A ÚLTIMA NARRATIVA QUE OUVI MEU AVÔ CONTAR {RAPHAEL SOARES}

Gravura de Gustave Doré

Nunca gostei do interior, desde os primórdios da minha infância. Embora seja de família tradicionalmente interiorana, vivi na cidade desde que consigo me lembrar. Embora meu pai também não gostasse de retornar a seu lugar de nascimento, sempre íamos ao interior na Semana Santa.
Para uma criança totalmente criada na cidade, era penosa a estadia na vila de meus avós: não havia nada para fazer, e as crianças daquele lugar pareciam de um universo completamente distinto do meu; eu estava só, e absolutamente sem linguagem comum com meus familiares. A única pessoa com quem gostava de conversar era meu avô, mas meu pai não suportava que eu ficasse muito tempo com ele. Na verdade, meu pai não gostava, em absoluto, da própria família, por razões religiosas, e pelas mesmas razões tinha de respeitá-los. Lembro de ouvir diversas vezes meu pai falar que a fé confusa dos simples beirava a heresia.
Meu pai foi o que na época era tido como o comportamento mais exemplar possível para um cidadão, e hoje tido como o ápice da intolerância: um ortodoxo. É muito curioso o como esse adjetivo foi mudando de significado, e em absoluto significando o mesmo, no decorrer dos anos que passaram da minha infância até minha velhice. Meu pai chorou profundamente a morte de João XXIII. Ele sempre dizia:
 Foi-se o último homem digno de ocupar a cadeira de Pedro.
E quando eu já era adulto acrescentava:
 Não fosse a morte repentina de João XXIII o mundo poderia ter tomado outro caminho. A fé seria mais sólida e o demônio não adentraria os portões da Igreja.
Nunca fui capaz de compreender exatamente o porquê de meu pai pensar desse modo, mas saber que tal era seu pensamento é o bastante para entender os problemas que envolviam o relacionamento de meu pai com meu avô.
De onde meu pai desenvolveu sua extrema ortodoxia também não sou capaz de dizer, só sei que não foi de meu avô. Se os interioranos humildes possuíam uma crença eclética e tendente à superstição inofensiva (o que parece ser um dos pilares da igreja, como nos apresenta o Catecismo), em meu avô adquiria um grau de liberalismo religioso que perturbava meu pai. Marcos, se posso chamar meu avô pelo nome, acreditava que todos os caminhos levavam a Deus, e que de certo modo tudo, até aquilo que era errado no mudo fazia parte da vontade Dele; meu pai, por outro lado, não concebia a ideia de que todos poderiam estar corretos, mas que apenas uma verdade existia, e o caminho a Deus era unívoco, e "desviar-se da reta doutrina era ir contra a vontade de Deus".
(Pode nos parecer um tanto exagerado hoje em dia, mas lembro bem que meu pai falava nestes termos, e suas lições eram quase homilética. Muitos dos conhecidos da família acreditavam que meu pai poderia ser um grande padre, quiçá bispo ou cardeal, se não houvesse encontrado minha mãe. Papai respondia gentilmente que "todos são chamados segundo o seu propósito, e cada um de acordo com sua vocação". Quase ninguém lia a Bíblia naqueles tempos, e poucos sabiam que a sabedoria de meu pai, que adorava falar em termos bíblicos, era uma paráfrase de Paulo)
Dentre as inúmeras faltas que meu pai imputava a meu avô estava a de que, com seu liberalismo religioso, não se importava com a formação moral e o ensino do certo e do errado aos filhos, que viviam suas vidas desregradas, a exceção do meu pai, que foi para a cidade, tornou-se empregado e constituiu uma família sólida. Segundo meu pai, os outros irmãos não seguiram o mesmo caminho por falta de um catecismo adequado, erro que ele próprio não queria cometer com os filhos. O fato de meu avô ter sido protestante na juventude fazia com que meu pai sempre tratasse o vô Marcos como se fora protestante a vida inteira. Os outros membros da família se diziam católicos mas sequer iam à missa: seguiam apenas algumas festividades de devoção, num ritual semi-dionisíaco. Papai sempre citava os santos ao falar da missa, citando Santo Anselmo ao dizer que “uma só Missa oferecida e ouvida em vida com devoção, para o próprio bem, pode valer mais que mil Missas celebradas na mesma intenção, depois da morte”, e um outro santo que nunca mais lembrei, que dizia algo como “a missa está no centro da fé assim como a morte de Cristo”.
