PASSEIO NOTURNO





É com muito receio com que venho tomar de um lápis e algumas folhas de papel em branco para tentar descrever uma grande tragédia que aconteceu comigo há muito tempo... Não sei se terei condições físicas e emocionais para isso. Meus dedos já não seguram com firmeza o lápis e a idade avançada faz com que minhas mãos tremam constantemente, ainda mais quando volto a pensar nesse assunto. Digo pensar, por que nunca falei dele pra ninguém, sempre tive medo. Agora mesmo não sei se estou agindo certo ao fazer isso. Toda vez que penso no que aconteceu passo noites em claro assustado com pesadelos, ainda hoje depois de tanto tempo. Sempre tenho a estranha sensação de estar sendo vigiado, e de vez em quando pareço ver aqueles mesmo olhos a me observarem da escuridão imensa da noite na hora de dormir. Talvez seja só uma impressão infantil, ou uma peça pregada pelo inconsciente. O certo é que não sou louco, a insanidade certamente ainda não bateu à minha porta, não sei até quando...
Lembro-me perfeitamente daquela noite. Era uma noite escura e sem estrelas, aquela. Uma enorme lua cheia ofuscava-se por traz de densas nuvens negras, e estava tão frio que uma fina camada de neblina subia do rio, indo espalhar-se rente ao cais.
Poucas pessoas haviam se aventurado a sair de casa naquela noite de quinta-feira. Eu, talvez por intervenção do destino ou por mera falta de sorte, fui um desses infelizes aventureiros. Não que fosse dado a passeios noturnos, pouco saia desacompanhado de casa. Limitava-me a ler romances policiais durante as noites frias, como aquela, e em retratar naturezas mortas em telas, muitas das quais ainda hoje decoram as paredes de minha sala de estar, sem falar nas tantas que atravessaram o oceano e foram parar nas mãos de amantes da boa e genuína obra de arte. Às vezes, durante o verão, quando um belo sol despertava o dia, convidava uns amigos e íamos pescar num rio de águas tranquilas, próximo à entrada de nossa pequena cidade. Raríssimas vezes fazíamos isso nos dias de inverno. Eram sempre dias monótonos e tristes; as coisas viviam encharcadas e a prevenção contra um resfriado impedia-me de fazer certas coisas fora de casa num dia ruim, e até hoje não consigo entender por qual motivo deixei esposa e filhos em casa e saí, sozinho, naquela noite, a vagar sem rumo pelas ruas da cidade.
Quando percebi já havia chegado na praça, do outro lado da cidade, em frente a uma igreja centenária manchada por infiltrações na fachada. Não sei como, mas sentia como se algo estivesse prestes a acontecer.
Andei até o trapiche e pedi uma cerveja. Encostei-me à amurada do cais, de costas para o rio e de frente para a praça, os braços cruzados, a cerveja na mão. Fiquei ali, esperando sem saber exatamente o que por mais de uma hora. Já passava das onze horas e a praça esvaziava-se muito rápido de seus poucos visitantes. Um menino corria atrás de um gato branco listrado de cinza e com uma mancha preta ao redor do olho esquerdo. O gato parou e ficou me olhando por um longo tempo, fitando-me com os olhos semicerrados, depois foi embora. Três homens bebericavam cerveja num barzinho próximo enquanto conversavam animadamente, e um casal de namorados se abraçava num banco à minha frente sob a luz amarelada de um poste. Fiquei a observar o casal por trás das grossas lentes dos meus óculos. A moça, uma morena de cabelos longos e encaracolados, olhos negros sob finas sobrancelhas perfeitamente modeladas ao seu singular e delicado rosto, os lábios levemente avermelhados. O rapaz tinha uma boa aparência, modos distintos e vestia-se da forma mais elegante já vista, demonstrava ser uma pessoa a quem dinheiro não faltava. Olhou-me com um ar de desconfiança quando a moça fez um sinal com a cabeça de que eu estava observando-os. Percebi e mudei a direção do olhar. Coloquei as mãos nos bolsos laterais da minha calça e saí caminhando vagarosamente do meu posto. Já havia bebido seis cervejas. No meio do caminho olhei novamente para trás, mas o banco estava vazio e não havia nem sinal do casal.
