A
noite ia alta, a lua esmaecia no céu carregado. Estávamos sós no apartamento
dela. Ela me olhava como se perscrutasse minha alma untada em desejo. Meu corpo
todo tremia com a vontade mal contida de beijar-lhe os lábios rubros umedecidos
pelo vinho rose que ela bebericava vagarosamente.
Respirei
fundo enquanto contemplava aqueles olhos tão verdes como esmeraldas. Eu
ruborizava ante a tentativa vã de não olhar tão fixamente para seu decote que
denunciava um par de seios alvos deliciosos.
Por
fim, cedi à timidez e voltei-me para olhar a cidade que se descortinava em
frente à varanda. Minha taça agora quase vazia lutava para se manter em minha
mão trêmula e banhada em suor.
—
Qual o problema? — perguntou ela com sua voz tão suave como a harpa de Davi.
—
Nada não. — respondi eu, mudando a taça de mão. — É que achei esta vista
maravilhosa.
—
Você prefere a vista a mim?
—
De jeito nenhum.
Ela
então me puxou de volta à sala e de lá fui arrastado até o quarto dela. Seu
perfume era puro feromônio e me deixava ébrio de desejo.
O
quarto era amplo e decorado com muitos espelhos. Mas a verdade é que não dei
muita atenção aos detalhes. O vinho tinha deixado minha visão um pouco turva e
eu sentia taquicardia devido à languidez de seus beijos e carícias.
Ela
me jogou na cama de supetão, era uma cama tão macia como só a alcova das ninfas
deve ser. Com apenas alguns movimentos de seus dedos ela desfez-se do vestido e
então a beleza de seu corpo nu fez meus olhos ofuscarem. A pele tão branca e
macia contrastava com seu púbis cheio e escuro.
Aquilo
não podia estar acontecendo. Acho que era um sonho. Algumas horas atrás eu não
era ninguém e ninguém me conhecia. E agora eu me via diante de Deus. Tirei
minha roupa como pude e ela então veio pra cima de mim e selamos nossos corpos
com os fluidos da libido. Transamos loucamente como dois depravados. Fogos de
artifício jorravam de nossos corpos, estrelas inteiras nasciam e morriam em
nosso sexo.
Até
que eu mesmo morri. Juro por deus que morri. Cheguei a ver meu corpo estirado
na cama, inerte e frio. Então vi um clarão tão forte que me cegou. Era ela
novamente, sempre tão brilhante e cheia de luz. Ela disse:
—
Agora vou levá-lo a uma jornada que você jamais sonhou nem nos seus maiores
devaneios.
Ela
deu meia volta e se afastou. Eu nem cheguei a pensar em nada quando meu corpo
foi atraído em sua direção, como se houvesse um campo eletromagnético em volta
daquela mulher. Eu nem mesmo sentia meus pés se moverem. Levitávamos os dois.
Não existia gravidade nem matéria. Nossos corpos eram energia pura atravessando
o éter.
Até
que chegamos a um templo que tinha um pórtico imenso onde havia colunas dóricas
iguais ao Partenon. Por fora tudo parecia muito amplo, mas por dentro
havia apenas um corredor estreito por onde seguimos. Era escuro, mas eu
conseguia entrever catacumbas com estranhos mosaicos e arabescos. Não havia
sons de qualquer tipo. Foi a primeira vez que me dei conta do quanto é
opressivo o silêncio absoluto.
Finalmente
chegamos a um salão enorme e de repente tudo ficou iluminado como o dia, mesmo
não havendo qualquer fonte de luz aparente. No meio do salão uma estranha
figura dançava velozmente. Ela se contorcia e revirava num ritmo febril. Seu
corpo era magro e tinha a pele bem escura e longos cabelos crespos. Possuía
forma e curvas femininas. Os seios eram firmes e os quadris largos, porém, à
medida que me aproximava, percebi que seu rosto e seu sexo eram masculinos. Era
uma espécie de divindade mitológica africana. O silêncio opressivo de outrora
dera lugar a sons sincopados de tambor, como uma música tribal.