Esses motivos faziam com que meu pai não gostasse que eu passasse muito tempo com meu avô (temia que eu fosse desviado do “reto caminho”), e meu avô, com suas histórias mal acabadas e antigas sempre me pareceu a pessoa mais interessante daquele universo completamente distinto do meu.
 Naquela Semana Santa, era sábado de aleluia se não me falha a memória, e nessa idade ela tende a falhar muito, meu pai teve uma briga séria com meu avô por alguma razão qualquer (crianças não se metiam na conversa dos adultos, naquele tempo, sob pena de cipó), e nós, os mais jovens, fomos obrigados a deixar o recinto para “brincar lá fora”. Meus primos gostavam de brincar na beira do rio, no lodo, lugar onde nunca me senti nem um pouco confortável. Resolvi afastar-me deles, e andei um pouco pela vila, embora, pensava eu, não haveria muito a ver. No entanto, em meio a minha caminhada aleatória me deparei com uma construção singular: um grande sobrado, muito maior que as maiores casas que já havia visto por aquelas bandas, e de aparência tão antiga que lembrava as construções mais nobres da Cidade Velha. O sobrado parecia abandonado, no entanto aparentava ser muito melhor em estrutura que muitas casas por ali. Fiquei pensando se meu avô saberia a história desse prédio, um casarão antigo desses devia ter muitas histórias, mesmo inventadas, num lugar como aquele. Conhecia bem meu pai: depois de uma briga como aquela, todos sairiam por algum tempo e deixar meu avô só. Era uma boa oportunidade para que ele me contasse alguma das histórias do sobrado.
Quando comecei a falar do que vira, perguntando o que era aquele prédio e porque estava abandonado, fui surpreendido com o comportamento de meu avô, que olhou para longe, como que perdido no tempo. Então, depois de um tempo, disse de forma clara e direta.
– Aquele prédio era uma antiga igreja. Está abandonado porque sofreu um incêndio, tempos atrás.
E ficamos sem falar alguns instantes. Eu olhava meu avô com perplexidade, e ele simplesmente fitava a janela, distante. Pensei que a briga com meu pai o tivera deixado muito abalado, mas percebi que por algum motivo havia algo mais em tudo aquilo. Meu avô era um grande narrador de histórias, e não evitava contar logo alguma narrativa, geralmente fantasiosa, sobre qualquer coisa que eu comentava, mesmo se fosse uma simples formiga.
– Mas vô, aquilo não parece nem uma igreja, e nem parece que foi incendiado. – indaguei, tentando fazer com que meu avô falasse um pouco mais.
– Por causa de não haver uma cruz? – ele me perguntou sorrindo, e passou a mão na minha cabeça. – Não era uma igreja católica, mas uma protestante.
Naquele momento imaginei que aquela havia sido a igreja em que meu avô ingressou na juventude, e a história dela, de certo modo, era a de nossos conflitos familiares. Fiquei ainda mais intrigado.
– E ela foi sim incendiada, embora não tenha se destruído de todo. Mas sabe como é o povo daqui, cheio de superstições! Ninguém teria coragem de derrubar a igreja para construir uma nova casa ou qualquer coisa. As pessoas nem sequer gostam de morar perto dela. Mas posso assegurar com toda a certeza que não é uma história interessante para um jovem como você. – Prosseguiu, terno, meu avô.
Passado aquele ponto, nada me demoviria de ouvir a narrativa que me fora apresentada, e que ora relembro. Pedi que meu avô contasse, independente de ser ou não uma história interessante.
*
– Quando eu ainda era moleque chegou um tal de Alguma-coisa Berk... Berken ou coisa parecida. Era um missionário vindo do estrangeiro. Não sei exatamente o que o trouxe cá para o fim do mundo, mas veio com a clara intenção de construir uma igreja.
