![]() |
Poster do filme "Maniac", de Elijah Wood. |
Naquela noite de
domingo a cidade virou um alvoroço só. Na rádio, televisão, internet e
mensagens de celular, corria a notícia da captura do homem que aterrorizava o
bairro do Cereja há quase onze meses. A polícia relutava em divulgar o nome e a
população ansiosamente aguardava para saber quem era o sujeito capaz de tais
atrocidades. Em frente à delegacia, uma multidão revoltada se aglomerava e
ameaçava invadir as dependências e fazer justiça com as próprias mãos, enquanto
um pequeno grupo de policiais tentava acalmar os ânimos até que reforços da
cidade vizinha chegassem.
Foram sete vítimas: mulheres
jovens que andavam sozinhas à noite. Todas brutalmente violentadas e
estranguladas. Os corpos foram encontrados às margens de um córrego, numa área
de preservação próxima ao centro da cidade e, por isso, todos imaginavam que os
ataques aconteciam num beco ali próximo conhecido por “beco do mete-medo”. Curiosamente,
o nome do beco se dava por causa de um antigo morador apelidado por “Mete-medo”,
não pelos recentes ataques do maníaco.
• • •
Eu sabia que essa hora
chegaria. Agora estão todos querendo minha cabeça, mas digo que valeu a pena. Digo
para mim mesmo... Ah, como eu me diverti! Como foram todas tão delicadas. Aqueles
lábios trêmulos, gemidos, posições forçadas e o cheiro... como são cheirosas
quando estão na flor da idade. Não me arrependo de nada. E por que haveria de
me arrepender? Todas elas gemeram gostoso antes de morrerem. Sentiram o gozo
divino ainda em vida. Que me matem esses canalhas. Eles não entendem, mesmo.
Não sabem o que é prazer de verdade. Eu sei! Ah, como sei. Mesmo aqui, atrás
das grades, sou homem livre, enquanto eles, lá fora, continuam presos em seus
uniformes, noticiários, pudores e regras morais. Bando de hipócritas nojentos!
Culpam-me por um pouco de prazer, mas quantos eles já mataram também por
prazer? Sonegadores de impostos, corruptos, aliciadores..., um bando de porcos
imundos cujos olhos só são capazes de enxergar a sujeita alheia. Ahhh, não me
sai da cabeça o cheiro daquela morena... mesmo morta ainda exalava um perfume
de flores. Flores frias, mortas, mas divinamente belas.
• • •
— Delegado, os homens
estão passando sufoco lá fora. Se o batalhão de Capanema demorar a chegar esse
povo vai entrar na marra.
— Já liguei para o
Sargento Moreira, eles já estão quase aqui. Vamos enrolar esse pessoal mais um
pouco. E o meliante?
— Está lá, deitado no
chão da cela com um sorriso imenso na cara, como se nada estivesse acontecendo.
Só pode ser louco, delegado. Só pode ser louco.
— Não, não creio.
Loucos não tratam corpos com tamanho zelo como esse homem fez. Estuprava, estrangulava,
depois maquiava a vítima e enfeitava com flores para que estivesse bonita a
quem a encontrasse. Isso não é loucura, talvez psicopatia.
— Sei não, sargento.
Pra mim é doido de pedra. Ah, finalmente estão chegando!
• • •
Já era quase meia noite
quando uma equipe do esquadrão de choque chegou à delegacia. Sob ordens do
Sargento Moreira, o batalhão não puxou conversa com ninguém. Sem qualquer
diplomacia, os soldados foram dispersando a multidão com balas de borracha e
bombas de gás lacrimogênio. Foram quinze minutos de pânico, choradeira e
correria até que a rua ficasse quase vazia. Quando tudo se aquietou,
reuniram-se delegado, sargento, representante do judiciário e três jornalistas
para decidirem se mantinham o estuprador na penitenciária da cidade ou enviavam
para Belém, e como sua identidade seria revelada.
A discussão foi acalorada.
Os jornalistas sedentos pela identificação do indivíduo, o delegado querendo
enviá-lo para Belém a fim de se livrar do problema e o sargento argumentando
que as penitenciárias de Belém e Americano encontravam-se muitíssimo
abarrotadas. Quando achavam que já tinham decidido por manter o criminoso na
cidade entra na sala um casal de representantes do Departamento de Direitos
Humanos e recomeça a discussão em torno do destino do preso que,
sossegadamente, escutava a conversa de uma cela logo ao lado da sala de
reuniões.