Contornei o lado esquerdo da praça e parei sob uma árvore, sentando em um banco de concreto. O vento frio que vinha do rio congelava-me as entranhas, e não seria surpresa se em pouco tempo desabasse um tremendo aguaceiro daquele negro céu.
            Esse foi, sem sombra de dúvida, o único pressagio, dentro os tantos que me vieram inconciliáveis à mente, que induziu-me a repensar aquele passeio nada proveitoso, levantar daquele banco e tomar o caminho de volta para casa. Levantei-me, mais ainda assim hesitante se deveria ou não prosseguir. Queria outra cerveja... Comprei e tomei o caminho de casa.
            O ponteiro do meu relógio de pulso marcava quinze para a meia noite. O horário e o clima melancólico da cidade já quase de toda adormecida e mal iluminada enchiam-me de receio, e me fizeram apressar ainda mais os passos. Não que eu tivesse medo, medo mesmo talvez não fosse. Neste mundo pouquíssimas coisas faziam-me experimentar esse sentimento tão infantil, e o sobrenatural e aterrorizante que, como ouvia falar, chegava com a noite, não era uma delas. Na verdade nunca fui demasiado crente em fenômenos sobrenaturais do tipo que existiam para aterrorizar as pessoas. Quando criança, meu avô sempre contava as mais horripilantes histórias de visagens, feiticeiras e lobisomens; eu ouvia tudo, muito atento, e quando ia dormir ficava imaginando todas aquelas figuras espreitando da escuridão noturna para dentro do único lugar da nossa casa que adormecia com as luzes acesas, o meu quarto. Às vezes não conseguia pregar o olho. Cada som no exterior, mínimo que fosse, fazia meu coração disparar e o meu rosto suar desesperadamente. O tempo passou, e o que eu ouvia assustado passei a ouvir sério; não mais acreditava nessas bobagens, mas procurava julgá-las, sempre apontado as “falhas” das histórias, mentiras descaradas, absurdas mesmo. Não sei porquê, mas naquele instante em que voltava para casa comecei a relembrar de muitas dessas histórias: fantasmas, feiticeiras, lobisomens, sempre associados com as madrugadas e cemitérios sombrios; e como que para completar a minha total infelicidade e responder aos meus pensamentos, via surgir, na esquina seguinte, o cemitério da cidade.           
Fitei-o atônito. Nem havia notado a rua em que estava andando, pareceu-me que havia sido levado por ali por alguma coisa incomum e não pelo mero acaso, e a simples ideia de passar pela frente dele àquela hora veio-me como um choque, refreando-me por instantes.
Queria voltar (e até hoje me pergunto por que não voltei) e contornar pela outra rua, no entanto o orgulho de ser tido como uma pessoa de coragem convenceu-me a seguir em frente, mesmo a contragosto. Então engoli em seco e segui.
O portão de ferro com as grades corroídas estava parcialmente aberto, e na medida em que o vento forçava-o, as dobradiças rangiam num som estridente e irritante, terminando numa forte batida contra o muro, e isso continuamente, pois ventava bastante e parecia que já ia chover.
Por sobre o muro irregular apareciam o topo de cruzes enegrecidas e de lápides com estatuetas de anjos com as asas e as mãos voltadas para cima, como em posição de subida. Estiquei o pescoço para olhar por cima do muro, e naquele lugar sinistro e sombrio nada se movia, nem som algum se ouvia, tudo estava mergulhado num silencio perturbador que só foi interrompido pelo voou de uma coruja para uma árvore no outro lado da rua com um rato no bico.
O caminho central que começava a partir do portão era estreito e muito comprido, meus olhos seguiram por ele, indo parar numa pequena capela caiada de branco e coberta por ervas. Tinha ouvido histórias sinistras daquele lugar, inclusive a de que, trancada nas profundezas daquele lugar, ficava o caixão de um homem que havia sido muito mal em vida e que a terra se recusava a decompor suas entranhas. O homem secara, e segundo contava o meu avô, algumas pessoas juravam que o corpo mudava de posição...
Sempre achei essa história ridícula. Mas quando me virei de volta à rua ouvi um estalo vindo de lá, parecido como de uma fechadura. Voltei-me novamente para a capela, com o coração já um pouco disparado; mas por ali tudo continuava inerte como antes.