– Essa que vi hoje?
– Não ainda. Ele construiu uma em outro canto, bem ao lado do campo de futebol, próximo ao aonde fostes com teus primos. A princípio, a comunidade deu muita importância à chegada do estrangeiro. Na época mal víamos pessoas chegadas de Belém, que não fossem, de algum modo, filhos ou netos da terra. Ainda hoje é difícil estranhos virem aqui, e quando vem são vistos com desconfiança. Não era diferente naquela época. O missionário se estabeleceu perto do atual campinho e montou sua casa com um espaço para as pregações. Como o povo é dado a fofocas, costumavam dizer que esse estrangeiro era um criminoso fugido de sua terra. Meu pai sequer permitia que conversássemos com ele. Lembro-me que certa vez o pastor veio a nossa porta, mas papai o expulsou asperamente, e pediu que ficássemos longe. Era bem jovem, e não lembro bem de muitas coisas relacionadas a ele nessa época, apenas que ele era muito diferente (era loiro, muito mais alto que qualquer um daqui e muito branco). Também falava de um jeito muito engraçado. Não lembro, mas sei que na época o padre Miguel fez calorosos sermões contra esse pastor, o associando ao próprio mal e às profecias do apocalipse. Sei porque depois de tudo o que aconteceu, e desse tempo lembro bem, o mesmo padre, já bem velho, retomou esse tema, à moda dos pais reprimindo os erros dos filhos com um típico “eu avisei”, e o povo em coro respondia “sim! ele avisou”.
– E o que foi que aconteceu, vô?
– Seja paciente, menino. Não ponha os cavalos na frente dos bois.
– Desculpa, vô. Mas o senhor falou, falou e não contou nada da igreja nem de nada. Em pouco tempo o pai chega e não vai querer me ver ouvindo essa sua história.
Meu avô ficou algum tempo calado. Pouco tempo, mas dava para ver a tristeza em seus olhos, uma que talvez fosse eterna naqueles instantes. Respondeu tentando sorrir:
– Não se preocupe, filho. Seu pai está com seu tio, e só vem amanhã.
Ficamos algum tempo nos olhando, sem dizer uma palavra. Não sabia o que dizer naquela ocasião, nem sequer entendia o porquê de estar desconfortável com tudo isso. Só queria que meu avô continuasse a história. Não demorou muito para prosseguir.
– Pois bem, vou continuar a contar, e vê se não me interrompe.
– Tudo bem –. Respondi.
– O missionário ficou ainda algum tempo com a pequena igrejinha e uma meia dúzia de fiéis, todos vistos com desconfiança pelo resto do povo, que ainda era profundamente católico. Porém, quando eu era mais jovem, devia ter uns 19 ou 20 anos,  as coisas começaram a mudar bruscamente. A desconfiança sumiu, e com ela o número de protestantes na vila foi crescendo tanto que eles deviam ser em número quase igual aos católicos, e tudo isso repentinamente.
– Foi na igreja dele que entraste na juventude? Era a igreja que foi incendiada?
Meu avô me repreendeu com olhar naquele momento, sem dizer mais uma palavra. Percebi que havia o interrompido outra vez, e pedi desculpas. Prosseguiu:
– Com o número de fiéis crescendo cada vez mais, logo o pastor abandonou a igreja que havia fundado e construiu aquele belíssimo prédio que viste hoje. Nessa época eu havia me tornado um dos jovens a se converter ao protestantismo de então. Não consigo lembrar exatamente, mas algo no discurso do pastor era profundamente persuasivo. Em pouco tempo mesmo aquela igreja grande ficava lotada em dias de culto, e foi uma época bastante animada por aqui, apesar da grande rivalidade que beirava a violência que existia entre os católicos e protestantes, agravada com o tamanho da vila. Lembro bem que nessa época conheci sua avó.
E meu avô ficou bastante tempo olhando para si mesmo, pensando não sei o quê. Fiz o possível para não lhe falar nada, até que lhe perguntei o que acontecera depois.
