entre os quais me incluía) a conscientização do povo, que veria como nosso ideal era o único reto e justo, e faria o governo cair, embora a maior parte de nós apenas discutia entre si sem qualquer tipo de ação efetiva. Por outro lado, o exército era um exército coeso e possuía instruções muito claras e efetivas contra qualquer um de nossos planos. Muitos morreram, desapareceram, foram presos, deportados e nossa eficiência era reduzida a pequenos focos sem forças. Por outro lado, o presidente Médici, apesar de brutal, era muito popular entre as pessoas que mais precisavam de nós, e que nos odiavam ou nos viam com desconfiança. Éramos mártires, desejando apenas o melhor para os outros seres à custa de nossa própria segurança, e éramos perseguidos e desprezados. Apenas queríamos o melhor para todos, e hoje em dia penso que muitos governos totalitários e brutais pensavam exatamente como nós; talvez mesmo os militares.
Ficávamos cada vez mais fracos. Até o fim do ano os militares acabaram com praticamente todas as guerrilhas urbanas e rurais, abalando profundamente o movimento como um todo. Para nós era uma era de terror e medo, e para boa parte da população que compartilhava nossos temores éramos a causa.
A instabilidade e medo agravaram-se em mim em um nível impossível de suportar quando alguns dos meus amigos de universidade foram capturados no início de 1974. Sabíamos o que lhes aconteceria, e sabíamos todos que os militares capturariam todos nós. Não tive escolha. Com medo, fugi.
Fiquei um mês inteiro no Rio de Janeiro (durante o período em que Ernesto Geisel assumira a presidência), e de lá parti para Belém. Durante toda a viagem fui acompanhado pelo medo. Todos os dias sonhava que os militares me alcançavam, capturando-me gritando ódio. “Porco comunista! Vamos lhe ensinar uma lição que nunca mais vais esquecer!”. Sonhava com as torturas longas, o terror psicológico. E o pior de tudo, sonhava em sobreviver a tudo isso, e acordava, e sonhava novamente.
Chegando em Belém fui para a casa da minha tia, mas não imaginava o que me aguardava. Ao me ver minha tia atirou-se em mim chorando, e congelou em seguida. 
– O que aconteceu, minha tia? – perguntei.
– Ah, meu filho, não sabes o que eles fizeram?
– Quem? Os militares?
– Não, os bandidos.
– Que bandidos?
– Ah, meu filho. Teu pai e teus irmãos estão mortos. Mataram eles.
Para mim isso fora um tremendo choque. Meu pai sempre foi um homem forte, saudável. Para mim ele viveria para sempre. Também não era um homem despreparado. Para sobreviver no ambiente onde fizera dinheiro sempre investia muito em segurança própria para si e para os filhos. Não era possível sobreviver em Altamira, onde conflitos agrários e assassinatos por tais razões eram (e ainda são) comuns, e meu pai sabia muito bem tudo o que precisava para sobreviver: armas e homens para operá-las.
Apenas depois do choque pude conversar melhor com minha tia sobre o ocorrido. Mataram todos. Minhas irmãs mortas, meu irmão. Meu pai, empregados. A plantação queimada, animais mortos.
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Os dois últimos parágrafos foram os mais difíceis. O narrador, nesse ponto já chorava, mal articulava os sons. Após a narrativa que me apresentou disse que eu já poderia ir embora, que a história já havia acabado e que não tinha mais nada a falar. Nesse dia J. saiu mais cedo da pensão.
Peço desculpa aos leitores pelas minhas eventuais infidelidades para com um narrador que, para mim, foi impressionante. Algumas alterações são obvias, pelo apelo visual (as hesitações e repetições removidas, por exemplo, bem como a escrita dos anos integralmente ao invés do “sessenta e quatro” dito pelo narrador), mas outras menos óbvias. Espero que quem me leia possa aproveitar dessa narrativa, como uma experiência vivida e uma reflexão emotiva sobre a mesma. A veracidade do que foi registrado não pode ser comprovada, pois baseia-se na pura autoridade de J., que é apenas mais um homem bêbado, amargurado e sem importância no mundo, mas o leitor não pode me culpar de desonestidade: tentei sempre, quando não fui traído pela memória, registrar tudo aquilo que me foi dito, se não no estilo, o que me é impossível depois de tanto tempo, ao menos no conteúdo narrativo.

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