• • •
Prefiro sinceramente
que me deixem aqui nesta cidade. Já estou acostumado com esse cheiro de maresia
que está impregnado até na mais solitária das celas. E aqui estarei perto de
minhas amadas. Quem sabe a maresia não traga de surpresa o cheiro de uma delas?
Sei que saberia reconhecer cada uma por seus estonteantes odores. Sim, eu sei.
São inigualáveis. E tal como os bons jardineiros identificam as flores com
olhos fechados, assim também eu as identificaria. Mas estão mortas, e a morte
leva consigo almas e odores, substituindo-os por uma podridão sem fim. Queria
eu ter o dom de Jean-Baptiste Grenouille
e poder guardar o perfume de minhas paixões em fracos, para senti-los enquanto eu
ainda estivesse vivo.
• • •
— Vocês só podem estar
de brincadeira. Querem que eu consiga uma cela individual para esse sujeito?
— Sim, delegado. Como
determina a lei. Segundo fomos informados, o acusado possui dois cursos de
nível superior e um mestrado em biologia, isso é o suficiente para assegurar
seu direito à cela especial.
— Eu conheço muito bem
a lei, senhora sei lá o seu nome.
Mas, em primeiro lugar, ele não é um “acusado”. O Indivíduo foi pego em
flagrante, sobre o cadáver, e confessou abertamente não só esse como outros
seis assassinatos. Em segundo lugar, o nível de frieza e crueldade adotado por
ele é tamanho que faz qualquer outro preso da penitenciária desta cidade
parecer uma criança inocente. E em terceiro lugar, nós não temos cela especial!
Se quiser uma, terão que remanejar outros quinze presos para outra cela já
cheia, causando superlotação.
— Estamos esperando
pela identificação do sujeito — interrompeu um dos jornalistas —. A população
quer saber quem é esse assassino estudado.
— Esperem! Só vamos
divulgar a identidade dele quando estiver em segurança.
— Companheiros, eu como
sargento tenho uma proposta a fazer.
— Então diga, sargento.
O que tens a sugerir? — disse o representante do judiciário.
— Bem, deixamo-lo aqui
mesmo na delegacia, pois temos uma cela onde ele pode ficar só, mas mandamos
divulgar na imprensa que o mesmo foi encaminhado para a penitenciária de
Americano. O amigo do judiciário agiliza o processo de julgamento dele para que
não permaneça mais de duas semanas por aqui e, enquanto isso, mantemos alguns
homens de plantão para garantir sua segurança, caso a informação vaze e haja
alguma tentativa de vingança.
— Hummm. Todos estão de
acordo? — perguntou o delegado.
• • •
Já era madrugada e nas
casas, nas ruas, nas praças e nos bares, grupos de pessoas esperavam, com seus
aparelhos de rádio ou TV ligados, a notícia tão aguardada sobre quem era o
misterioso “Maníaco do Cereja”, como
foi chamado quando ainda estava solto. Embora fosse uma cidade com pouco mais
de sessenta mil habitantes, mantinha aquele ar de cidade do interior onde muita
gente se conhece, conhecem as famílias uns dos outros e seus graus de
parentesco. Assim, todos imaginavam que, quando divulgado, o assassino fosse
alguém conhecido. E era.
PELO HORÁRIO DE
BRASÍLIA SÃO UMA E VINTE E TRÊS DA MADRUGADA E TRAZEMOS COM EXCLUSIVIDADE
NOTÍCIAS SOBRE O MANÍACO DO CEREJA. A
DELEGACIA DE POLÍCIA CIVIL DE BRAGANÇA ACABA DE DIVULGAR A IDENTIFICAÇÃO DO
HOMEM QUE ESTUPROU E MATOU SETE MULHERES NOS ÚLTIMOS ONZE MESES. PROFESSOR
UNIVERSITÁRIO ATUANTE NA CIDADE HÁ 11 ANOS, SOLTEIRO, TRINTA E SETE ANOS,
NASCIDO NA CIDADE DE TEÓFILO OTONI, MINAS GERAIS, TARCÍSIO XAVIER DE MOREIRA MATOS FOI TRANSFERIDO HÁ ALGUNS MINUTOS
PARA A PENITENCIÁRIA DE AMERICANO. EM BREVE VOLTAREMOS COM MAIS INFORMAÇÕES.
A
ansiedade que estava corroendo a população deu lugar a uma quase completa
confusão. De repente, com exceção dos alunos e funcionários da universidade que
conheciam o professor Moreira, todos começaram a se perguntar quem era o
sujeito e como poderiam não conhecer alguém que morava na cidade há onze anos.