– Muita coisa aconteceu. O pastor foi ficando com aparência abatida e doente. Todos repararam também que sua habilidade de persuadir e convencer se esgotava cada vez mais. Muitos boatos surgiram na época em relação a um suposto relacionamento com uma de suas fiéis, e até com um dos jovens da igreja; os mais fiéis pensavam se tratar de difamação perpetrada pelos padres, mas nunca ninguém provou nada de nada. Até que um dia o pastor teve um surto completamente assustador num culto, que estarreceu profundamente todos os que lá estavam, incluindo a mim. Parecia um louco gritando palavras incompreensíveis, que alguns interpretavam como um milagre, outros como uma possessão e outros como ataque de loucura. Ouviu-se, na mesma noite mais um longo berro do pastor dentro da igreja –. E depois de uma breve pausa: – e assim acaba a história.
– Como assim acaba a história?
– A história termina aqui. Não há nada mais a contar.
– Mas e o que aconteceu com o pastor? E com a igreja? E o incêndio?
– Nunca mais vimos o pastor. Sem seu pastor, as ovelhas permanecem onde estão até que outro pastor cuide delas ou um lobo as venha devorar. O incêndio não parece ter nada a ver com isso. Aconteceu alguns anos depois, e aconteceu espontaneamente.
– Mas ninguém sabe de nada? Não há relação entre o sumiço do pastor e o incêndio? – pausei um pouco, demonstrando toda a minha decepção. – Que história mais sem graça!
– Não disse que seria uma história engraçada. Poderias procurar outros narradores na cidade, tão velhos como eu, para contar essa história. Dependendo de quem conta, muita coisa muda. As coisas podem estar relacionadas. Para uns o pastor era um servo do pé-de-pato, enquanto para outros ele havia feito um pacto para conseguir os fiéis, e o malvado veio buscar sua paga depois do décimo terceiro ano. No fundo é bastante improvável que qualquer um consiga lembrar a data exata em que ele veio para cá, e por essas bandas é muito difícil de se perceber a passagem dos anos; seu pai, adepto dessa teoria nasceu alguns anos depois, e nem poderia saber disso se não por terceiros. Naquela época ainda mais. Outros narrariam um romance, em que o pastor foge e logo após sua amada, ou amado, fugiria atrás, para um lugar de fantasia em que ninguém mais os condenasse; alguns até especularam candidatas para essa paixão. Outros contam de um assassinato, talvez até articulado pelos seus próprios correligionários, ou por um membro da igreja católica. Lembras do compadre Matias? – acenei com a cabeça que lembrava – pois então, o finado Matias falava que viu um disco voador levando o pastor para o espaço. Também, o velho Matias bebia muito.
E meu avô caiu na gargalhada. E logo após prosseguiu.
– Enfim, meu filho. Se quiseres uma história fascinante, que ligue o incêndio ao sumiço, eu não sou a pessoa mais adequada a contar. Pergunte para outro dos velhos, que vão dominar a arte de contar histórias melhor que eu. Eles podem acrescentar detalhes, e contar todos os fatos meticulosamente, em que tudo tenha significado. Não sou um bom narrador. A minha história simplesmente termina no ponto em que terminou. Nada mais sei nem tenho a falar sobre isso.

*

E essa foi a última narrativa que ouvi de meu avô. Marcos morreu 6 anos depois, então o vi ainda mais umas 12 vezes; semana santa e natal, como de costume. Meu pai foi ficando cada vez mais distante dele, e por isso também me distanciava. A morte do vovô não foi inesperada: adoeceu e foi ficando cada vez pior, até morrer. O velório foi triste, chorei muito, mas meu pai aparentava frieza. Pensei que, no fundo, meu pai não gostava do próprio pai, mas estava enganado. Com o tempo, papai falava cada vez melhor de meu avô, e com maior carinho. Nessa época que percebi o grande paradoxo da morte, que obliterando completamente um ser, o aproximava dos demais. Nunca me esqueci da última história que ouvi de meu avô, porque encerrava um outro paradoxo: em sua relutância em narrar, me ensinou uma inaudita verdade da arte de contar histórias.