O MORCEGO {SAMANTHA DE SOUSA}


Era uma tarde de domingo quando lhe bati a porta. Recebera-me como a um filho que há muito não via, mas se mantinha recalcado pelo costume de mestre instrutor que nunca se permitiu perder. Lembro-me como ele era quando a idade não lhe transparecia: ainda andava ereto, tinha uma postura colossal que o tempo corroeu-lhe quase instantaneamente. Agora parecia mais uma assombração do meu pavor de outrora, que ousei buscar, que ouso tentar imitar.
Entrei, sentei numa das poltronas e fiquei a segurar meus joelhos quando ele se retirou. Meus olhos perambulavam por toda a sala. Nunca tinha visto paredes tão brancas, tão lisas, tão limpas, era uma perfeição angustiante, eu sentia vontade de fugir dali, daquela sala tão branca.
Meus olhos continuavam a passear, buscando, ao menos, uma mancha naquelas paredes, uma mancha pequenininha. Mas, para qualquer lugar que eu olhasse só havia aquela brancura impecável. Meus olhos desesperaram-se, eu precisava encontrar uma imperfeição para que encontrasse a perfeição de não ser perfeito. Meus olhos, então, fixaram-se num ponto, quase magneticamente, eram aqueles olhos que eu tanto evitava olhar. Aqueles olhos negros, pavorosos, que não podiam ser humanos, podiam pertencer a qualquer entidade mística, mas não a um homem. Sentia-me caindo num poço sem fundo, sentia-me tragado, sugado por aqueles olhos. Aquele corpo já não era o mesmo, mas aqueles olhos, eu nunca os esqueceria. Como podiam ser tão penetrantes, tão vivos, tão fixos, tão indecifráveis, tão abismais?
Sentou-se ao meu lado e começou a mostrar-me seus artigos literários. Ele tinha um comentário para cada um deles, há muito tempo se afastara das salas de aula, mas sua sabedoria só crescia, cada vez mais. Sua voz era, então, mais cavernosa como nunca fora antes. Sentia-me diante de um deus e nada sabia responder-lhe quando me perguntava. Sentia-me totalmente leigo perto dele, então eu ficava apenas parado, escutando-o, com as mãos trêmulas, evitando olhá-lo nos olhos.
Fizera um silêncio repentino, ficara a contemplar suas alvas paredes. Senti-lhe me observar e meus olhos fugiam cada vez mais, minha alma queria escapar-me do corpo. Levantou-se e falou-me, como uma trovejada, que iria buscar-me um chá. Senti minha alma voltando ao corpo.
Eu tentava ler alguns artigos, mas meus olhos começaram, novamente, a passear pela sala. Encontrei-a, finalmente, uma mancha nas cortinas. Tamanha foi a emoção de encontrar uma mancha em toda aquela alvura que eu sentira-me hipnotizado, estava fascinado, atraído, encantado com aquela mancha. Saltei da poltrona e fui até a cortina e novamente a angústia tomara conta de mim, a mancha tornara-se sombra, era apenas uma sombra.
Aquela angústia me envolvia cada vez mais, eu precisava de ar, precisava fugir daquele branco. Abri as cortinas, queria ver o asfalto, os postes, as casas, o céu, as árvores, a grama. Abri as cortinas e os vi, aqueles olhos negros, eram os olhos dele, mas numa figura muito mais pavorosa, toda a minha angústia de olhar aquelas paredes brancas sumia diante daquele ser infernal. Aqueles olhos tão negros, tão profundos me envolviam. Eu queria fugir, mas meus olhos estavam presos aos olhos daquela criatura. Eu olhava para ela e ela olhava para mim. Eu lutava insignificantemente contra aquele olhar que subia e descia e parou diante do meu.
Eu odeio morcego e odiava ainda mais aquele por ter aqueles olhos. Aquela criatura negra que pendia de uma teia, como uma teia de aranha. Ele estava de cabeça para baixo, com as asas abertas. Ele tecia a teia. Naquele momento fui tomado por um temor insano. Como podia haver, no mundo, outra criatura com aqueles olhos? Eu me sentia petrificado diante daquela imagem, eu queria ajoelhar-me e adorá-la, eu queria matá-la, eu queria morrer.
Os olhos do morcego continuavam fixos aos meus e senti-me envolvido por aquela teia. Como uma aranha envolve sua presa, o morcego envolvia-me com sua teia. Eu já não sentia meu corpo, eu já estava completamente envolto pela teia e caia no poço onde a criatura guardava seus mantimentos. Eu caia, caia, caia e nunca chegava ao fundo.
Escutei passos. O morcego soltava-se da teia. O professor se aproximava. Eu acordava. Tentei abrir a janela para expulsar a criatura e quando olhei para trás vi, novamente, aqueles olhos negros, mas não pertenciam àquela negra criatura alada, eram os olhos de um ser frágil e encurvado que carregava tremulamente uma bandeja. Voltei à janela e já não havia morcego, teia ou sombra naquele branco puríssimo.