Era
uma tarde de domingo quando lhe bati a porta. Recebera-me como a um filho que
há muito não via, mas se mantinha recalcado pelo costume de mestre instrutor
que nunca se permitiu perder. Lembro-me como ele era quando a idade não lhe
transparecia: ainda andava ereto, tinha uma postura colossal que o tempo
corroeu-lhe quase instantaneamente. Agora parecia mais uma assombração do meu
pavor de outrora, que ousei buscar, que ouso tentar imitar.
Entrei,
sentei numa das poltronas e fiquei a segurar meus joelhos quando ele se
retirou. Meus olhos perambulavam por toda a sala. Nunca tinha visto paredes tão
brancas, tão lisas, tão limpas, era uma perfeição angustiante, eu sentia
vontade de fugir dali, daquela sala tão branca.
Meus
olhos continuavam a passear, buscando, ao menos, uma mancha naquelas paredes,
uma mancha pequenininha. Mas, para qualquer lugar que eu olhasse só havia
aquela brancura impecável. Meus olhos desesperaram-se, eu precisava encontrar
uma imperfeição para que encontrasse a perfeição de não ser perfeito. Meus
olhos, então, fixaram-se num ponto, quase magneticamente, eram aqueles olhos
que eu tanto evitava olhar. Aqueles olhos negros, pavorosos, que não podiam ser
humanos, podiam pertencer a qualquer entidade mística, mas não a um homem.
Sentia-me caindo num poço sem fundo, sentia-me tragado, sugado por aqueles
olhos. Aquele corpo já não era o mesmo, mas aqueles olhos, eu nunca os
esqueceria. Como podiam ser tão penetrantes, tão vivos, tão fixos, tão
indecifráveis, tão abismais?
Sentou-se
ao meu lado e começou a mostrar-me seus artigos literários. Ele tinha um
comentário para cada um deles, há muito tempo se afastara das salas de aula,
mas sua sabedoria só crescia, cada vez mais. Sua voz era, então, mais cavernosa
como nunca fora antes. Sentia-me diante de um deus e nada sabia responder-lhe
quando me perguntava. Sentia-me totalmente leigo perto dele, então eu ficava
apenas parado, escutando-o, com as mãos trêmulas, evitando olhá-lo nos olhos.
Fizera
um silêncio repentino, ficara a contemplar suas alvas paredes. Senti-lhe me
observar e meus olhos fugiam cada vez mais, minha alma queria escapar-me do
corpo. Levantou-se e falou-me, como uma trovejada, que iria buscar-me um chá.
Senti minha alma voltando ao corpo.
Eu
tentava ler alguns artigos, mas meus olhos começaram, novamente, a passear pela
sala. Encontrei-a, finalmente, uma mancha nas cortinas. Tamanha foi a emoção de
encontrar uma mancha em toda aquela alvura que eu sentira-me hipnotizado,
estava fascinado, atraído, encantado com aquela mancha. Saltei da poltrona e
fui até a cortina e novamente a angústia tomara conta de mim, a mancha
tornara-se sombra, era apenas uma sombra.
Aquela
angústia me envolvia cada vez mais, eu precisava de ar, precisava fugir daquele
branco. Abri as cortinas, queria ver o asfalto, os postes, as casas, o céu, as
árvores, a grama. Abri as cortinas e os vi, aqueles olhos negros, eram os olhos
dele, mas numa figura muito mais pavorosa, toda a minha angústia de olhar
aquelas paredes brancas sumia diante daquele ser infernal. Aqueles olhos tão
negros, tão profundos me envolviam. Eu queria fugir, mas meus olhos estavam
presos aos olhos daquela criatura. Eu olhava para ela e ela olhava para mim. Eu
lutava insignificantemente contra aquele olhar que subia e descia e parou
diante do meu.
Eu
odeio morcego e odiava ainda mais aquele por ter aqueles olhos. Aquela criatura
negra que pendia de uma teia, como uma teia de aranha. Ele estava de cabeça
para baixo, com as asas abertas. Ele tecia a teia. Naquele momento fui tomado
por um temor insano. Como podia haver, no mundo, outra criatura com aqueles
olhos? Eu me sentia petrificado diante daquela imagem, eu queria ajoelhar-me e
adorá-la, eu queria matá-la, eu queria morrer.
Os
olhos do morcego continuavam fixos aos meus e senti-me envolvido por aquela
teia. Como uma aranha envolve sua presa, o morcego envolvia-me com sua teia. Eu
já não sentia meu corpo, eu já estava completamente envolto pela teia e caia no
poço onde a criatura guardava seus mantimentos. Eu caia, caia, caia e nunca
chegava ao fundo.
Escutei
passos. O morcego soltava-se da teia. O professor se aproximava. Eu acordava.
Tentei abrir a janela para expulsar a criatura e quando olhei para trás vi,
novamente, aqueles olhos negros, mas não pertenciam àquela negra criatura
alada, eram os olhos de um ser frágil e encurvado que carregava tremulamente
uma bandeja. Voltei à janela e já não havia morcego, teia ou sombra naquele
branco puríssimo.