Moreira
sempre foi muito caseiro, dedicado ao trabalho e aos estudos, e saía de casa
geralmente para trabalhar ou comprar alguma coisa. Não tinha amigos e conversava
com os colegas de trabalho e alunos apenas o essencial. Era um homem recluso e
isso era tudo o que sabiam sobre ele.
• • •
Acham
que podem pôr medo em mim. Pôr medo em quem conhece as raízes do medo como a
palma da mão. Eles não sabem o que é ter medo, não fazem absolutamente nenhuma
ideia do que é o medo em sua essência. Nunca viram os vasos sanguíneos dos
olhos se dilatarem frente ao horror, nem mesmo sentiram aquele gélido suor misturado
ao calafrio ao sentir a ponta da lâmina da faca deslizar pelo dorso trêmulo. São
uns maricas! Se eu esfregasse meu membro em suas caras se borrariam todos. Mas
elas foram Deusas. Fizeram-me sentir medo como ninguém jamais foi capaz de
fazer.
• • •
— Acho
que por essa noite tudo já foi resolvido, Delegado. Já dei ordens para quatro
soldados ficarem de guarda até nove na manhã, quando outros quatro vêm para o revezamento.
— Ok,
sargento. Com a notícia de que o Moreira foi encaminhado para Americano acho
difícil que haja algum tipo de retaliação. Mas é sempre bom prevenir. Obrigado
pelo apoio.
— Por
nada.
• • •
Antes do alvorecer, uma chuva fina começou a
cair sobre a cidade. Dos becos escuros e esquinas mal iluminadas começaram a
sair pessoas armadas com fações, paus e foices. Dezenas, talvez uma centena. O
soldado da guarita foi o primeiro perceber a aproximação da multidão e correu
para dentro da delegacia trancando a porta e avisando os demais soldados de
plantão. O delegado já não estava mais lá.
Do lado
de fora um barulho assustador aumentava a cada minuto. Grades eram arrancadas,
vidraças apedrejadas e, como um enxame, arrombaram a porta e iam destruindo
tudo pelos corredores da delegacia. No hall que dá acesso às celas, encontraram
a barreira com seis policiais armados gritando para que recuassem.
• • •
Então,
vieram cobrar a dívida. Imaginei que a estratégia do sargento não ia dar certo.
Provavelmente fora algum dos jornalistas, o mais silencioso. Um deles era
parente de um dos meus amores e não ia guardar segredo. Trouxe os seus para
vingarem a sua. Talvez a loira, ou a morena dos cabelos lisos e pernas roliças.
Quem sabe a mulata, a primeira. Não importa, o máximo que podem fazer é me
mandarem para junto delas.
Como eu
disse, todos esses que me julgam, que saíram de suas casas na madrugada para aplicarem
a mim um sentença, são tão culpados como eu. Sim, matarão os policiais para
chegarem aqui e entrarão por essas grades e me mutilarão até a morte. E vos
digo em pensamento: vingarão suas mulheres pelos crimes que eu cometi, mas quem
vingará a mim pelo crime que estão para cometer?
• • •
PELO HORÁRIO DE
BRASÍLIA SÃO OITO HORAS E QUINZE DA MANHÃ E TRAZEMOS COM EXCLUSIVIDADE NOTÍCIAS
SOBRE O CASO DO “MANÍACO DO CEREJA”.
A ASSESSORIA DE IMPRENSA DA POLÍCIA CIVIL ACABA DE INFORMAR QUE, DURANTE A
MADRUGADA, CERCA DE CEM PESSOAS PORTANDO ARMAS BRANCAS E BARRAS DE MADEIRA INVADIRAM
A DELEGACIA, POIS TIVERAM ACESSO À INFORMAÇÃO DE QUE O MANÍACO TARCÍSIO XAVIER DE MOREIRA MATOS AINDA
SE ENCONTRAVA LÁ. O PRÉDIO FOI COMPLETAMENTE DEPREDADO E HOUVE CONFLITO COM OS
SOLDADOS DE PLANTÃO, RESULTANDO EM QUINZE MORTES: TRÊS POLICIAIS, ONZE CIVIS E
O MANÍACO DO CEREJA, CUJO CORPO FOI COMPLETAMENTE MUTILADO E ESPALHADO PELAS
RUAS DA CIDADE COMO UM SUPOSTO ATO DE AVISO À POSSÍVEIS OUTROS CRIMINOSOS. EM
BREVE VOLTAREMOS COM MAIS INFORMAÇÕES, FIQUEM AGORA COM O PROGRAMA “BOM DIA
BRAGANÇA”.
0 comentários:
Postar um comentário