Continuei a andar pisando bem devagar, com os ouvidos atentos a qualquer estalo parecido, porém como resposta só ouvia o cricrilar dos grilos nas moitas de capim ao redor da rua e o coaxar distantes de sapos. Um pouco mais à frente findava a quadra do cemitério; respirei fundo, aliviado, como se tivesse acabado de sair ileso de uma difícil prova que me fora severamente imposta.  Mais à diante olhei para o cemitério pela última vez, já sem qualquer receio aparente, acreditando ter provado que todas as histórias que me contavam quando menino não passavam de meras invenções fantasiosas e sem qualquer fundamento real. No entanto, vi-me às voltas com todas essas questões naquele momento. Aquela noite poderia ser escura como fosse, mas tive a forte impressão de ter visto uma sombra em pé, parada junto ao portão e olhando fixamente para mim. Assim que semicerrei os olhos para tentar ver melhor, a sombra já não estava mais lá.
Fiquei profundamente confuso e as garras frias do medo pareciam querer se apoderar das minhas pernas, mas novamente fiquei pensando e tentando me persuadir de que aquilo nada mais fora do que fruto de minha sutil imaginação. Avancei o caminho a passos largos, com os olhos fixados no chão de piçarra à minha frente, até chegar à avenida principal. Esta estaria igualmente deserta como as demais, se não fosse por um bombonzeiro que cruzou comigo voltando do trabalho e sumiu por uma rua estreita.
A avenida estava bem iluminada. Voltei a andar devagar pela calçada, tentando aproveitar cada pedaço iluminado, na esperança de esquecer a atmosfera lúgubre de que acabara de sair e a visão que, mesmo não tendo certeza de sua veracidade, tivera minutos antes. Começou a chover, uma chuva fina e constante. Converti à direita na primeira esquina que surgiu, agora acelerando os passo para não chegar em casa encharcado e o vento frio da chuva – eu acho – fez-me arrepiar dos pés à cabeça e o coração aumentar os batimentos. Cruzei os braços tentando esquentar as mãos sob as axilas e olhando ligeiramente de um lado para outro da rua.
As coisas pareciam estar mudando comigo de forma muito estranha, e pela primeira vez desde há muito, como vim a lembrar, comecei a sentir medo da imensidão da noite e dos seus habitantes. Não entendia como um simples vento frio, tão comum quando começava a chover, havia-me feito experimentar outra sensação, uma sensação de mais puro medo, de terror mesmo.
Imaginei ser algum tipo de sinal, e estava certo, como depois fui descobrir. O que veio depois dele, porém, mudaria para sempre a minha vida e me faria tratá-la como algo quase insignificante.
Então aconteceu.
Escutei da primeira vez, mas não dei atenção, pensando ser apenas o meu inconsciente tentando me amedrontar. Da segunda vez, porém, ouvi nitidamente o som, assim mesmo quis fazer-me de surdo e convencer-me de nada ter ouvido, apenas apressei ainda mais os passos já vacilantes. Porém... da terceira vez, aquele uivo que começou agudo e foi morrendo num rosnar agonizante talhou-me a alma por inteiro, e eu, mesmo contra a vontade, parei de andar virei-me, vagarosamente, para ver de onde vinha aquele som aterrorizante.
Como já disse antes, volto a repetir: nunca acreditei em fenômenos sobrenaturais, mas a coisa para a qual acabara de olhar deixou-me com os olhos arregalados e a boca tremendo sem conseguir gesticular palavra, e fez-me em segundos rever todos os meus conceitos acerca de tão incrédulo assunto. Eu estava a uma quadra de distância do cemitério, e desse ponto podia ver o muro irregular dos fundos dele, descendo verticalmente seguindo a inclinação da rua. A estranha figura estava lá, próxima a encruzilhada junto ao cemitério.
O ar condensado formava uma fina e quase invisível camada de névoa ao seu redor, e em contraste com ela surgia, assim como pude no momento distinguir, a figura sinistra de um grande cão preto, com as enormes e compridas orelhas parecendo dois chifres pontiagudos apontando para cima. Chamar de assustador uma figura que me fez dar um salto para trás e me imobilizar de medo já é o suficiente para que se tenha uma noção de como ficara o meu estado de espírito naquele momento. Porém não fora apenas o sinistro cachorro que horrorizou-me a alma, mas sim a forma como ele vinha andando: sobre as duas patas traseiras, em pé, como um homem enorme. Deveria ter, no mínimo, uns dois metros e meio de altura devido a largura de seus passos. Para meu terror, a figura parou de andar e, olhando-me fixamente, começou a rosnar, depois inclinou a boca para cima e saltou mais um daqueles terríveis uivos, voltando-se em seguida para mim.