Quando
a divindade africana nos viu, eu percebi que seus olhos eram vermelhos como
fogo. Ela parou imediatamente de dançar e veio em nossa direção, quando ela
falou os tambores silenciaram. Tinha uma voz gutural e falou nos seguintes
termos:
—
O que faz aqui e por que trouxeste um ser impuro à minha morada?
— Não é mais sua morada — respondeu
minha companheira. E sacando um pequeno punhal de aço reluzente, atravessou o
peito da hermafrodita. Não pude ver o que se passou depois, visto que no
instante seguinte estávamos no corredor por onde entráramos minutos antes.
Subimos
uma escada com estreitos degraus. Não sei quanto tempo se passou, mas subimos
muito, era uma escada imensa. No entanto, por algum motivo não fiquei cansado,
nem mesmo ofegante. Então chegamos a uma masmorra escura e sombria onde existia
apenas uma cela, suas grades eram de ouro maciço e lá dentro havia um imenso
macaco acorrentado pelos tornozelos com correntes de ferro. Quando nos viu, o
macaco ficou agitado e se mexia de um lado para o outro até onde as correntes
permitiam.
Minha
companheira abriu a cela com uma chave também feita de ouro (esses objetos
pareciam simplesmente se materializar em suas mãos). Com a mesma chave ela
libertou o macaco das correntes que o oprimiam. Ele pulou em seus braços e ela
o tirou da cela carregando-o em seu colo como um bebê. Antes de sairmos da
masmorra eu a peguei pelo braço e finalmente perguntei:
—
Por que estamos fazendo tudo isso? Onde estamos? E o que significam todas essas
coisa?
Ela
olhou-me com aqueles olhos de esmeralda e respondeu com uma voz tão maviosa
quanto os sons de um saltério:
—
Entendo que sua mente esteja turva como a noite. Suas perguntas serão
respondidas no seu devido tempo, mas agora precisamos sair daqui.
Descemos
a escada e saímos do templo. De repente nos vimos levitando acima de um mar
revolto com tempestades e trovões ameaçadores no céu noturno. Nada se via no
horizonte, apenas água e nuvens carregadas.
Então
um túnel de luz surgiu à nossa frente e seguimos por ele. Num piscar de olhos a
paisagem mudou. Não sei dizer onde estávamos, mas parecia ser um deserto em
chamas. Labaredas lambiam nossos pés, mas não sentíamos dor. Uma fumaça negra
no céu tornava tudo escuro e cobria os raios de sol. Podíamos apenas vislumbrar
a claridade por trás do breu.
À
nossa volta, pessoas destroçadas gemiam num lamento de dor lancinante. Tudo ao
redor era tormento. Percebi que estávamos acima de uma pilha de corpos
carbonizados. Em alguns lugares era possível ver membros dilacerados e corpos
putrefatos banhados em sangue. Eu sentia um forte odor de carniça. No céu
coberto de fumaça voavam animais imensos e mitológicos que sibilavam
ininterruptamente.
Subitamente,
cortando o céu em chamas e montados em cavalos alados, surgiram seres luminosos
que pareciam arcanjos. Eram sete ao todo e todos eles empunhavam lanças de luz
dourada. Um deles se aproximou de minha companheira e atravessou-lhe o corpo
com sua lança. O macaco que momentos antes havia se desvencilhado de seus
braços transformou-se num dragão de vinte pés de altura, em sua cabeça um diadema
reluzia e saía fogo de suas narinas e boca. Os arcanjos sobrevoavam ao redor
dele e tentavam espetá-lo com suas lanças.
Depois disso não vi
mais nada. Um torpor apoderou-se de minha mente e minha visão ficou embaçada
até que apaguei. Acordei com a luz do sol socando meu rosto. Tentei levantar,
mas minha cabeça doía. Minhas roupas estavam puídas e eu segurava uma garrafa
de Duelo na mão. Atrás de mim ouvi risadas histéricas de mulheres.
Virei-me para olhar e vi três rameiras que gargalhavam à entrada do cabaré.
***
Felipe Cosmo Graduando do curso de Cinema e Audiovisual.
Nasceu em Belém do Pará, em 1988. Viciado em Literatura e Cinema. Escreveu e
dirigiu três curtas-metragens, entre eles “Trágico Inverossímil” e “Garota da Beira
do Rio”, além de escrever poesia e contos