Senti as pernas se aquecerem rapidamente, quando percebi havia mijado nas calças. Virei-me e me pus a correr o mais rápido que consegui. Enquanto isso a chuva começava a aumentar rapidamente.
Quando já estava um pouco afastado, dei uma rápida olhada para trás. Para minha desgraça a criatura vinha correndo furiosamente, com as quatro patas no chão, em minha direção. O terror instalado em mim aumentou sobremaneira, muito além do que eu pensava suportar. Meu corpo já não atendendo os comandos da minha mente febril começou a ficar cada vez mais pesado e a minha respiração tornou-se quase impossível. Na loucura do momento pensei em gritar e tentar pedir socorro, e talvez se o tivesse feito teria acordado toda a vizinhança com o meu desespero, no entanto meus lábios adormeceram de forma tão assustadora que comecei a pensar que estava caminhando de encontro com a morte, e aquela criatura, que parecia ser a própria morte em pessoa, seria a sua condutora. Naquele instante compreendi que um fim desastroso me aguardava e eu não tinha como evitar. Morreria de qualquer forma. Com esse pensamento olhei para frente. A rua parecia ficar cada vez mais distante, como se eu estivesse sendo puxado lentamente para trás. Até que as luzes foram se apagando, uma a uma, até o final da rua, e uma escuridão sufocante tomou conta da minha vista. Minhas pernas enfraqueceram e eu caí, semimorto, no chão enlameado.
Fiquei prostrado ali, imóvel, com o coração já não batendo tão forte e sentindo um frio mortífero percorrer cada músculo do meu corpo inerte. Não conseguia falar nem ver nada, mas conseguia ouvir bem tudo o que acontecia ao meu redor. Imaginei que estava na minha cama, dormindo, e tendo um horrível pesadelo. Ouvia os grilos ali próximos, deveriam estar em baixo da janela do meu quarto; mas não conseguia compreender que estava dormindo, não conseguia mover um dedo sequer. Foi quando ouvi uma pisada forte e constante, e percebi que a criatura dos meus pesadelos não havia me abandonado no mundo do inconsciente e agora aproximava-se lentamente de mim. E eu ali, sem poder pedir ajuda, sem poder me defender...
Ouvia a água estalar enquanto a criatura andava e percebi quando parou, bem próximo de onde eu estava. Senti o ar quente e um forte cheiro de ovo podre que saia de suas narinas enquanto farejava-me dos pés à cabeça. Não chegou a tocar-me, mas pelo forte som que fazia ao respirar pesadamente imagino que ficara a poucos centímetros de mim.
Depois disso desfaleci e não faço a mínima ideia do que pode ter acontecido depois. Quando voltei a mim, estava caído ao lado de uma poça d’água, a chuva já havia parado. Levantei-me vagarosamente olhando de um lado para outro, mas sem encontrar nada de comprometedor. Estava confuso e quase não acreditava no que tinha acontecido.
           A cidade continuava deserta e silenciosa como antes, e parecia que realmente nada de estranho havia acontecido. A lua estava alta no céu e as estrelas brilhavam fortemente, como se não houvesse chovido. Mas a terra molhada mostrava-me que havia chovido sim, mas que parara há um bom tempo. Dei alguns passos sacudindo a lama da minha roupa e percebi que havia uma garrafa de cerveja vazia no local onde eu estava caído. Distraído com isso tropecei num buraco e cai de volta ao chão. Comecei a rir de mim mesmo e do meu descuido. Mas o meu riso transformou-se num gemido melancólico que morreu na minha garganta quando vi, ao tirar o pé do buraco, que para minha desgraça havia tropeçado dentro de uma enorme pegada, incrustada na piçarra endurecida. Parecia ser a pegada de algum cachorro e seria se não fosse por uma estranha peculiaridade, pois em nenhum lugar do mundo haveria um cachorro que deixasse uma pegada daquele tamanho... Uma pegada que era monstruosamente maior do que a minha mão aberta.

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